Capitulo 37 - ADIVINHAÇÕES
Capitulo 37 - ADIVINHAÇÕES
- É mentira. - disse Rony furioso, andando de um lado para o outro, enquanto o Aprendiz pingava miseravelmente, perto da lareira.
As roupas de lã verde do Aprendiz libertavam um cheiro desagradavelmente bolorento, que Tia Zelda reconheceu imediatamente como sendo o cheiro de feitiços falhos e Magya Negra estagnada. Abriu umas quantas jarras de Barreira Odorosa, e não tardou que o ar cheirasse agradavelmente a torta de limão e merengue.
- Está só dizendo isso para nos desestabilizar. - prosseguiu Rony indignado. - Com certeza que esse pequeno porco não se chama Harry Potter.
Gina pôs um braço em volta de Rony. O Garoto 412 gostaria de conseguir entender o que estava acontecendo.
- Quem é Harry Potter? - perguntou.
- O nosso irmão. - respondeu Rony. O Garoto 412 ficou ainda mais confuso.
- Morreu quando ainda era bebê. - explicou Gina. - Se tivesse sobrevivido, teria poderes Mágykos fabulosos. O nosso pai também é um sétimo filho, entende. - continuou Gina - Mas isso nem sempre faz de você um grande Mágyko.
- Do Tiago não fez com certeza. - comentou Tia Zelda.
- Quando o Papai casou com a mamãe, tiveram seis filhos. Tiveram o Gui, o Carlinhos, o Fred e o Jorge, o Neville e o Rony. E depois tiveram o Harry. Por isso ele era o sétimo filho de um sétimo filho. Mas morreu. Logo depois de nascer. - disse Gina. Estava recordando aquilo que Lílian tinha lhe contado numa noite de Verão, quando ela já estava aconchegada na sua caminha-gavetão. - Sempre pensei que fosse o meu irmão gêmeo. Mas afinal, não era...
- Oh. - disse o Garoto 412, pensando no complicado que devia ser ter uma família.
- Por isso, está excluído que ele possa ser nosso irmão. - Rony estava dizendo. - E mesmo que fosse, eu não o queria. Meu irmão é que ele não é.
- Bem, - disse Tia Zelda - só há uma maneira de esclarecermos isto. Podemos ver se ele está dizendo a verdade, do que eu duvido muito. Embora sempre me tenha interrogado acerca de Harry... Por qualquer motivo, nunca me pareceu que a história batesse muito bem. - Abriu a porta e olhou para a Lua. - Uma Lua corcovada. - disse ela. - Quase Lua cheia. Não é um mau momento para adivinhações.
- O quê? - perguntaram Gina, Rony e o Garoto 412 em uníssono.
- Vou lhes mostrar. - respondeu Tia Zelda. - Venham comigo.
O tanque dos patos era o último lugar onde qualquer um deles pensava ir parar, mas ali estavam eles, olhando para o reflexo da Lua na água negra e parada, tal como Tia Zelda lhes tinha dito para fazerem.
O Aprendiz estava firmemente entalado entre Rony e o Garoto 412, para o caso de tentar mais uma fuga.
O Garoto 412 estava satisfeito por Rony já confiar nele, depois de tanto tempo. Há não muito tempo, era Rony que estava tentando impedir a ele de tentar a fuga. E agora ali estava, a apreciar o mesmo tipo de Magya contra a qual o tinham prevenido no Exército da Juventude: uma Lua Cheia e uma Bruxa Branca, os seus penetrantes olhos azuis a arder sob o Luar, a mover os braços erguidos no ar e a falar sobre bebês mortos. O que custava a acreditar ao Garoto 412 não era que aquilo estivesse acontecendo, mas o fato de a ele tudo aquilo parecer bastante normal. Não só isso, como compreendeu que as pessoas com quem estava ali em volta do tanque dos patos - Gina, Rony e Tia Zelda - significavam muito mais para ele do que qualquer outra pessoa em toda a sua vida. Tirando o Rapaz 409, claro.
E, claro, passava bem sem o Aprendiz. O Aprendiz fazia-o recordar-se de todos aqueles que o tinham atormentado ao longo da sua vida passada. A sua vida passada.
Era assim, decidiu o Garoto 412, que ia ser. Acontecesse o que acontecesse, nunca mais ia voltar para o Exército da Juventude. Nunca.
Tia Zelda disse, em voz baixa:
- Agora vou pedir à Lua que nos mostre Harry Potter.
O Garoto 412 estremeceu e cravou os olhos na água negra, completamente parada, do tanque. No centro do tanque estava um reflexo perfeito da Lua, tão detalhado que os mares e montanhas da Lua estavam mais nítidos do que ele jamais os tinha visto.
Tia Zelda ergueu os olhos para a Lua e disse:
- Irmã Lua, Irmã Lua, mostre-nos, se assim quiser, o sétimo filho de Tiago e Lílian. Mostre-nos onde ele está agora. Mostre-nos Harry Potter.
