Capitulo 21 - RATTUS RATTUS

Capitulo 21 - RATTUS RATTUS



Capitulo 21 - RATTUS RATTUS

- Como voltou tão depressa? - perguntou Gina ao Garoto 412.
Rony e Gina tinham demorado toda a tarde para encontrar o caminho de volta à choupana, através do haar. Enquanto Rony passara a maior parte do tempo tentando decidir quais eram os seus dez barcos favoritos, e depois, quando a fome começou a apertar, a imaginar qual seria a sua refeição preferida, Gina passara a maior parte do tempo preocupada com o que teria acontecido ao Garoto 412 e a prometer a si mesma que, dali para frente, ia ser muito mais simpática com ele. Isto é, se ele não tivesse caído no Mott e morrido afogado.
Por isso, quando Gina conseguiu finalmente voltar à choupana, encharcada e gelada, com o haar ainda agarrado às roupas, e encontrou o Garoto 412 alegremente sentado no sofá com Tia Zelda, parecendo quase satisfeito consigo mesmo, não se sentiu tão irritada como Rony.
Este limitou-se a soltar um grunhido e desapareceu pela porta, mortinho para se pôr de molho na fonte termal.
Gina deixou que Tia Zelda lhe secasse o cabelo com uma toalha e sentou-se ao lado do Garoto 412 e perguntou-lhe:
- Como voltou tão depressa?
O Garoto 412 olhou para ela como um cordeirinho, mas não disse nada. Gina voltou a tentar.
- Estava com medo que tivesse caído no Mott.
O Garoto 412 ficou surpreso com aquilo. Não esperava que a Menina-Princesa se preocupasse com ele, se ele tinha caído no Mott ou, que seja, por um buraco abaixo.
- Ainda bem que conseguiu voltar em segurança. - continuou Gina. - Eu e o Rony demoramos uma eternidade. Estávamos sempre nos perdendo.
O Garoto 412 sorriu. Quase sentia vontade de contar a Gina o que tinha lhe acontecido e mostrar-lhe o anel, mas tantos anos tendo que manter as coisas em segredo tinham-lhe ensinado a ser mais cuidadoso. A única pessoa com quem tinha partilhado alguns segredos tinha sido o Garoto 409 e embora Gina tivesse alguma coisa de simpático, que lhe recordava o Garoto 409, ela era uma Princesa e, pior ainda, uma menina. Por isso, não lhe disse nada.
Gina percebeu o sorriso dele e sentiu-se melhor.
Estava a ponto de tentar outra pergunta quando, numa voz que fez até os frascos com as poções tilintarem, Tia Zelda gritou:
- Rato Mensageiro!
Marcia, que tinha ocupado a escrivaninha de Tia Zelda no outro oposto da sala, levantou-se rapidamente e, para surpresa de Gina, pegou-a pela mão e levantou-a do sofá.
- Ei! - protestou Gina. Marcia nem percebeu.
Subiu as escadas, levando Gina arrastada. A meio do caminho chocaram com Tiago e Max, que estavam descendo apressadamente para ver o Rato Mensageiro.
- Esse cão deveria ser proibido de subir ao andar de cima. - ralhou Marcia, enquanto tentava se esgueirar por Max sem apanhar nenhuma baba no manto.
Max babou excitadamente na mão de Marcia e foi correndo atrás de Tiago, uma das suas grandes patas pisando pesadamente os pés de Marcia. Max prestava muito pouca atenção a Marcia. Nem se preocupava em sair-lhe do caminho ou em ouvir o que ela lhe dizia porque, na sua maneira de ver o mundo, Tiago é que era o Macho Alfa, e Marcia estava bem no fundo do monte.
Felizmente para Marcia, nunca tinha percebido aquela interessante perspectiva da vida interior dos cães e forçou a passagem por ele e subiu rapidamente as escadas, levando Gina consigo, para longe do Rato Mensageiro.
- Por... por que fez isso? - perguntou Gina, recuperando o ar ao chegarem ao compartimento do sótão.
