CAPITULO 30 - REPERCUSSÕES

CAPITULO 30 - REPERCUSSÕES



CAPITULO 30 - REPERCUSSÕES

Na manhã seguinte ao seu discurso, Rony olhou pela janela e viu doze homens deixando Carvahall, seguiam em direção às cataratas Igualda. Ele bocejou e desceu as escadas mancando até a cozinha.
Horst estava sentado sozinho à mesa, apertando uma caneca de cerveja nas mãos.
- Bom-dia. - disse ele.
Rony grunhiu, arrancou um pedaço do pão que estava em cima do balcão e depois se sentou na outra ponta da mesa. Enquanto comia, notou que Horst estava com os olhos vermelhos e a barba desgrenhada. Rony supôs que o ferreiro passou a noite inteira acordado.
- Você sabe por que um grupo está subindo...
- Eles têm que falar com suas famílias. - disse Horst abruptamente. - Estão subindo a Espinha desde o amanhecer. - Ele bateu a caneca com força na mesa. - Você não tem idéia do que fez, Rony, ao pedir para que partíssemos. O vilarejo inteiro está em polvorosa. Você nos encurralou e só ficamos com uma saída: a sua. Algumas pessoas estão detestando-o por isso. E claro que alguns já o detestavam por ter trazido tudo isso para cima de nós.
O pão na boca de Rony estava com gosto de serragem ao passo que o ressentimento explodia em seu interior. Foi Harry que trouxe a pedra para cá, não eu.
- E os outros?
Horst deu um gole em sua cerveja e fez uma careta.
- Os outros o adoram. Jamais pensei que veria o dia em que o filho de Garrow iria incitar meu ânimo com palavras, mas você conseguiu, garoto, você conseguiu. - Ele passou uma das mãos ásperas sobre sua cabeça. - Tudo isso? Eu construí essa casa para Elain e para os meus filhos. Levei sete anos para terminá-la. Está vendo aquela viga bem ali em cima da porta? Quebrei três dedos do pé para colocá-la no lugar. E quer saber. Vou desistir de tudo por causa do que você disse na noite passada.
Rony permaneceu em silêncio, era o que ele queria. Deixar Carvahall era a coisa certa a fazer, e como ele havia se comprometido com tal empreitada, não tinha motivos para ficar se atormentando com culpa e remorso. A decisão está tomada. Aceitarei as conseqüências sem reclamar, não importa o quanto elas possam ser medonhas, pois essa é a única maneira de escapar do Império.
- Mas - disse Horst antes de se inclinar para frente apoiado no cotovelo, seus olhos negros ardiam sob sua testa - lembre-se de que, se a realidade divergir dos sonhos etéreos que você conjurou, haverá dívidas a pagar. Dê esperanças às pessoas e depois as tire, que elas o acabarão destruindo.
Aquela perspectiva não preocupava Rony. Se chegarmos a Surda, seremos recebidos como heróis pelos rebeldes. Se não, nossas mortes findarão com todas as dívidas. Quando ficou claro que o ferreiro havia terminado de falar, Rony perguntou:
- Onde está Elain?
Horst franziu a testa por causa da mudança de assunto.
- Lá atrás. - Ele se levantou e ajeitou sua túnica por sobre seus ombros pesados. - Tenho que ir esvaziar a ferraria e decidir quais ferramentas vou levar. Vou esconder ou destruir o resto. O Império não se beneficiará do meu trabalho.
- Vou ajudar. - Rony empurrou sua cadeira para trás.
- Não. - retrucou Horst asperamente. - Essa é uma tarefa que só posso fazer com Albriech e Baldor. Aquela oficina foi toda a minha vida, e a deles... De qualquer maneira, você não ajudaria muito com esse seu braço. Fique aqui. Elain pode precisar de você.
Depois que o ferreiro saiu, Rony abriu a porta lateral e encontrou Elain conversando com Gertrude ao lado do enorme monte de lenha armazenada para o ano. A curandeira foi até Rony e colocou a mão em sua testa.
- Temia que você pudesse ter pegado uma febre depois de toda a excitação de ontem. Sua família sara dos males com uma velocidade extraordinária. Mal pude acreditar quando Harry começou a andar depois de ter suas pernas esfoladas e passar dois dias na cama. - Rony enrijeceu-se à simples menção do nome do seu primo, mas ela pareceu não notar. - Vamos ver como está o seu ombro, podemos?
