Prólogo
Prólogo
O gelo cobria a alameda escavada desde a casa ao galpão de ordenha e deixava o caminho escorregadio. Envolvia ainda o ar da aurora um céu escuro, cinzelado, com lascas congeladas de estrelas brancas. Cada aspirada era como o golpe de frias lâminas que cortavam e anestesiavam a garganta, antes de serem expelidas em um frígido vapor.
Envolto em várias camadas de roupas de inverno, desde macacão comprido a cachecol tricotado, Harry Potter dirigiu-se ao galpão de ordenha para as primeiras tarefas do dia. Ao contrário dos três irmãos mais velhos, assobiava entre os dentes.
Simplesmente adorava a hora gelada e parada antes do amanhecer no inverno.
O irmão mais velho, Neville, tinha quase 17 anos e empreendia a atividade de dirigir uma fazenda como um contador lida com uma planilha. Harry sabia que tudo era números para ele, e achava que isso já bastava. Haviam perdido o pai dois meses antes, e os tempos eram difíceis.
Quanto a Draco, sua inquieta alma de 15 anos já olhava para além das colinas e campos da fazenda Potter. A ordenha, a alimentação e o cuidado com o gado eram apenas tarefas a cumprir. E Harry sabia, embora na verdade os quatro jamais conversassem sobre isso, que a morte do pai atingira Draco com mais força.
Todos amavam o pai. Teria sido impossível não amar Tiago Potter, com aquele vozeirão, as mãos enormes e o grande coração. E tudo que Harry aprendera sobre agricultura - tudo que amava na terra - viera direto dele.
Talvez por isso não sofresse tanto a perda. A terra estava ali. Logo, seu pai estava ali. Sempre.
Poderia ter conversado sobre essas idéias com Rony. Aos 14 anos, ele já era o melhor dos ouvintes, e o mais próximo da sua idade. Harry iria dar o grande salto para os 13 anos na terça-feira seguinte. Mas guardou o pensamento - e o sentimento - para si mesmo.
Dentro do galpão de ordenha, as vacas da primeira fila do rebanho mexeram-se e mugiram, açoitando os rabos enquanto eram preparadas. Tratava-se de um processo muito simples, que se poderia considerar até monótono. A limpeza, a alimentação, a ligação das máquinas que iriam bombear o leite para o tubo e do tubo para o tanque de armazenamento. Mas Harry gostava. Gostava dos cheiros, dos ruídos e da rotina. Enquanto ele e Rony cuidavam da segunda fila de gado, Draco e Neville conduziam as vacas já ordenhadas para fora.
Os quatro formavam uma boa equipe, rápida e eficiente apesar do frio anestesiante e do cedo da hora. Na verdade, era um trabalho que qualquer um deles podia fazer sozinho, ou com muito pouca ajuda. Mas tendiam a ficar juntos. Ainda mais naquele momento.
Ainda tinham, porém, de cuidar das galinhas e dos porcos, coletar os ovos, limpar a sujeira e espalhar feno fresco pelo chão. E tudo isso antes de engolirem às pressas o café-da-manhã e subirem no carro antigo de Neville para o trajeto até a escola.
Se pudesse, Harry teria pulado inteiramente a parte da escola. Não se aprendia em livros a arar e plantar, a colher ou prever o tempo absorvendo o ar. Nem se aprendia em livros a examinar os olhos da vaca e ver que estava doente.
Mas a mãe era firme no aprendizado com os livros, e quando era firme, também era impossível removê-la.
- Por que está tão feliz, diabos? - resmungando, Draco fez tinir os baldes de aço inoxidável ao juntá-los. - Esse assobio está me enlouquecendo.
Harry apenas sorriu e continuou assobiando. Só parou o tempo suficiente para uma conversa encorajadora com as vacas.
- E assim que se faz, senhoras, encham o balde. - Tão contente quanto qualquer um dos animais, Harry percorreu a fila das ordenhadoras, inspecionando cada uma.
- Eu vou bater nele. - anunciou Draco, a ninguém em particular.