- O Rato Mensageiro. - respondeu Marcia, também um pouco sem ar. - Não sabemos se é um Rato com Privilégio de Confidencialidade.
- Um rato o quê? - perguntou Gina, sem entender nada.
- Bem. - sussurrou Marcia, sentando-se na cama estreita de Tia Zelda, que estava coberta com uma grande variedade de mantas de retalhos que eram o resultado de muitas e longas noites solitárias passadas junto à lareira. Deu umas palmadinhas no lugar ao seu lado, e Gina sentou-se também. - Já ouviu falar dos Ratos Mensageiros? - perguntou Marcia em voz baixa.
- Acho que sim. - respondeu Gina hesitante - Mas nunca recebemos nenhum em casa. Nunca. Pensava que era preciso uma pessoa ser muito importante para receber um Rato Mensageiro.
- Não, - disse Marcia - qualquer pessoa pode receber um. Ou enviar um.
- Talvez tenha sido a mamãe quem o enviou. - disse Gina num tom de voz esperançoso.
- Talvez. - concordou Marcia. - Ou talvez não. Primeiro temos que saber se é um Rato Confidencial antes de podermos confiar nele. Um Rato Confidencial diz sempre a verdade e guarda todos os segredos. E também é extremamente caro.
Gina pensou tristemente que, nesse caso, Lílian nunca poderia ter enviado o rato.
- Por isso, vamos ter que esperar para descobrir. - explicou Marcia. - Vamos ficar aqui escondidas, para o caso de ser um rato espião que tenha vindo para descobrir onde a Feiticeira ExtraOrdinária está escondida com a Princesa.
Gina acenou com a cabeça, lentamente. Lá estava outra vez aquela palavra. Princesa. Ainda a conseguia pegar de surpresa. Não conseguia acreditar que era quem ela realmente era. Mas deixou-se ficar em silêncio junto de Marcia, correndo os olhos pelo quarto do sótão.
O quarto era surpreendentemente espaçoso e arejado. Tinha um teto inclinado, no qual havia uma pequena janela que dava para os pântanos cobertos de neve. Enormes traves sólidas suportavam o teto. Sob as traves, pendia uma enorme variedade do que pareciam ser tendas de retalhos, até Gina perceber que deviam ser os vestidos da Tia Zelda. O quarto tinha três camas. Pelos cobertores de retalhos, Gina calculou que deviam estar sentadas na cama de Tia Zelda, e a outra, que se encontrava num recanto da parede perto das escadas e coberta de pêlo de cão, só podia ser a de Tiago. No canto mais distante, estava a cama maior, embutida na parede. Fez Gina recordar-se de seu próprio gavetão, em casa, e provocou-lhe muitas saudades ao olhar para ela. Calculou que devia ser a cama de Marcia, pois ao lado da cama havia um livro, O Desfazer da Escuridão, uma elegante pena de ônix e uma pilha de pergaminho da melhor qualidade, coberto de símbolos e sinais Mágykos. Marcia seguiu-lhe o olhar.
- Anda, pode experimentar minha pena. Vai gostar. Escreve em qualquer cor que você peça, pelo menos quando está bem-disposta.
Enquanto Gina estava no andar de cima experimentando a pena de Marcia, a qual estava se mostrando um bocado obstinada, insistindo em escrever uma ou outra letra num verde berrante, Tiago estava no andar de baixo tentando acalmar um inquieto Max, que tinha notado a presença do Rato Mensageiro.
- Rony. - disse Tiago distraidamente, tendo acabado de avistar o filho, ainda com aspecto molhado, que acabava de voltar da fonte termal. - Segure o Max e mantenha-o afastado do Rato, está bem? – Rony e Max correram para o sofá e, com não menos velocidade, o Garoto 412 pulou de lá.
- Ora bem, onde está o rato então? - perguntou Tiago.
Um grande rato castanho estava sentado do lado de fora da janela, batendo no vidro. Tia Zelda abriu a janela e o rato pulou para dentro, olhando de um lado para o outro com seus brilhantes olhinhos vivazes.
