CAPÍTULO I
CAPÍTULO I
Londres, 1745
Harry Potter, o quarto conde de Ashburn, sentou-se à mesa de café de sua elegante casa citadina e desdobrou a carta que estivera esperando tão ansiosamente. Leu-a com atenção, pesando cada palavra. Seus olhos brilharam e sua boca entreabriu-se num leve sorriso. Era uma carta explícita, composta com cuidado. Não dizia nada de menos ou de mais, mas havia ali palavras que tocavam seu coração de patriota.
- Com os diabos, Harry! Quanto tempo ainda vai me fazer esperar?
Rony Weasley, o temperamental escocês de cabelos vermelhos que fora seu companheiro em viagens pela Itália e França, parecia a ponto de explodir.
Em resposta, Harry apenas levantou a mão branca e esguia, enfeitada com renda no punho. Estava acostumado com aquelas explosões e, em geral, isso o divertia. Mas, dessa vez, manteve a impaciência do escocês sob controle e tornou a ler a carta.
- É dele, não é? Do nosso príncipe!
Rony levantou-se da mesa e mediu o aposento com passadas largas, dando a impressão de que apenas as boas maneiras o impediam de arrancar a carta das mãos do amigo.
- Tenho tanto direito de lê-la quanto você.
Harry ergueu os olhos e deixou-os deslizar sobre o homem que andava nervosamente de um lado para outro da pequena sala. Não levou em conta sua revolta e disse apenas:
- A carta está endereçada a mim.
- Por um único motivo: é mais fácil enviar clandestinamente uma carta ao importante conde de Ashburn do que a um Weasley. Os escoceses estão todos na mira do governo!
Harry encolheu os ombros e virou a página, continuando a leitura. Rony lançou uma torrente de injúrias e depois desabou sobre a cadeira, resignado.
- Você tem o dom de esgotar a paciência de um santo!
- Obrigado.
HArry ficou longo tempo a fitar o encorpado papel timbrado e a escrita que se estendia através dele em linhas rápidas e disciplinadas. Depois colocou-o ao lado do prato e serviu-se de mais café. Sua mão estava tão firme como quando empunhava uma espada ou uma pistola. E, na verdade, essa carta era uma arma de guerra.
- Você tem razão, meu caro. E uma mensagem do príncipe Charles. - disse, por fim entre um gole e outro de café.
- Bom. E o que ele diz?
- Leia você mesmo.
Rony apoderou-se do papel com impaciência. Enquanto ele se engolfava na leitura da carta, lorde Ashburn pôs-se a estudar pensativamente a sala. O papel azul de parede, os tapetes de ricos desenhos e os móveis elegantes, quase delicados com suas curvas e cercaduras douradas, haviam sido escolhidos por sua avó, de quem lembrava não só o leve sotaque escocês como a teimosia.
As graciosas figurinhas de porcelana Meissen, que ela tanto apreciava, estavam ainda sobre a pequena mesa redonda colocada perto da janela. Quando era menino, tinha a permissão de olhar, mas não de tocar, e seus dedos fremiam na ânsia de segurar a estatueta representando a pastora de rosto delicado e longos cabelos de porcelana.
O retrato em moldura dourada de Lílian Evans Potter, a mulher forte e decidida que se tornara lady Ashburn, estava sobre a lareira e mostrava-se investida da dignidade inconsciente da riqueza. O porte ereto e a orgulhosa inclinação da cabeça diziam que ela podia ser persuadida, mas não forçada, convocada, mas não induzida.
Lílian transmitira a seu filho os mesmos cabelos pretos, os mesmos olhos verdes, as mesmas feições aristocráticas: testa alta, nariz reto e boca bem delineada. Mas não apenas isso. Transmitira-lhe também uma natureza apaixonada e senso de justiça.
Naquele instante, ele pensou na carta e nas decisões a serem tomadas, e fez um brinde silencioso ao retrato.
"A senhora gostaria que eu fosse. Todas as histórias que me contou, essa fé inquebrantável na causa dos Stuart que me pôs na cabeça durante os anos que cuidou de mim... Tenho certeza de que se ainda estivesse viva iria pessoalmente à Escócia. Por que então não ir em seu lugar?"
