Sim, golpe de sorte
João olhou para o alto, seu pescoço estava quase quebrando quando conseguiu ver o topo da última torre. A ABM era fantástica, imponente, monstruosa. Pela primeira vez viu algo realmente belo e bem-feito no Brasil, estava surpreso. Caminhava com dificuldade, não que o terreno de pedras portuguesas (pelo menos parecia) fosse difícil de caminhar, o que era difícil era tirar toda aquela apreensão das suas pernas e braços: ele mais parecia um robô.
Com o aproximar dos portões João começou a reparar nos detalhes deles: um grande emblema com a sigla "ABM" banhada em ouro estava fixada na porta, com o B sendo dividindo entre os dois lados da porta. Ao subir os primeiros degraus de mármore os portões se abriram, revelando dois pequenos elfos exclamando frases convidativas: "seja bem-vindo senhor João" - nunca o haviam chamado de senhor -, "sua cama já esta pronta e quentinha lhe aguardando. Sabemos que foi uma viagem cansativa do Nordeste para cá".
Suas duas mãos foram então agarradas pelos elfos, que o puxaram para dentro do colégio. Bruxos! Muitos bruxos! Lindos uniformes, pretos com uma marca amarela quase dourada na manga. Como desejava colocar logo aquele uniforme e se sentir um aprendiz. Como queria aprender e ser um grande bruxo!
- Antes de mais nada o diretor quer lhe conhecer, é uma grande honra instruir o senhor na carreira de bruxo. Um futuro promissor, todos dizem... - falou o elfo mais animado e João ficou calado com as declarações, ainda processando o que tinha ouvido.
Em meio a todo àquele esplendor a porta do diretor parecia simples: de madeira podre, como a da sua casa no Nordeste. Ao entrar na sala tomou outro susto: o grande diretor da ABM estava de costas, olhando para uma lareira, sua camisa parecia a de um lavrador, toda furada e encardida. Sua calça, marrom, tinha várias marcas sujas de graxa ou qualquer coisa parecida. De repente o diretor falou.
- Acorde João, são quatro e meia da manha, está na hora de irmos para a fazenda.
João olhou sobressaltado e se sentiu chacoalhado sem nenhum motivo aparente.
- Vamos João, acor...
E João acordou de mais um sonho sobre a ABM...
***
Chamar de sonho seria um equivoco. Para João estava mais para um pesadelo, um dos piores da sua vida. Desejar algo demais e quase alcançá-lo deixam cicatrizes numa pessoa: “Onde errei?”, “Por quê?”,”Por que nada na minha vida dá certo?”.
A depressão tomou conta de João, não que soubesse o que era isso. Essas doenças eram desculpas de rico para faltar o trabalho e não era rico e nem poderia faltar. Mas mesmo assim sua produtividade diminuiu e se machucava quase todos os dias por não conseguir se concentrar no que fazia.
- Cuidado com esse facão, moleque! – tinha falado um trouxa que quase teve um braço amputado pelo facão descontrolado de João.
Após duas semanas João começou a se recuperar da “depressão” e a voltar se concentrar no trabalho. Claro, às vezes seus pesadelos voltavam e não conseguia pensar em mais nada o dia todo: “ABM, ABM, em uma semana começam as aulas e eu aqui, roçando o mato!”.
Além do trabalho normal de camponês João também era o “dono” de casa e a “mãe” de Joana. Era ele quem preparava o pobre café da manha para os três, enquanto seu pai preparava os equipamentos de trabalho. Ele que levava sua irmã para a vizinha, a 4 quilômetros de distância, que cuidaria dela durante o dia.
Apesar da carga de trabalho João não reclamava. Sentia-se bem por ter essas responsabilidades e amava demais sua irmã, levá-la a todos os lugares lhe dava satisfação, um aperto no coração de saber que Joana confiava inteiramente nele e o considerava como seu anjo protetor. Mesmo com a dupla jornada de trabalho João trabalhava como poucos nas fazendas das quais era contratado junto com seu pai. Aliás, os dois eram valorizados na região como os mais honestos e mais trabalhadores. "Tal pai, tal filho. Que belo filho você criou!", sempre dizia o maior fazendeiro da região, Horácio, ao pagar pelo serviço dos dois, por mais que o valor fosse uma miséria e não valesse nem pelo trabalho de um.