- Deixe-o em paz. - disse Rony com brandura. - O cérebro dele já não funciona.
Draco sorriu.
- Está tão frio que se eu bater nele na certa vou quebrar os dedos.
- Vai esquentar um pouco hoje. - Harry afagou uma das vacas à espera nos currais para ser ligada à ordenhadeira. - Sobe para menos um grau, de qualquer modo.
Draco não se deu o trabalho de perguntar como ele sabia. O caçula sempre sabia.
- Grande coisa.
Saiu pisando fundo do galpão de ordenha, rumo ao celeiro e ao palheiro.
- Que é que está corroendo Draco? - resmungou Harry. - Alguma menina lhe deu o fora?
- Draco só odeia vacas. - disse Neville, retornando com cheiro de feno.
- Que idiotice. Você é um amor, não é, querida? - Harry deu à vaca mais próxima um aperto afetuoso.
- Harry está apaixonado pelas vacas. - Rony lampejou o pecaminoso sorriso Potter, com a covinha alardeando-se no canto da boca. - Ele tem mais sorte quando as beija do que quando beija as meninas.
Imediatamente insultado, Harry estreitou os olhos.
- Eu poderia beijar qualquer menina que eu quisesse... se eu quisesse.
Sob as camadas de roupa, ficou com o corpo magro e alto em total alerta.
Reconhecendo os sinais, Neville balançou a cabeça. Simplesmente não estava a fim de uma briga agora. Tinha muito trabalho a fazer, e um grande teste de literatura inglesa com que se preocupar. Rony e Harry estavam de igual para igual, e uma briga entre eles podia durar uma eternidade.
- E, você é um verdadeiro Don Juan. - Neville disse isso apenas para concentrar em si a atenção e a irritação de Harry. - Todas as menininhas estão fazendo biquinho e esperando em fila.
Rony emitiu um longo e alto ruído de beijo que deu a Neville vontade de bater-lhe com força. Quando Harry girou para fazer exatamente isso, Neville se interpôs.
- Mas antes de fazer o coração dela palpitar, grande amante, a gamela d'água vai se congelar toda. Estas vacas estão com sede.
Disparando um olhar a Rony, que prometia retaliação, Harry saiu pisando com força.
Sabia beijar uma menina, pensou, golpeando o gelo. Se quisesse. Só que não estava interessado.
Bem, talvez um pouco interessado, admitiu, soprando os dedos para aquecê-los. Algumas das meninas que conhecia começavam a tomar formas muito interessantes. E ele sentira um estranho tipo de comichão sob a pele ao ver a namorada de Neville, Sharilyn, enroscar-se nele quando se achavam amontoados no banco da frente do carro do irmão noutro dia.
Na certa podia beijá-la, se quisesse. Largou de lado a barra de ferro, olhando em direção ao celeiro de ordenha quando as estrelas piscaram acima. Isso mostraria a Neville uma ou duas coisinhas. Todos imaginavam que ele não sabia de nada porque era o mais moço. Mas sabia muita coisa. Pelo menos começava a imaginar muita coisa.
Erguendo mais uma vez a barra, continuou pisando ruidoso no terreno escorregadio e coberto de neve compacta até o chiqueiro. Sabia como funcionava o sexo, tudo bem. Fora criado em uma fazenda, não fora? Sabia como o touro ficava louco e de olhos brancos quando sentia o cheiro de uma vaca no cio. Apenas não achava a coisa toda muito divertida... mas isso antes de começar a notar como as meninas enchiam as roupas.
Despedaçou a camada de gelo para os porcos e, deixando aos irmãos o fim da ordenha, cuidou da ração.
Quem dera fosse adulto. Desejava saber fazer alguma coisa para provar que era adulto, além de defender-se sozinho em uma briga. Na verdade, só podia esperar ficar mais velho, e saber que então poderia assumir o controle de sua vida.
A terra era dele. Podia senti-la nos ossos, até onde a memória alcançava. Como se no nascimento alguém lhe houvesse sussurrado no ouvido. A fazenda, a terra. Isso era o que realmente importava. E se quisesse uma menina - ou todo um pelotão delas - também conseguiria.