- Chia, Rato! - ordenou Tiago, em língua Mágyka.
O rato olhou para ele com impaciência.
- Fala, Rato!
O rato cruzou os braços, à espera. Presenteou Tiago com um olhar fulminante.
- Angh... desculpe. Há séculos que não recebo um Rato Mensageiro. - desculpou-se Tiago. - Oh, é isso... Fala, Rattus Rattus.
- No alvo. - suspirou o rato. - Finalmente chegou lá. - Endireitou-se e disse: — Primeiro, tenho que perguntar. Há aqui alguém que responda pelo nome de Tiago Potter? - O rato olhou diretamente para Tiago.
- Sim, eu. - respondeu Tiago.
- Bem que achei. - retorquiu o rato. - Encaixa na descrição. - Deu uma tossidinha pretensiosa, endireitou-se ainda mais, e pôs as mãos atrás das costas. - Estou aqui para entregar uma mensagem destinada a Tiago Potter. A mensagem é enviada hoje, às oito em ponto da manhã, por uma designada Lílian Potter, residindo na casa de Galena. Início da mensagem: Olá, meu amado Tiago. E Gina, minha bichinha, e Rony, meu anjo. Enviei o rato à casa de Zelda na esperança de que ele os encontre bem e em segurança. Molly nos contou que o Caçador andava atrás de vocês e não consegui pregar os olhos a noite toda só de pensar nisso. Esse homem tem uma reputação terrível. Quando a manhã chegou não sabia o que fazer e estava convencida de que tinham sido todos apanhados (embora Galena me dissesse que sabia que estavam bem), mas o adorado Alther passou por aqui logo que amanheceu e contou-nos as maravilhosas novas da sua fuga. Disse-nos que os viu pela última vez a caminho dos Pântanos Marram. Ele gostaria de poder ter ido com vocês. Tiago, aconteceu uma coisa. Guilherme desapareceu a caminho daqui. Estávamos no caminho ribeirinho que leva à parte da Floresta que é da Galena, quando percebi que ele tinha desaparecido. Não consigo entender o que possa ter acontecido. Não vimos nenhum Guarda e ninguém o viu ou ouviu partindo. Tiago, tenho tanto medo que tenha caído numa das armadilhas daquelas horríveis bruxas. Hoje vamos à procura dele. Os Guardas atearam fogo ao café de Molly e ela mal conseguiu escapar. Nem sequer sabe como conseguiu, mas chegou aqui hoje de manhã, em segurança, e pediu-me para dizer à Marcia que está muito agradecida pelo FicaEmSegurança que ela lhe deu. Na verdade, todos nós estamos gratos. Foi muito generoso da parte dela. Tiago, por favor envie o rato de volta e me informe sobre como estão. Todo o nosso amor e pensamentos estão com vocês. A sua amada. Sara. Fim da mensagem.
Exausto, o rato deixou-se cair sobre o peitoril.
- Seria capaz de matar uma xícara de chá. - disse.
Tiago estava tremendamente agitado.
- Tenho que voltar - disse ele - e procurar Guilherme. Quem sabe o que pode ter acontecido?
Tia Zelda tentou acalmá-lo. Trouxe duas xícaras de chá quente e doce e deu uma ao rato e a outra a Tiago. O rato esvaziou a xícara de um só gole, enquanto Tiago estava desolado, sem tocar na sua.
- O Guilherme é bem duro, Pai. - disse Rony. - Vai ficar bem. Deve ter se perdido, mais nada. A esta hora já deve estar com a Mãe.
Tiago não se deixou convencer.
Tia Zelda decidiu que a coisa mais sensata a fazer era jantar. Normalmente, os jantares de Tia Zelda distraíam as pessoas dos seus problemas. Era uma cozinheira muito hospitaleira, que gostava de ter, quanto mais pessoas melhor à mesa, e embora seus convidados apreciassem sempre as suas conversas, a comida podia tornar-se um desafio. A descrição mais freqüente era «interessante», como quem diz: — O bolo de pão e couve estava muito... interessante, Zelda. Nunca teria me ocorrido uma coisa assim. — Ou: — Bom, tenho que admitir que compota de morango é um molho muito... interessante para filetes de enguia.