Todos contiveram a respiração, e olharam, expectantes, para a superfície do tanque. Gina sentia-se apreensiva. Harry estava morto. O que iriam ver? Um pequeno amontoado de ossos? Uma minúscula sepultura?
Gerou-se o silêncio. O reflexo da Lua começou a crescer até que um enorme círculo branco, quase perfeito, encheu o tanque dos patos. A princípio começaram a surgir sombras vagas no círculo. Lentamente foram se tornando mais definidas, até que viram... os seus próprios reflexos.
- Estão vendo. - disse o Aprendiz. - Pediram para me ver, e lá estou eu. Eu tinha lhes dito.
- Isso não quer dizer nada. - disse Rony indignado. - É apenas o nosso reflexo.
- Talvez. Talvez não. - disse Tia Zelda, pensativa.
- Podemos ver o que aconteceu a Harry quando nasceu? - perguntou Gina. - Assim ficaríamos sabendo se ele está vivo ou não, não é?
- Sim, ficaríamos. Vou perguntar. Mas é muito mais difícil ver coisas do passado. - Tia Zelda respirou fundo e disse: - Irmã Lua, Irmã Lua, mostre-nos, se assim quiser, o primeiro dia da vida de Harry Potter.
O Aprendiz fungou e tossiu.
- Silêncio, por favor. - pediu Tia Zelda.
Os seus reflexos desapareceram lentamente da superfície do tanque, e foram substituídos por uma cena ricamente detalhada, nítida e brilhante contra a escuridão noturna.
A cena passava-se num lugar que Rony e Gina conheciam muito bem: a sua casa, no Castelo. Como num quadro que se estendesse perante eles, as figuras no compartimento permaneciam imóveis, paradas no tempo. Lílian estava deitada numa cama improvisada, segurando um bebê recém-nascido, com Tiago a seu lado. Gina prendeu a respiração. Até agora, ainda não tinha percebido o quanto sentia saudades de casa. Lançou um olhar a Rony, que tinha um ar de concentração no rosto que Gina conhecia bem, como sendo o ar de Rony não parecendo perturbado.
Subitamente, todos exclamaram de surpresa. As figuras tinham começado a se mover. Silenciosa e suavemente, como uma fotografia em movimento, começou a desenrolar-se uma cena perante aquela audiência hipnotizada, hipnotizada, com exceção de um.
- A Câmara Obscura do meu Mestre é mil vezes melhor do que este tanque velho. - disse o Aprendiz, com desprezo.
- Calado. - soprou-lhe Rony zangado.
O Aprendiz suspirou audivelmente e começou a mover-se, inquieto. Era tudo uma grande treta, pensou. Aquilo não tem nada a ver comigo.
Mas o Aprendiz enganava-se. Os acontecimentos que estava testemunhando tinham mudado completamente sua vida.
A cena desenrolou-se perante eles:
A sala dos Potter parece sutilmente distinta. É tudo mais novo, e parece mais limpa. Lílian Potter também é muito mais nova; o seu rosto mais cheio e não se vê tristeza pairando-lhe nos olhos. Na verdade, parece absolutamente radiante, segurando seu filho recém-nascido, Harry. Tiago também é mais novo; o cabelo menos esparso e o rosto menos marcado pelas preocupações. Seis rapazes brincam juntos, silenciosamente.
Gina sorriu, melancólica, percebendo que o menor de todos, com o tufo de cabelo desgrenhado tem que ser Rony. Parece tão engraçado, pensou, aos pulos, entusiasmado e querendo ver o bebê.
Tiago pega Rony no colo e segura-o de maneira a poder ver o seu novo irmão. Rony estende uma mãozinha pequena e rechonchuda e acaricia suavemente a bochecha do bebê. Tiago diz alguma coisa e pousa-o no chão para que brinque com os irmãos mais velhos.
Agora Tiago dá um beijo em Lílian e no bebê, despedindo-se.
Detém-se para dizer alguma coisa a Gui, o mais velho, e por fim sai.
A imagem desbota-se, as horas estão passando.
Agora a casa dos Potter é iluminada por velas. Lílian está cuidando do bebê, e Gui está silenciosamente lendo uma história aos irmãos mais novos. Uma figura enorme, vestida de azul-escuro, a Matrona Parteira, aparece na cena. Pega o bebê do colo de Lílian e deita-o na caixa de madeira que faz as vezes de berço. De costas para Lílian, retira um pequeno frasquinho de líquido negro do bolso e mergulha os dedos nele. Depois, olhando em volta de forma culpada, a Parteira esfrega os dedos escurecidos ao longo dos lábios do bebê.
Harry torna-se imediatamente inerte.
A Matrona Parteira volta-se para Lílian, colocando-lhe o bebê inânime nos braços. Lílian está fora de si. Coloca sua boca sobre a do bebê, procurando reanimá-lo, mas Harry continua tão mole como um farrapo. Não tarda que Lílian comece também a sentir os efeitos da droga. Desorientada, cai para trás contra as almofadas.