- Chegou a hora! - disse Rony com voz exultante. Ele tinha vinte e quatro anos, seis meses menos do que seu amigo, e esperara tanto tempo, que bradava por ação e por uma mudança.
Harry empurrou para trás sua alta cadeira esculpida e levantou-se.
- Você tem que aprender a ler nas entrelinhas, Rony. Charles conta ainda com o apoio dos franceses, mas está começando a perceber que o rei Luís prefere falar a agir.
Pensativo, ele ergueu a ponta da cortina e olhou para os jardins adormecidos. Explodiriam em cores e perfumes na primavera. Mas era improvável que estivesse ali para admirar esse espetáculo.
- Quando freqüentávamos a corte, Luís parecia muito interessado em nossa causa. Dava até a impressão de desprezar o títere dos Hanover que ocupa atualmente o trono inglês. - objetou Rony.
- Sim, mas isso não quer dizer que ele irá afrouxar os cordões de sua bolsa para o Príncipe galante ou pela causa dos Stuart! A idéia de Charles, armar uma fragata e tomar o rumo da Escócia, me parece mais condizente com a realidade. Mas essas coisas levam tempo.
- Não podemos começar a preparar o terreno?
Harry deixou a cortina cair e virou-se.
- Você conhece sua gente melhor do que eu. Que apoio o príncipe conseguiria na Escócia?
- O suficiente para entusiasmá-lo!
Rony levantou-se e bradou de modo arrebatado!
- Os clãs se levantarão por seu verdadeiro rei e lutarão contra o usurpador!
Depois fitou seu companheiro com ar pensativo. Sabia que ele arriscaria tudo com essa viagem: título, dinheiro, reputação e até a vida.
- Harry, eu posso levar a carta a meu pai e, com o auxílio dele, convocar todos os clãs da Alta Escócia. Não é necessário que você vá também.
O rosto moreno de Harry abriu-se num sorriso de quem verdadeiramente se divertia.
- Acha então que lá eu não teria nenhuma utilidade?
- Não quis dizer isso, Harry, e você sabe! - Rony colocou-lhe afetuosamente a mão no ombro. - Quem não gostaria de contar com um homem como você, que sabe falar e lutar, um aristocrata inglês disposto a arriscar tudo pela causa?
- E se eu não for bem-sucedido?
- Absurdo! Conheço o seu valor, amigo. Afinal, quem foi que me salvou a vida, e mais de uma vez, durante nossa viagem pela Itália e pela França?
- Não exagere, Rony. - Harry puxou a renda de seus punhos. - Não é de seu feitio.
O escocês deu um largo sorriso.
- Isso sem falar de sua habilidade de transformista. Num instante um exímio espadachim, no outro o arrogante conde de Ashburn!
- Meu caro, eu sou o conde de Ashburn!
Rony olhou-o com admiração. Ninguém melhor do que ele conhecia a força que se escondia sob aquelas rendas e aquelas maneiras lânguidas, quase afetadas.
- Não era o conde de Ashburn que lutou ombro a ombro comigo, quando nossa carruagem foi atacada nos arredores de Calais. Não era o conde de Ashburn que quase embriagou a mim, um Weasley, naquela taverna de Roma!
- Pois eu digo que era. Lembro-me muito bem dos dois incidentes e asseguro-lhes que era o conde de Ashburn em carne e osso!
Rony não objetou.
- Estou falando sério, Harry. Você devia ficar aqui e continuar a freqüentar festas e bailes, tomar parte nas caçadas. Poderia fazer mais pela causa permanecendo na Inglaterra, de sobreaviso.
- E se eu não concordar?
- Bom, se está decidido a ir, gostaria de tê-lo a meu lado, participando da luta.
Harry voltou a olhar para o retrato de sua mãe e então fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Naturalmente, meu amigo.
O tempo em Londres estava úmido e frio. Continuava imutável, três dias depois, quando os dois homens iniciaram sua jornada. Viajariam em direção ao norte no relativo conforto da carruagem de Harry e então fariam o resto do percurso a cavalo.