Tiago ficou encarregado de pôr a mesa, para que se distraísse dos problemas e o Rato Mensageiro foi convidado para a ceia.
Tia Zelda serviu caçarola de sapo e coelho com cabeças de nabos duplamente cozidas, seguida de delícias de cereja e pastinaga. O Garoto 412 lançou-se à comida com grande entusiasmo, já que era uma melhoria considerável em relação à comida do Exército da Juventude e chegou a servir-se uma segunda e até mesmo uma terceira vez, para grande alegria de Tia Zelda. Nunca ninguém lhe pedira para se servir duas vezes, quanto mais três.
Rony estava bastante satisfeito pelo Garoto 412 estar comendo tanto, já que isso queria dizer que Tia Zelda não notou os pedaços de sapo que tinha alinhado e escondido sob sua faca. Ou se notou, não se incomodou muito. Rony conseguiu também dar a orelha de coelho que encontrou no prato a Max, para seu grande alívio e ainda maior deleite de Max.
Marcia tinha mandado recado, pedindo que a desculpassem e a Gina, mas que não iriam descer para cear por causa da presença do Rato Mensageiro. Tiago achou que era uma desculpa muito fraca e desconfiou que ela estaria fazendo discretos feitiços de bom-comer sem dizer nada a ninguém.
Apesar da — ou talvez por causa da — ausência de Marcia, o jantar foi um momento agradável. O Rato Mensageiro fazia boa companhia. Tiago não tinha se dado ao trabalho de anular a ordem Fala, Rattus Rattus e assim o rato bastante falador discorria sobre todo e qualquer assunto que lhe viesse à cabeça, que ia desde os problemas com os ratos adolescentes dos dias de hoje até ao escândalo da salsicha na cantina dos Guardas que tinha abalado toda a comunidade dos ratos, para não falar dos Guardas.
Com a refeição se aproximando do fim, Tia Zelda perguntou a Tiago se ia enviar o Rato Mensageiro à Lílian, ainda nesta noite.
O rato parecia apreensivo. Apesar de ser um ratagão bem grande e soubesse, como dizia para todo mundo, «tomar conta de mim mesmo», a verdade é que os Pântanos Marram, durante a noite, não eram um dos seus lugares preferidos. As ventosas de uma Nixie Aquática podiam significar o fim de um rato e nem os Duendes nem os Boggarts eram os melhores amigos dos ratos. Os Duendes eram capazes de afundar um rato na Lama só pelo simples prazer que isso lhes dava e um Boggart esfomeado não hesitaria em ferver um guisado de rato para os seus Boggartinhos bebês que eram, na modesta opinião do Rato Mensageiro, umas pestinhas vorazes.
(O Boggart, é claro, não os acompanhou na ceia. Nunca o fazia. Preferia comer os sanduíches de couve cozida que Tia Zelda lhe preparava no conforto de sua própria leira lodosa. Ele já não comia rato há muito tempo. Não gostava muito do sabor e costumava ficar com os ossinhos entalados entre os dentes.)
- Estava pensando - disse Tiago lentamente - que seria melhor enviar o rato de volta logo de manhãzinha. Fez um grande caminho, e deveria dormir um pouco.
O rato pareceu agradecido.
- Bem pensado, senhor. Muito sensato. - disse ele. - Muitas mensagens se perdem por falta de um bom descanso. E de uma boa ceia. E se me permitem dizer, foi uma ceia excepcionalmente... interessante, minha Senhora. - Inclinou a cabeça na direção de Tia Zelda.
- Foi um gosto. - sorriu Tia Zelda.
- Esse rato é um Rato Confidencial? - perguntou o pimenteiro com a voz de Marcia. Todos saltaram, sobressaltados.
- Podia ter nos avisado antes de projetar a voz dessa maneira. - resmungou Tiago. - Quase engasgo com minha delícia de pastinaga.