Mas a fazenda era o que mais contava.
A terra, pensou, olhando por cima dos campos cobertos de neve, enquanto o céu se acinzentava com o amanhecer e tornava-se explosivo nos picos das montanhas ao leste. A terra que o pai cultivara, e o pai dele antes. E muito antes disso. Passando por secas e inundações. E pela guerra.
Haviam plantado as safras, e colhido, pensou, sonhando um pouco, enquanto se encaminhava para os campos. Mesmo quando chegou a guerra, bem ali, com o cinza dos Confederados e o azul da União confrontando-se naqueles mesmos campos e nas densas florestas logo além, a fazenda permanecera intacta.
Sabia exatamente o que teria sido revolver o solo rochoso atrás de um arado puxado a cavalo, as costas e os ombros doloridos, as mãos em carne-viva. Mas as safras seriam plantadas, e seria possível vê-las crescer. Milho brotando ereto, espalhando-se, o feno ondulando e ficando dourado com o verão.
Mesmo quando os soldados chegaram, mesmo quando chamuscaram com seus morteiros e pólvora preta as espigas de milho que secavam ao sol, a terra subsistiu. Os corpos haviam tombado ali, pensou, com um calafrio percorrendo a espinha. Homens gritaram e se arrastaram no próprio sangue.
Mas a terra na qual haviam combatido, pela qual lutavam, não mudara. Resistira.
Ele corou um pouco, perguntando-se de onde viera essa palavra, a palavra e a forte e quase atordoante emoção por trás dela. Alegrava-se por estar sozinho, alegrava-o que nenhum dos irmãos o visse. Não sabia como lhes dizer que sabia que a fazenda fora sua responsabilidade antes, e o seria mais uma vez.
Mas sabia.
Quando ouviu o ruído atrás de si, enrijeceu-se, e, apoiando de novo a barra no ombro, voltou-se com a expressão cuidadosamente fechada, sem emoção.
Não viu ninguém.
Ele engoliu em seco com força. Tinha certeza de que ouvira um ruído, um movimento, e depois um baixo e fraco grito. Não era a primeira vez que ouvia os fantasmas. Moravam ali, como ele, nos campos, nas matas, nas colinas. Mas apesar disso o aterrorizavam.
Reunindo toda a jovem coragem, contornou o galpão e dirigiu-se à velha casa de pedra que servia de defumador. Na certa era Rony, disse a si mesmo, ou Draco, ou até Neville, tentando assustá-lo, fazê-lo fugir em disparada, como quase fizera uma vez em que todos passaram a noite na velha Mansão Barlow, do outro lado da floresta. A casa mal-assombrada, onde os fantasmas eram tão espessos quanto as teias de aranha.
- Vá fazer alguma coisa de útil, Rony. - disse em voz alta, alta o bastante para acalmar o coração acelerado.
Mas quando contornou o prédio, não viu o irmão, nem quaisquer pegadas na neve. Por um instante, apenas uma fração de segundo, a batida do coração tropeçando, achou que vira uma figura.
Machucada, derramando sangue no chão, o rosto branco como a neve intocada, os olhos embotados de dor.
Me ajude. Por favor, me ajude, estou morrendo.
Mas quando ele avançou, nada encontrou. Nada. Até as palavras que soaram em sua cabeça dissolveram-se no vento.
Harry ficou ali parado, um rapazinho com toda a vida como um maravilhoso mistério ainda a desvendar-se, e fixou os olhos no chão intacto. Ficou ali, tremendo, enquanto o frio lhe atravessava as camadas de roupa, a carne, e penetrava-lhe os ossos.
Então ouviu os irmãos rindo, ouviu a mãe chamar da porta da cozinha, dizer que o café-da-manhã estava pronto e que eles se mexessem, senão iam chegar atrasados à escola.
Deu meia-volta e fechou a mente assustada ao que vira e ouvira.
Voltou para a sede da fazenda, e nada disse a ninguém sobre aquele momento chocante.
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