Para todos os efeitos, lorde Ashburn ia à Escócia para uma visita de cortesia à família de seu amigo. Apenas a alguns, um punhado de tóries e jacobitas fiéis, ele confiara secretamente os seus planos e as suas esperanças, e também a guarda de seu solar no campo e de sua mansão em Londres.
Tinha plena consciência de que passaria muito tempo, meses, talvez anos, até que pudesse voltar a instalar-se definitivamente na Inglaterra.
Levava consigo apenas o que podia carregar sem chamar atenção. Sua bagagem consistia de um baú com roupas, entre as quais acondicionara uma miniatura de sua avó e, por um capricho sentimental, a pastorinha de porcelana. Outro, menor, acomodava peças de ouro em quantidade maior do que a necessária para uma simples visita de cortesia. E, por precaução, fora colocado sob o assoalho da carruagem.
Avançavam lentamente. As estradas estavam tão escorregadias, que a marcha era um penoso exercício de equilíbrio. A carruagem atolava, obrigando muitas vezes o cocheiro a descer da boléia e a conduzir a parelha a pé. Harry teria preferido um passo mais rápido, mas um olhar à janela disse-lhe que o tempo na região norte só tendia a piorar. Então, com paciência que aprendera a cultivar através dos anos, recostou-se no espaldar, descansou os pés calçados de finas botas de couro no banco oposto, onde Rony cochilava, e deixou seus pensamentos voltarem para Paris.
No ano anterior, passara alguns meses divertidos naquele país. Era a França de Luís XV, que deslumbrava o mundo com a pompa e a magnificência de sua corte. Havia conhecido ali mulheres lindas, de cabelos empoados e trajes escandalosos, com quem mantivera delicadas ligações amorosas. Mas aquela indolente vida palaciana acabara por cansá-lo, fazendo-o ansiar por ação e propósitos.
A exemplo de outros Langston, ele havia sempre apreciado a intriga política, apoiando secretamente os Stuart, os legítimos herdeiros da coroa da Inglaterra, no seu entender. Assim, quando o príncipe Charles Edward, um jovem carismático, corajoso e decidido, chegara à França, oferecera-lhe sua ajuda em qualquer expedição que ele pudesse empreender para reconquistar seu direito ao trono.
Muitos o teriam considerado um traidor. E os Whigs, que apóiam o gordo usurpador alemão, gostariam de vê-lo enforcado se tivessem conhecimento daquela prova de lealdade. Mas preferia correr o risco; não havia ainda esquecido as histórias de 1715 e dos banimentos e execuções acontecidos antes e depois dela.
Enquanto a paisagem tornava-se mais agreste e Londres desaparecia na bruma da distância, tornou a pensar que a casa dos Hanover havia feito muito pouco para se tornar benquista na Escócia. O país estava dividido, tornando mais alarmante a sombra de guerra que pairava ora ao norte ora do outro lado do Canal. Se a Inglaterra quisesse tornar-se uma nação poderosa, necessitaria de um rei legítimo.
Afinal não haviam sido os olhos azuis do príncipe nem suas belas feições que o convenceram a apoiá-lo. Foram seus projetos ambiciosos e talvez a confiança juvenil de que ele podia e iria reclamar o que era seu.
Ao anoitecer pararam numa pequena estalagem de paredes de pedra, teto baixo e chão de terra, situada no limite entre a Baixa e Alta Escócia. O ouro de Harry e seu título granjearam lençóis limpos e uma saleta particular aos dois amigos.
Bem alimentados e aquecidos pelo fogo que crepitava na lareira, puseram-se a jogar dados e a tomar cerveja, enquanto o vento soprava das montanhas e batia nas janelas. E durante algumas horas, foram simplesmente dois jovens cavalheiros que compartilhavam de uma viagem aventurosa.
- Com os diabos, Harry! Você está com sorte esta noite.
O quarto conde de Ashburn recolheu os dados e as moedas de ouro com os olhos brilhantes de satisfação.
- E o que parece. Vamos tentar mais uma partida?
- Sua sorte pode mudar. - Rony sorriu e deixou os dados rolarem. - Vamos ver se desta vez você consegue me vencer.