Rony curvou o pescoço para que Gertrude alcançasse suas costas e desamarrasse o nó da tipóia. Assim que o fez, ela baixou cuidadosamente seu antebraço direito - que estava imobilizado numa tala - até seu braço ficar reto. Gertrude deslizou seus dedos sob o cataplasma que havia sido colocado no ferimento e o arrancou.
- Oh, nossa. - disse ela.
Um cheiro denso e rançoso encheu o ar. Rony cerrou os dentes enquanto seu estômago se revirava e depois olhou para baixo. A pele sob cataplasma havia ficado branca e esponjosa, como se fosse uma gigantesca cicatriz em forma de larva, como carne em decomposição. A ferida assim dizer havia sido costurada quando ele estava inconsciente, por isso tudo que Rony viu foi uma linha rosa denteada e endurecida com sangue na parte da frente do seu ombro. O inchaço e a inflamação forçaram os fios trançados de categute a penetrarem bem fundo na carne, enquanto gotas líquidas e claras se esvaíam do ferimento.
Gertrude mexia a língua enquanto o examinava, depois recolocou as bandagens e encarou Rony.
- Você está indo bem, mas o tecido pode ficar infeccionado. Não dá para dizer ainda. Se isso acontecer, teremos de cauterizar o seu ombro.
Rony acenou com a cabeça.
- Meu braço vai voltar ao normal assim que a ferida cicatrizar?
- Contanto que os pontos restaurem seus músculos apropriadamente. Também depende do uso que quiser fazer dele. Você...
- Eu terei como lutar?
- Se quiser lutar - disse Gertrude lentamente - sugiro que você aprenda a usar sua mão esquerda. - Ela deu alguns leves tapinhas em seu rosto e voltou correndo para a sua cabana.
Meu braço. Rony olhou para o braço como se ele não mais lhe pertencesse. Até aquele momento, ainda não havia percebido o quanto o seu senso de identidade estava ligado às condições do seu corpo. Qualquer ferimento em sua carne podia ferir a sua alma e vice-versa. Rony tinha orgulho do seu corpo, e a perspectiva de vê-lo deficiente o deixava em pânico, ainda mais sabendo que o dano poderia ser permanente. Mesmo se recuperasse o uso do braço, carregaria para sempre uma enorme cicatriz como lembrança do seu ferimento.
Pegando a sua mão, Elain conduziu Rony para os fundos da casa, onde ela esmigalhou menta numa chaleira e depois colocou-a no fogão para ferver.
- Você realmente a ama, não?
- O quê? - Ele a encarou, surpreso. Elain pousou uma mão sobre seu ventre.
- Hermione. - Ela sorriu. - Não sou cega. Sei o que você fez por ela e estou orgulhosa. Nenhum homem iria tão longe.
- Não significa nada, já que não posso libertá-la.
A chaleira começou a apitar.
- Você conseguirá, estou certa disso... de um jeito ou de outro. –E lain serviu o chá. - É melhor começarmos a nos preparar para a viagem. Vou separar as coisas de cozinha antes. Enquanto isso, você poderia ir lá em cima e me trazer todas as roupas, roupas de cama e qualquer coisa que julgue útil?
- Onde posso colocá-las? - perguntou Rony.
- Na sala de jantar está ótimo.
Como as montanhas eram muito íngremes e a floresta muito densa para as carroças, Rony percebeu que seus suprimentos estavam limitados ao que eles poderiam carregar e ao que pudessem empilhar sobre os dois cavalos de Horst, embora um desses tivesse de andar parcialmente descarregado para que Elain pudesse cavalgá-lo sempre que a trilha ficasse difícil demais para a sua gravidez.
Acrescentado a isso, estava o fato de que algumas famílias em Carvahall não possuíam montarias suficientes para as provisões e para os jovens, para os idosos e para os enfermos que não tivessem condições de seguir no mesmo ritmo dos outros a pé. Todos teriam de compartilhar recursos. A questão, no entanto, era com quem? Eles ainda não sabiam quem mais iria, além de Birgit e Delwin.
Assim sendo, quando Elain terminou de empacotar os itens que ela julgava serem essenciais - principalmente comida e agasalhos - pediu para Rony descobrir quem mais precisava de espaço extra para guardar suas coisas e se, pelo contrário, alguém tivesse espaço de sobra se poderia emprestar-lhe, pois havia várias coisas secundárias que ela queria levar, mas se não fosse possível, as abandonaria.