E foi justamente trabalhando para Horácio que o inesperado aconteceu.
***
Era quarta-feira, duas semanas e meia após a aparição do velho bruxo que conturbou sua vida. Era preciso aproveitar o pouco da chuva que caiu na madrugada e João trabalhava sem parar por quase oito horas. Seus músculos já não respondiam direito aos comandos e sua mente já não pensava mais. O sol forte batia sobre suas costas, fazendo todo o seu corpo parecer febril. Seu pai não estava com ele, estava do outro lado do campo, cuidando de uma região que precisava de ainda mais força.
A sensação de isolamento junto com aquele calor o fez imaginar estar no Saara ou algum outro deserto. No horizonte só via a terra seca, com pouco verde, e aquela distorção na imagem provocada pelo alto calor. Foi numa dessas olhadas para o horizonte que João achou estar vendo uma miragem, olhando a distorção viu duas pessoas correndo em sua direção. Uma alta, adulta, sendo puxada por uma pequena, uma criança, aparentemente.
Conforme iam se aproximando ele começou a reparar que a adulta não estava sendo puxada, mas sim sendo jogada pra frente com violência tal a vontade da criança de ir mais rápido.
- João!! João!! - a princípio ouvia apenas um murmúrio mas, conforme a distância entre as duas pessoas em relação a ele diminuía, percebia que era para ele que estavam gritando. Elas não, ela, era sua irmã quem puxava a vizinha pelo braço, quase arrancando seu braço.
João se ergueu, utilizando sua enxada como apoio e aguardou o carinhoso abraço de sua irmã:
- Eu pedi pra ela esperar vocês chegarem à noite mas não quis me ouvir, disse que era muito importante - disse a vizinha ao olhar a cara de espanto dele.
- Um garoto veio até a nossa casa tentar entregar isso - Joana lhe mostrou um envelope lacrado -, mas como não tinha ninguém ele veio até a gente para perguntar. Eu disse que era sua irmã e ele pediu para eu te entregar! Disse que era muito importante!
João tomou a carta das mãos da irmã e a primeira coisa que conseguiu ler foi o remetente, não leu o nome, apenas o carimbo de identificação:
"Carta Oficial - ABM"
O garoto abriu rapidamente o envelope e puxou o papel lá dentro. Ao ler o que estava escrito pôs-se a correr atrás do pai. A última coisa que sua irmã ouviu foi um berro no horizonte:
- EU NÃO ACREDITO!
***
- A situação está difícil, essa seca está arrasando nossos pastos e daqui a pouco eu não poderei contratar mais o seu serviço e o do seu filho.
- Eu entendo Horácio...
- Eu gosto muito de vocês, saiba que se algo acontecer vocês seriam os últimos a eu dispensar.
- Agradeço a sua confiança mas vamos torcer para que as chuvas apareçam, né?
- Claro! Claro! Eu só queria não ter que te surpreender...
- PAAAAAI!! - Horácio parou ao ouvir a voz de João a uma grande distância.
- Será que aconteceu alguma coisa? - disse o homem, preocupado com o garoto.
- Não sei - e pôs-se a correr pelo salão da casa até chegar a saída e quase topar com seu filho na porta. - O que houve João? Alguma cobra? Alguém invadindo as terras do senhor Horácio? - o fazendeiro acabara de chegar ao lado do pai de João, querendo entender o que estava acontecendo.
- Não! - João parou para respirar, seus olhos estavam todos encharcados, dava para ver que viera correndo e chorando por todo o percurso. Seu pai caiu de joelhos e secou suas lágrimas enquanto o abraçava. - O que houve? Como você pode perder tanta água assim nessa seca? - falou, numa pequena piada para aliviar o clima do filho.
João não falou nada, apenas lhe entregou o envelope. Com um olhar cético, o pai abriu o envelope. Seu primeiro susto foi ao reparar uma quantidade assombrosa de reais (não era tanto, mas mesmo assim ele nunca tinha encostado em tanto dinheiro na vida) que despertou até mesmo o interesse do fazendeiro.
Ao ler a carta, que continha apenas uma frase, o velho começou a chorar junto com seu filho, ajoelhado, abraçou-o e disse:
- Deus é bom, Deus é bom. Por Merlin, como Deus é bom!
Na carta estava escrito "Sei que é falta de educação mas às vezes é necessário ouvir atrás da porta".
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