Logo depois, entretanto, ele sacudia a cabeça.
- Parece que a sorte não vai abandoná-lo tão cedo. Como naquela noite em Paris, quando você jogava com o duque pelos favores de uma doce mademoiselle.
- Com ou sem os dados, eu já tinha conquistado o coração da bela dama.
O escocês tornou a jogar mais um punhado de moedas sobre a mesa.
- Espero que a sorte continue a sorrir-lhe nos meses que estão por vir.
Harry levantou a cabeça e assegurou-se de que a porta da saleta estivesse fechada.
- A sorte terá que sorrir não apenas para mim, mas também para o príncipe.
- Ele tem a ambição de que precisamos, ao contrário de seu pai. - Rony ergueu a caneca de cerveja. - Ao Príncipe Galante!
- Ele irá precisar muito mais do que sua bela aparência e sua conversa inteligente para convencer os escoceses. - observou Harry, retribuindo o brinde.
O amigo franziu a testa.
- Está duvidando da lealdade dos Weasley?
- Você é o único Weasley que eu conheço.
Antes que Rony começasse um discurso sobre seu clã, Harry apressou-se a perguntar:
- Não está feliz de rever sua família?
- Ah, sim! Não que eu não tenha me divertido em Roma e Paris. Mas um homem que nasceu na Alta Escócia prefere morrer na sua terra e entre sua gente.
O escocês tomou um gole longo de cerveja, pensando nos pântanos cor de púrpura e nos lagos azuis e cristalinos.
- Segundo minha mãe, estão todos bem. Mas eu me sentiria mais tranqüilo vendo isso com meus próprios olhos.
Ele fez uma pausa demorada, antes de continuar:
- Malcolm deve estar com seus nove ou dez anos agora e parece que é um garoto endiabrado. - Sorriu orgulhoso. - Como todos nós, aliás.
- Você me disse que sua irmã é um anjo.
- Gwen. - A voz de Rony encheu-se de ternura. - Sim, ela é meiga, paciente e linda como um anjo.
- Você não tem outra irmã?
- Sim, Gina. Mas só Deus sabe por que lhe deram esse nome. Ela é uma verdadeira gata selvagem!
- E bonita ao menos?
- Não é feia. Em sua última carta, mamãe contou-me que alguns rapazes tentaram fazer-lhe a corte, mas que ela os mandou passear.
- Talvez eles não tenham sabido... sensibilizar seu coração.
- Sensibilizar Gina? Impossível! Tenho pena do homem que se atrever a pôr os olhos nela!
- Parece que sua irmã é uma amazona!
Harry imaginou uma jovem robusta e sadia, com as feições de Rony e uma desordenada massa de cabelos vermelhos a emoldurar o rosto redondo. "Saudável como uma ordenhadora", pensou "e igualmente simplória."
- Confesso que prefiro os tipos mais meigos e dóceis.
- Ela não é dócil, mas é sincera e inteiramente devotada à família. Já lhe falei da noite em que os dragões chegaram a Glenroe?
Os olhos de Rony tornaram-se sombrios.
- Gina era apenas uma menina naquela época e estava assustada. Mas cuidou de minha irmã e distraiu as outras crianças até nós voltarmos. Não chorou quando nos viu. E, de olhos enxutos, nos contou tudo.
Harry pôs a mão sobre o braço do amigo.
- Não é hora de vingança, mas de justiça.
- Conseguirei ambas. - murmurou Rony por entre os dentes e jogou novamente os dados.
Os dois viajantes partiram bem cedo na manhã seguinte. Dessa vez foram a cavalo, seguidos pela carruagem que os acompanhava em marcha moderada.
Encontravam-se agora nas terras de que Harry ouvira falar quando criança. Era uma região rústica e solitária, entremeada de altos penhascos e charnecas desoladas. Picos proeminentes, algumas vezes cortados por cachoeiras espumantes e rios piscosos, penetravam no cinzento opalescente do céu.
Em alguns sítios, pedras brutas, de grandes dimensões, distribuíam-se em círculos, como que semeados por mão cuidadosa. Pareceria um lugar antigo, reservado aos ritos da superstição druídica, se não fosse a visão de algum chalé, com a fumaça a elevar-se da abertura central no teto de colmo.