Apesar das pessoas que corriam pelas ruas, Carvahall estava triste por causa de uma lentidão forçada, uma calma artificial que não correspondia à agitação que se dava no interior das casas. Quase todos estavam em silêncio e andavam cabisbaixos, ocupados com seus próprios pensamentos.
Quando Rony chegou à casa de Orval, ele teve de bater a argola da porta durante quase um minuto antes do fazendeiro atender.
- Oh, é você, Martelo Forte. - Orval saiu para a varanda. - Desculpe pela demora, mas eu estava ocupado. Como posso ajudá-lo? - Ele bateu com o longo cachimbo negro na palma da mão e depois começou a rolá-lo nervosamente entre os dedos. Dentro da casa, Rony ouviu correntes sendo arrastadas pelo chão, e panelas e frigideiras batendo umas nas outras.
Rony explicou rapidamente a oferta e o pedido de Elain. Orval se voltou para o céu com os olhos meio fechados.
- Calculo que tenho espaço suficiente para minhas próprias coisas. Pergunte por aí e, se ainda precisar de espaço, eu tenho uma parelha de dois bois que podem levar algo a mais.
- Então você está indo?
Orval mudou de posição, ostentando um certo desconforto.
- Bem, eu não diria isso. Estamos apenas... nos preparando no caso de um outro ataque.
- Ah. - Confuso, Rony caminhou penosamente até a casa de Kiselt. Logo ele descobriu que ninguém estava disposto a revelar se havia decidido partir. Mesmo quando seus preparativos estavam notadamente à vista.
E todos tratavam Rony com uma deferência que ele achou perturbadora. Ela se manifestava em pequenos gestos: ofertas de condolência pela sua desgraça, silêncio respeitoso sempre que ele falava, e murmúrios de aprovação quando ele fazia uma afirmação. Era como se as suas proezas houvessem aumentando seu valor e intimidado as pessoas que ele conhecia desde a infância, distanciando-o delas.
Estou marcado, pensou Rony, enquanto mancava no meio da lama. Parou na beira de uma poça e se curvou a fim de olhar seu reflexo, curioso para saber se podia discernir o que o tornava tão diferente.
Ele viu um homem usando roupas esfarrapadas e manchadas de sangue, com uma corcunda e um braço amarrado ao peito. Seu pescoço e suas bochechas estavam protegidos por uma barba iminente, enquanto seu cabelo emaranhado estava enrolado numa espécie de auréola em volta da cabeça. O mais apavorante, no entanto, eram os seus olhos, que haviam afundado profundamente nas órbitas, dando-lhe uma aparência assustadora. De dentro daquelas duas cavernas mórbidas, seu olhar fervia como se fosse aço derretido, cheio de perdas, fúria e obsessão.
Um sorriso assimétrico se formava no rosto de Rony, fazia seu semblante ficar ainda mais chocante. Ele gostava da sua aparência. Combinava com os seus sentimentos. Agora ele entendia como havia conseguido influenciar os habitantes do vilarejo. Ele cerrou os dentes. Posso usar esta imagem. Posso usá-la para destruir os Ra'zac.
Levantando a cabeça, passou a andar de um jeito mais relaxado no meio da rua, feliz consigo mesmo. Naquele exato instante, Thane se aproximou e agarrou seu antebraço esquerdo vigorosamente.
- Martelo Forte! Você não sabe como estou feliz em vê-lo.
- Está mesmo? - Rony queria saber se o mundo inteiro havia mudado completamente durante a noite.
Thane acenou vigorosamente com a cabeça.
- Desde que atacamos os soldados, tudo parecia impossível para mim. Dói muito admitir isso, mas as coisas estavam assim. Meu coração batia forte o tempo todo, como se eu estivesse prestes a cair no fundo de um poço, minhas mãos tremiam, e eu me sentia terrivelmente doente. Achava que alguém havia me envenenado! Era pior do que a morte. Mas o que você me disse ontem me curou instantaneamente e me fez ver sentido no mundo novamente! Eu... eu não tenho nem como explicar como era o horror do qual você me salvou. Estou em dívida com você. Se precisar ou quiser alguma coisa, é só pedir que eu venho ajudá-lo.
Abalado, Rony retribuiu o aperto de mão do fazendeiro e disse:
- Obrigado, Thane. Obrigado. - Thane curvou sua cabeça, com lágrimas nos olhos, e depois soltou a mão de Rony e o deixou em pé, sozinho, no meio da rua.
O que eu fiz?



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