Observada por seis rapazinhos horrorizados, a Matrona Parteira tira um grande rolo de ligaduras do bolso e começa a envolver Harry, principiando pelos pés e prosseguindo habilmente pelo corpo acima, até chegar à cabeça, onde se detém por momentos para confirmar a respiração do bebê. Satisfeita, continua com o embalsamamento, deixando o narizinho a espreitar para fora, até o bebê se parecer com uma pequena múmia egípcia.
Subitamente, a Matrona Parteira corre para a porta, levando Harry consigo. Lílian força-se a despertar de seu sono drogado, mesmo a tempo de ver a Matrona escancarar a porta e ir contra um chocado Tiago, que traz a capa fortemente apertada à sua volta. A Matrona empurra-o para o lado e desata a correr pelo corredor.
Os corredores d’Os Bairros estão iluminados com tochas que ardem vivamente, projetando sombras bruxuleantes sobre a figura sombria da Matrona Parteira enquanto corre, apertando Harry contra o corpo. Depois de algum tempo, emerge numa noite de neve e abranda o passo, olhando em volta de forma ansiosa. Curvada sobre o bebê, apressa-se pelas estreitas ruas desertas até chegar a uma praça larga.
O Garoto 412 soltou uma pequena exclamação.
Era a terrível Parada do Exército da Juventude.
A figura negra atravessa a extensão da parada coberta de neve, movendo-se precipitadamente como um escaravelho negro sobre uma toalha. O guarda à porta da caserna cumprimenta a Parteira e deixa-a entrar.
No interior sombrio da caserna a Matrona Parteira abranda o passo. Desce cuidadosamente uma escadaria íngreme e estreita, que conduz a uma cave salobra, cheia de catres desocupados alinhados em fileiras. E o que em breve irá se tornar a creche do Exército da Juventude, onde serão criados todos os órfãos e filhos indesejados do Castelo. (As meninas vão para o Salão de Treino para Serviço Doméstico.) Ali já se encontram quatro desafortunados ocupantes.
Três são filhos trigêmeos de um dos Guardas, que tinha se atrevido a dizer uma piada sobre a barba do Supremo Guardião. O quarto é o próprio filho da Matrona Parteira, com seis meses de idade, e que fica na creche enquanto ela está trabalhando. A ama, uma mulher idosa com uma tosse constante, está afundada na sua cadeira, cochilando por entre ataques de tosse. A Matrona Parteira pousa rapidamente Harry num dos catres vazios e desenrola as ligaduras.
Harry boceja e flexiona os punhos minúsculos.
Está vivo.
Gina, Rony, o Garoto 412 e Tia Zelda continuavam a olhar para a cena que se desenrolava perante eles no tanque, percebendo que aquilo que o Aprendiz dissera parecia ser muito verdadeiro. O Garoto 412 tinha uma sensação desagradável na boca do estômago. Detestava ter que ver mais uma vez a caserna do Exército da Juventude.
Na semi-escuridão da creche do Exército da Juventude, a Matrona Parteira senta-se, cansada. Não pára de olhar ansiosamente para a porta, como se esperasse a entrada de alguém a qualquer momento. Ninguém aparece.
Um ou dois minutos mais tarde levanta-se da cadeira e vai até o catre onde o seu próprio filho está chorando e pega-o no colo.
Nesse momento a porta se abre, a Matrona Parteira dá meia volta, pálida, assustada.
Uma mulher alta, vestida de preto está à porta. Sobre as vestes negras, bem passadas, veste o avental branco, engomado, de uma enfermeira, mas em torno da cintura usa um cinto vermelho-sangue, exibindo as três estrelas negras de Voldemort.
Veio buscar Harry Potter.
O Aprendiz não estava gostando nada do que estava vendo. Não queria ver a família de classe baixa da qual fora resgatado, não significava nada para ele. Também não queria ver o que lhe acontecera quando bebê. O que lhe interessava isso agora? E estava farto de estar ali no frio com o inimigo.
Furioso, o Aprendiz deu um pontapé num pato que estava sentado aos seus pés, atirando-o diretamente na água. Berta aterrissou com um chapinhar de água no meio do tanque, e a imagem desfez-se num milhar de fragmentos luminosos.
O feitiço tinha sido quebrado.
O Aprendiz começou a correr. Correu pelo caminho que levava até o Mott, tão depressa quanto era capaz, dirigindo-se à esguia canoa negra. Não foi muito longe.
Berta, que não tinha encarado nada bem ter sido chutada para o tanque, foi atrás dele. O Aprendiz ouviu o adejar das poderosas asas da pata apenas um segundo antes de sentir uma bicada na nuca, e o súbito esticão do seu manto quase a esganá-lo. A pata firmou o bico sobre o capuz, e arrastou-o até Rony.
- Oh, cuidado. - disse Tia Zelda, parecendo preocupada.
- Eu não me preocuparia com ele. - disse Rony, zangado, alcançando o Aprendiz e agarrando-o com força.
- Eu não estava preocupada com ele. - disse Tia Zelda. - Só não queria que Berta deslocasse o bico.
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