O solo estava congelado e o vento soprava em rajadas coléricas, carregando em seu rastro nuvens de neve desfeita em partículas, penetrando em seus grossos casacos de lã e enregelando-os até os ossos. A luz do sol era pálida e coada e seus raios oblíquos pareciam tão frios quanto os da lua.
Cavalgavam a toda brida, quando a estrada permitia. Mas, em geral, eram obrigados a abrir caminho por trilhas cobertas com neve que chegava até a cintura. Cautelosos, passavam ao longo dos fortes que os ingleses haviam construído e evitavam até a hospitalidade que lhes seria oferecida prazerosamente em cada chalé.
A hospitalidade, como Rony avisara, envolveria perguntas sobre o motivo da jornada, sobre suas famílias e seu destino. Forasteiros eram raros na Alta Escócia e a notícia de sua presença naquelas paragens solitárias logo correria de aldeia em aldeia e voaria de boca em boca.
Seguiram, portanto, por estradas secundárias e pararam numa taverna para tomar uma refeição quente, enquanto os cavalos descansavam. Ali, o assoalho era sujo, a sala escura e enfumaçada, cheirando a peixe e aos odores de seus freqüentadores. Não era exatamente um lugar apropriado para receber o quarto conde de Ashburn. Mas o fogo era acolhedor e o taverneiro prometeu-lhes uma refeição razoável.
Retiraram os grossos capotes, que puseram a secar diante do fogo da lareira. Harry usava calção de montaria complementado por um casaco sem enfeites. Mas, embora simples, o traje assentava sem uma ruga sobre seus ombros amplos. Os botões eram de prata, as botas de couro fino. Os abundantes cabelos negros estavam atados na nuca por uma fita e em seu dedo mínimo brilhavam o sinete de família e uma esmeralda. Esses detalhes acentuavam o belo porte que atraía os olhares dos presentes.
- Neste buraco não estão acostumados a ver tipos como você. - observou Rony.
À vontade em seu saiote escocês, com o raminho de pinheiro de seu clã enfiado na faixa, ele devorava com apetite seu pastelão de carne.
Harry correu os olhos pela sala, enquanto dizia:
- Tamanha admiração faria a alegria de meu alfaiate.
Rony ergueu a caneca de cerveja e pensou com agrado no uísque que iria tomar com seu pai, naquela noite.
- Não são apenas seus trajes. Você pareceria um conde mesmo nos andrajos de um mendigo.
Terminada a refeição, ele jogou algumas moedas na mesa e levantou-se.
- Os cavalos já descansaram, portanto não vamos perder tempo. Estamos nos limites do território dos Campbell, inimigos de sangue da minha família. Não quero correr o risco de levar um tiro pelas costas!
Enquanto vestiam seus capotes, três homens saíram furtivamente da taverna, deixando penetrar na sala uma fria rajada de ar.
Rony continha a custo a impaciência. De volta à Alta Escócia, ele não queria outra coisa senão rever seu lar, sua família.
O caminho que agora seguiam conduzia a um pequeno vale, atravessado por um riacho de margens pantanosas, para logo depois penetrar na charneca, onde cresciam em apenas pequenos zimbros entre os matacões. Vez por outra, avistavam fileiras de chalés encravados no sopé das colinas mosqueadas de sol, e gado pastando no chão desigual. Embora tivessem ainda algumas horas de viagem pela frente, Rony podia quase sentir o aroma familiar de sua casa e da floresta que a rodeava.
- Harry, veja que paz!
Mas Harry endireitara-se subitamente na sela.
- Guarde seu flanco esquerdo. - gritou ele. - Notei qualquer coisa brilhar atrás daqueles matacões.
Nem bem acabara de falar, dois cavaleiros irromperam de trás de um grupo de rochas e galoparam contra eles. Ambos montavam animais vigorosos, pôneis escoceses de crinas ao vento, e embora seus capotes estivessem puídos e sujos, o aço de suas lâminas brilhava perigosamente ao sol da tarde. Antes que as armas de chocassem, espelindo faíscas, Harry teve tempo para lembrar se os vira na taverna.