- Sim, mas é ou não? - insistiu o pimenteiro.
- É? - perguntou Silas ao rato, que estava fitando o pimenteiro e, pela primeira vez nessa noite, tinha perdido a fala. - É um Rato Confidencial, ou não?
- Sou. - respondeu o Rato, sem saber se devia se dirigir a Silas ou ao pimenteiro. Escolheu o pimenteiro. - Sou sim, Miss Pimenteira. Sou um Rato Mensageiro de Longa Distância com Privilégio de Confidencialidade. Ao seu dispor.
- Ótimo. Vou descer.
Marcia desceu as escadas dois degraus de cada vez e atravessou a sala a passos rápidos, livro na mão e o seu manto de seda arrastando pelo chão e atirando pelo ar uma pilha de frascos com poções. Gina seguiu-a rapidamente, ansiosa por poder finalmente ver um Rato Mensageiro.
- Aqui é tão apertado. - queixou-se Marcia, limpando irritada o manto salpicado com as melhores Misturas Multicoloridas de Tia Zelda. - Realmente, não sei como se arranja aqui dentro, Zelda.
- Acho que me arranjava muito bem, até você chegar. - murmurou Tia Zelda entre dentes enquanto Marcia se sentava à mesa, ao lado do Rato Mensageiro. O rato empalideceu terrivelmente por baixo do pêlo castanho. Nunca, nos seus sonhos mais fantásticos, pensou encontrar um dia a Feiticeira ExtraOrdinária. Fez uma grande vênia, muito exagerada, desequilibrou-se e caiu por cima dos restos das delícias de cereja e pastinaga.
- Quero que volte com o rato, Tiago. - anunciou Marcia.
- O quê? - exclamou Tiago. - Agora?
- Não tenho alvará para passageiros, Sua Alteza. - disse o rato, hesitante, dirigindo-se a Marcia. - Na verdade, Vossa Máxima Graça, e digo-o com o maior respeito...
- DesFala, Rattus Rattus. - ordenou Marcia.
O Rato Mensageiro abriu e fechou a boca silenciosamente por mais algumas palavras, até perceber que não emitia qualquer som. Depois sentou-se, lambendo de forma relutante as delícias de cereja e pastinaga das patas e aguardou. O rato não podia fazer outra coisa senão esperar, pois um Rato Mensageiro apenas podia partir com uma resposta ou com uma recusa de resposta. Até o momento não tinha recebido nenhuma das duas e, como profissional que era, deixou-se ficar pacientemente sentado, recordando-se das palavras que sua mulher lhe dissera esta manhã quando soube que ele ia cumprir uma missão para uma Feiticeira.
- Stanley. - tinha dito sua mulher, Dawnie, admoestando-o com um dedo em riste - Se eu fosse você, não iria querer ter nada a ver com esses Feiticeiros. Lembra-se do marido da Elli, que acabou enfeitiçado por aquele Feiticeiro pequeno e gordo na Torre e ficou preso no caldeirão? Ficou mais de duas semanas sem conseguir regressar, e quando regressou não estava em muito bom estado. Não vá, Stanley. Por favor.
Mas Stanley sentira-se secretamente honrado pelo Gabinete dos Ratos ter lhe pedido que aceitasse uma missão no exterior, especialmente para uma Feiticeira, e ficara satisfeito pela mudança em relação ao seu último serviço.
Tinha passado a semana anterior inteira levando mensagens entre duas irmãs que estavam discutindo. As mensagens tinham se tornado progressivamente mais curtas e particularmente mais rudes, até que o seu último dia de trabalho tinha consistido em correr de uma para outra, sem dizer absolutamente nada, porque cada uma queria que a outra soubesse que não falava com ela. Tinha ficado extremamente aliviado quando a mãe delas, horrorizada com a enorme conta que tinha recebido do Gabinete dos ratos nessa semana, mandou cancelar o serviço.
E assim, Stanley tinha respondido alegremente à sua mulher que, quando precisavam dele, ele tinha que estar presente.
- No final das contas, - disse ele - sou um dos poucos Ratos Mensageiros de Longa Distância com Privilégio de Confidencialidade do Castelo.
- E um dos mais palermas. - retorquira sua mulher.
E assim Stanley ficou sentado à mesa, entre os restos da mais estranha refeição que já provara, e ouviu a inesperadamente mal-humorada Feiticeira ExtraOrdinária dizer ao Feiticeiro Normal o que tinha que fazer. Marcia pousou o livro sobre a mesa, fazendo os pratos tilintarem.
- Tenho andado a estudar O Desfazer da Escuridão de Zelda. Só gostaria de ter tido um exemplar na Torre dos Feiticeiros. É insubstituível. - Marcia deu umas pancadinhas no livro, aprovadora. O livro interpretou mal seu gesto. Voou inesperadamente da mesa e foi enfiar-se no seu lugar, na pilha de livros de Tia Zelda, para grande irritação de Marcia. - Tiago. - disse ela. - Preciso que vá e traga meu FicaEmSegurança que emprestei à Molly. Precisamos dele aqui.
- Está bem. - concordou Tiago.
- Tem que ir, Tiago. - insistiu Marcia. - A nossa segurança pode depender disso. Sem ele tenho muito menos poder do que pensava.
- Sim, sim. ‘Tá bem, Márcia. - disse Tiago impaciente, preocupado com os seus pensamentos sobre Guilherme.
- Na verdade, como Feiticeira ExtraOrdinária, ordeno-lhe que vá. - prosseguiu Marcia.
- Sim! Marcia, eu disse que sim. Eu vou. Já tinha decidido ir, de qualquer maneira. - retorquiu Tiago, exasperado. - O Guilherme desapareceu. Vou à procura dele.
- Ótimo. - disse Marcia, sem prestar grande atenção ao que Tiago estava dizendo, como sempre. - Agora, onde está o rato?
O rato, ainda incapaz de falar, levantou a pata.
- A sua mensagem é este Feiticeiro, devolvido ao remetente. Entendeu?
Stanley acenou que sim, hesitante. Queria dizer à Feiticeira ExtraOrdinária que isso ia contra os regulamentos do Gabinete dos Ratos. Não tratavam de encomendas, humanas ou de qualquer outro tipo. Suspirou. Sua mulher estava tão certa.
- Procederá à entrega deste Feiticeiro adequadamente e em segurança, pelos meios mais apropriados, no endereço do remetente. Entendido?
Stanley voltou a anuir, infeliz. Meios mais apropriados? Calculava que isso queria dizer que Tiago não ia poder nadar no rio. Ou pegar carona na bagagem de um mercador de passagem. Fantástico.
Tiago acorreu em socorro do rato.
- Não preciso ser enviado como uma encomenda, Marcia, muito obrigado. - disse ele. - Vou levar uma das canoas e o rato pode vir comigo e indicar-me o caminho.
- Muito bem, - concordou Marcia - mas quero obter confirmação da encomenda. Fala, Rattus Rattus.
- Sim. - disse o rato, desconsolado. - Encomenda confirmada.
Tiago e o Rato Mensageiro partiram bem cedo na manhã seguinte, logo depois do nascer do sol, levando com eles a canoa Muriel Um. O haar tinha se dissipado durante a noite, e o sol de Inverno projetava compridas sombras sobre os pântanos à luz acinzentada da manhã.
Gina, Rony e Max tinham-se levantado cedo para se despedirem de Tiago e lhe entregarem mensagens para levar à Lílian e aos meninos. O ar estava frio e cheio de geada, e a respiração de todos eles pairava em pequenas nuvens brancas. Tiago apertou sua pesada capa de lã azul em torno do corpo e levantou o capuz, enquanto o Rato Mensageiro estava ao seu lado, tremendo ligeiramente, mas não só devido ao frio.