Ao lado dele, Rony puxou a espada contra outros dois e as colinas ecoaram com o tinido das armas e com o estrépito das patas dos cavalos. Sobre suas cabeças, uma águia dourada voava em círculos e esperava.
Os bandidos que haviam atacado Harry haviam subestimado seu valor. As mãos dele podiam ser delicadas, o corpo esguio como o de um dançarino, mas os punhos eram fortes e elásticos. Usando os joelhos para guiar sua montaria, ele lutava com uma espada numa das mãos e a adaga na outra. As duas armas eram guarnecidas com lavores de ouro, porém as lâminas eram feitas para matar.
Ouvia Rony gritar e praguejar, ante a arremetida dos dois homens poderosamente armados, mas continuou a lutar em silêncio. Com perícia admirável, conservava os antagonistas a distância, ora voltando-se com a agilidade de um falcão, ora mantendo-se fora do alcance dos golpes dos inimigos, investindo às vezes contra um, às vezes contra outro e distribuindo-lhes golpes formidáveis sem lhes dar tempo de atacar.
Súbito, um deles lançou um grito medonho, que não durou mais do que um segundo. Ele vacilou e caiu por terra, o sangue manchando a neve alva. Seu animal, assustado com o cheiro da morte, correu para as rochas arrastando as rédeas. Furioso, o outro assaltante contra-atacou com redobrada ferocidade.
Seu ataque quase apanhou o conde fora de guarda. Ele sentiu o fio da lâmina rasgar-lhe a carne do ombro, mas conseguiu devolver os golpes do adversário com a mesma destreza, obrigando-o a recuar pouco a pouco para as rochas. Então os olhos fixos no rosto do homem, visou-lhe o coração com fria precisão e trespassou-o.
Tendo realizado essa dupla proeza, ele esporeou seu cavalo na direção de Rony. O escocês lançava por terra um dos bandidos e agora ia-se aproximando do outro com a espada erguida. Mas antes que pudesse baixá-la, seu cavalo deslizou no solo escorregadio, e seu adversário aproveitou a oportunidade para vibrar-lhe um golpe no flanco esquerdo.
Harry partiu como um raio em seu auxílio. Ao ver-se em situação difícil, o bandido esporeou seu pônei, e galopou para a trilha que serpeava por entre as rochas, desaparecendo de vista.
- Rony! Você está ferido?
- Sim, por Deus! - O escocês fez força para manter-se na sela. - Está ardendo como fogo.
- Deixe-me ver isso.
- Não há tempo, aquele chacal pode voltar com reforço. Vamos sair daqui. Chegaremos em casa antes do anoitecer. - Dito isto, ele lançou seu cavalo num galope desenfreado.
Cavalgaram sem descanso. Harry mantinha um olho na estrada, para evitar uma nova emboscada, e o outro em Rony. O grande escocês estava pálido, mas dominava bem o ginete. Apenas uma vez, diante de sua insistência, ele concordou em fazer uma parada para que seu ferimento pudesse ser convenientemente avaliado.
Harry não gostou do que viu. O corte era profundo e sangrava abundantemente. Obrigou-o a tomar um longo trago de aguardente e, quando seu rosto pálido recobrou a cor, ajudou-o a montar.
Penetraram no bosque quando nuvens de formas indistintas barravam o céu como espesso edredrom, escondendo o sol. O ar cheirava a pinho, mesclado a um leve odor de fumaça que vinha de um chalé distante. Uma lebre cruzou a picada e desapareceu no meio das moitas. Atrás dela, como um clarão de luz, seguiu um esmerilhão. Framboesas de inverno, grossas como polegares, pendiam de arbustos espinhosos.
- Eu costumava me esconder nestes bosques, quando era criança. Foi aqui que roubei o primeiro beijo de minha namorada. - disse Rony reminiscente. - Não sei por que parti e deixei tudo isto.
- Para voltar como um herói. - observou Harry.
O escocês esboçou um leve sorriso.
- Desde que o mundo é mundo, sempre houve um Weasley na Alta Escócia. - Ele virou-se para Harry e disse com orgulho: - Saiba que minha linhagem é real, conde de Ashburn!