O rato podia ouvir Max, bem perto atrás de si, emitindo horríveis grunhidos, enquanto Rony mantinha o lenço do pescoço do cão bem preso numa mão. E, como se isso não bastasse, tinha acabado de ver o Boggart aparecer por ali.
- Ah, Boggart. - sorriu Tia Zelda. - Muito obrigado por ficar acordado, meu querido Boggart. Fiz uns sanduíches para se agüentar no caminho. Vou pô-las na canoa. E fiz algumas para você e para o rato também, Tiago.
- Oh. Ah, bem, obrigado, Zelda. E, exatamente, que tipo de sanduíches seriam esses?
- Da melhor couve cozida.
- Ah. Bom, foi muito... atenciosa. - Tiago estava satisfeito por ter escondido algum pão e queijo na manga.
O Boggart estava flutuando, claramente mal-humorado, no Mott e a menção de sanduíches de couves não era suficiente para apaziguá-lo. Não gostava de ficar acordado durante o dia, mesmo se fosse no meio do Inverno. Fazia-lhe doer seus fracos olhos de Boggart e se não tivesse cuidado, o sol podia queimar-lhe as orelhas.
O Rato Mensageiro estava sentado na margem do Mott, parecendo o mais infeliz dos ratos, preso entre o bafo do cão lobo nas suas costas e o Bafo do Boggart à sua frente.
- Muito bem. - disse Tiago, dirigindo-se ao rato. - Toca a pular para a canoa. Calculo que queira se sentar à frente. Pelo menos o Max quer sempre ir na frente.
- Eu não sou um cão - fungou Stanley - e não viajo com Boggarts.
- Este é um Boggart seguro. - disse-lhe Tia Zelda.
- Isso é coisa que não existe, um Boggart seguro. - murmurou Stanley. Mas, ao apanhar um relance de Marcia que saía da choupana para se despedir de Tiago, apressou-se a pular para o interior da canoa e escondeu-se por trás de um assento.
- Tenha cuidado, Papai. - disse Gina a Tiago, abraçando-o com força.
Rony também abraçou Tiago.
- Encontre o Gui, Pai. E não se esqueça de seguir pela orla do rio se a maré estiver contra você. A maré corre sempre com mais força no meio do rio.
- Não vou me esquecer. - Tiago sorriu. - Olhem um pelo outro, vocês dois. E Max também.
- Adeus, Papai.
Max soltou um latido e uns uivos, quando percebeu, para sua grande consternação, que Tiago ia mesmo deixá-lo ali.
- Adeus! - acenou Tiago, enquanto conduzia atrapalhadamente a canoa ao longo do Mott, acompanhado pela já familiar pergunta do Boggart:
- Tão-m’ seguindo?
Gina e Rony ficaram olhando a canoa avançar lentamente ao longo dos canais serpenteantes, e desembocar na mais ampla extensão dos Pântanos Marram, até já não serem capazes de distinguir o capuz azul de Tiago.
- Espero que o Papai fique bem. - disse Gina baixinho. - Ele não é lá muito bom para encontrar os lugares que procura.
- O Rato Mensageiro há de garantir que o Pai chegue lá. - disse Rony. - Sabe que se não for assim, vai ter que dar explicações à Marcia.
No interior profundo dos Pântanos Marram, o Rato Mensageiro estava sentado na canoa apreciando a primeira encomenda de sua vida. Tinha decidido não contar nada à Dawnie, ou aos outros ratos do Gabinete dos Ratos; tudo aquilo era muito irregular, suspirou.
Mas depois de algum tempo, à medida que Tiago ia levando-os lentamente e de uma forma um pouco errática, através dos retorcidos canais do paul, Stanley começou a achar que, afinal, aquela não era uma forma muito ruim de viajar. Afinal, tinha uma carona até seu destino final. E não tinha que fazer nada a não ser ficar ali sentado, contando algumas histórias e desfrutando do passeio enquanto Tiago fazia todo o trabalho.
E, quando Tiago se despediu do Boggart no final do Canal Deppen e começou a remar rio acima, rumo à Floresta, foi exatamente o que o Rato Mensageiro fez.


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