- Pois está deixando seu sangue real nestas trilhas. Para casa!
Cavalgaram lentamente. Quando passaram diante dos primeiros chalés, gritos alegres elevaram-se no ar. Fora das casas, algumas feitas de pedra e madeira, outras de barro socado, havia gente esperando. Embora fraco, Rony parou para cumprimentá-las.
Minutos depois, transpunham, lado a lado, a colina, avistando ao mesmo tempo o solar dos Weasley. Da ampla chaminé, uma espiral de fumaça subia para o céu escuro. Luzes brilhavam atrás das vidraças e a ardósia azul do telhado cintilava como prata aos últimos raios do sol poente.
- Meu lar! - exclamou Rony, um sorriso largo, infantil iluminando-lhe o rosto.
Harry olhou com agrado para a encantadora construção de quatro andares, enfeitada com torres e ameias. Embora o tamanho indicasse que o proprietário era pessoa rica, a simplicidade de suas linhas revelava que fora feito principalmente para proporcionar conforto, sem a preocupação do luxo ou pompa.
- É um lugar encantador.
Súbito, uma jovem destacou-se do séqüito que se formava atrás deles. Harry ouviu-a gritar e virou-se na sela para olhá-la. Ela vestia o manto axadrezado de seu clã. Trazia uma cesta numa das mãos e com a outra segurava a barra da saia, proporcionando uma deliciosa visão de saiotes e de pernas bem torneadas.
Viu-a avançar, rindo, e seus cabelos, da mesma cor dos raios do sol poente, esvoaçaram atrás dela. Sua pele, clara como alabastro, estava rosada pelo frio e pela alegria que lhe transbordava dos olhos. Suas feições eram delicadamente esculpidas, mas a boca era cheia e sensual. Harry contemplou-a, embevecido e pensou na pastora de porcelana que ele admirara e amara quando era criança.
- Rony! - chamou ela com voz baixa, mas ricamente modulada.
Depois, sem fazer caso dos cavalos que esgaratavam o chão, impacientes, agarrou as rédeas do rapaz e levantou um rosto que fez Harry suspirar.
- Não recebemos nenhuma carta anunciando a sua volta. Não sabe mais escrever ou estava com muita preguiça?
- É desse modo que recebe seu irmão e seu convidado? O mínimo que podia fazer era mostrar-se educada com meu amigo! - Ele virou-se para Harry. - Lorde Ashburn, minha irmã Gina.
Harry inclinou a cabeça.
- Srta. Weasley...
Preocupada com a palidez do irmão, Gina mal dignou-se a olhá-lo.
- Que houve com você, Rony? Está ferido?
Em resposta ele escorregou da sela e caiu ao chão, inconsciente.
- Oh, Senhor... O que é isto? - perguntou ela, alarmada ao ver o sangue que manchava o casaco dele.
Harry desmontou e ajoelhou-se ao lado do amigo.
- Foi ferido e o corte abriu-se novamente. Vamos levá-lo para dentro de casa.
Gina ergueu a cabeça, os olhos verdes cintilando de mal contida fúria.
- Afaste-se dele, inglês! Meu irmão chega em casa quase morto e o senhor sem um arranhão! Não é estranho?
"Coll subestimou sua beleza, mas não seu gênio!", pensou Harry.
- Posso explicar isso depois que cuidarmos dele. - disse, erguendo o amigo nos braços com facilidade.
- Leve sua explicação de volta para Londres!
Ele olhou-a com tal firmeza, que ela corou.
- Acredite, senhora, não é essa minha intenção. Queira, por favor, tomar conta dos cavalos que eu levarei seu irmão para dentro.
Gina abriu a boca, mas um olhar ao rosto pálido de Rony foi suficiente para fazê-la engolir as palavras ferinas que se haviam formado em seus lábios. Porém, enquanto o inglês levava seu irmão para dentro de casa, lembrou-se do que acontecera na última vez em que outro inglês havia transportado aquele umbral. Então, deixou cair as rédeas dos dois cavalos e correu atrás dele vociferando ameaças.
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