Capitulo 2 – Lílian e Tiago
Capitulo 2 – Lílian e Tiago
A trouxa inseriu-se perfeitamente no lar da família Potter e foi batizada de Gina, como a mãe de Tiago.
O menino mais novo, Rony, tinha apenas dois anos quando Gina chegou, e esqueceu-se rapidamente de seu irmão Harry. Com o passar do tempo, os garotos mais velhos também o esqueceram. Adoravam sua nova irmãzinha e traziam-lhe todo o tipo de tesouros das suas aulas de Magya na escola.
Lílian e Tiago, claro, não conseguiam esquecer Harry. Tiago culpava-se por ter deixado Lílian sozinha e ter ido buscar as ervas para o bebê com a Curandeira. E Lílian culpava-se simplesmente por tudo. Embora mal conseguisse se recordar do que se passara naquele dia tão terrível, Lílian sabia que tinha tentado devolver a vida ao seu bebê e não tinha conseguido. E lembrava-se de ver a Matrona Parteira embrulhando o seu pequeno Harry, dos pés à cabeça, em ligaduras e depois a correr porta afora, gritando por cima do ombro:
- Morto!
Lílian lembrava-se muito bem disso.
Mas depois de pouco tempo, Lílian passou a amar tanto sua bebê como tinha amado seu Harry. Durante um tempo teve medo que aparecesse alguém e levasse Gina também, mas com o passar dos meses Gina tornou-se uma bebê rechonchudinha e risonha e Lílian descontraiu-se e quase deixou de se preocupar.
Até o dia em que sua amiga Sally Mullin parou ofegante à sua porta. Sally Mullin era uma daquelas pessoas que sabiam sempre o que se passava no Castelo. Era uma mulher pequena e atarefada, com cabelo fino da cor de gengibre e que estava constantemente se soltando sob o seu gorduroso boné de cozinheira. Tinha um rosto redondo e agradável, um bocado gorducho por comer muitos bolos, e tinha normalmente as roupas salpicadas de farinha.
Sally tinha um pequeno café no pontão junto ao rio. A placa por cima da porta dizia:
SALÃO DE CHÁ E CERVEJA DE SALLY MULLIN
TEMOS QUARTOS LIMPOS
NÃO QUEREMOS CANALHAS AQUI
No café de Sally Mullin não havia segredos. Tudo e todos que chegavam ao Castelo por água eram vistos e comentados, e a maior parte das pessoas que vinham ao Castelo preferia chegar de barco. Ninguém além de Tiago gostava dos caminhos escuros através da Floresta que rodeava o castelo. A Floresta ainda tinha um sério problema com carcajus durante a noite e estava infestada de árvores carnívoras. E depois havia as Bruxas Wendron, que andavam sempre sem dinheiro e costumavam estender armadilhas aos viajantes distraídos, deixando-os com pouco mais do que a camisa e as meias.
O café de Sally Mullin era uma cabana quente e movimentada, empoleirada de forma precária acima da água. Barcos de todos os tamanhos e feitios ancoravam no pontão do café, despejando todo o tipo de pessoas e animais. A maioria resolvia restabelecer-se da viagem provando pelo menos uma das fortes cervejas de Sally e uma fatia de bolo de cevada, enquanto trocavam os mais recentes mexericos. E qualquer pessoa no Castelo que tivesse meia hora para perder e uma barriga dando as horas, acabava atravessando o desgastado caminho que levava ao Portão do Molhe, passando pela Lixeira de Detritos da Amenidade Ribeirinha, e ao longo do pontão até ao Salão de Chá e Cerveja de Sally Mullin.
E Sally encarregava-se de visitar Lílian pelo menos uma vez por semana, para mantê-la a par de tudo o que se passava. Na opinião de Sally, era injusto que Lílian tivesse que cuidar sozinha de sete crianças, além de Tiago Potter, que, tanto quanto podia ver, não fazia grande coisa para ajudar. A maior parte das histórias de Sally eram sobre pessoas de quem Lílian nunca ouvira falar e que nunca chegaria a conhecer, mas ainda assim Lílian esperava ansiosamente as visitas de Sally e gostava de saber as coisas que se passavam à sua volta. Mas desta vez, não só era um assunto mais importante do que os habituais mexericos, também dizia respeito diretamente a Lílian. E, pela primeira vez, Lílian sabia alguma coisa que Sally desconhecia.
Sally esgueirou-se para o interior e fechou a porta atrás de si com um ar de conspiração.
- Trago notícias terríveis. - sussurrou.
Lílian, que estava tentando limpar os restos do desjejum da boca de Gina, e de todas as partes por onde a menina o tinha cuspido, e a porcaria da nova cria de cão lobo ao mesmo tempo, não estava prestando muita atenção.
- Olá, Sally. - disse ela. - Há um espacinho limpo aqui. Anda e sente-se aqui. Uma xícara de chá?
- Sim, por favor. Lílian, não vai acreditar nisso!
- Em quê, Sally? - perguntou Lílian, à espera de ouvir qualquer coisa sobre o último caso de mau comportamento no café.
- A Rainha. A Rainha morreu!
- O quê? - exclamou Lílian. Ergueu Gina da cadeira e levou-a para um dos cantos da sala, onde estava o berço de vime. Lílian deitou Gina para tirar uma soneca. Sempre achara que os bebês deviam ser mantidos longe das más notícias.
- Morta. - repetiu Sally tristemente.
- Não! - exclamou Lílian. - Não acredito. Está só adoentada depois do nascimento do bebê. É por isso que não tem sido vista desde essa altura.
- Isso é o que os Guardiães da Custódia têm dito, não é? - perguntou Sally.
- Bem, sim. - admitiu Lílian, servindo o chá. - Mas eles são os guardas da Rainha, por isso devem saber. Embora não consiga compreender por que a Rainha escolheu de repente um tal bando de rufiões para a sua guarda pessoal.
Sally pegou a xícara de chá que Lílian tinha colocado à sua frente.
- Obrigada. Hummm, uma delícia. Bem, exatamente... - Sally baixou a voz e olhou em volta como se esperasse encontrar um Guardião da Custódia encostado a um dos cantos, não que conseguisse vê-lo no meio da confusão da sala dos Potter. - Eles são um bando de rufiões. Na verdade, foram eles que a mataram.
- Mataram? A Rainha foi morta? - exclamou Lílian.
- Chiuuu. Bom, veja bem... - Sally aproximou a cadeira de Lílian. - Corre por aí o rumor, e soube de fonte segura...
- Ah sim, e que fonte foi essa? - perguntou Lílian com um sorriso provocador.
- Ninguém mais do que Madame Márcia. - Sally endireitou as costas e sentou-se para trás com um ar triunfante - Foi quem foi.
- O quê? E como é que se encontrou com a Feiticeira ExtraOrdinária? Passou pelo café para tomar uma xícara de chá?
- Quase. Foi Terry Tarsal quem passou por lá. Tinha estado na Torre dos Feiticeiros para entregar uns sapatos muito esquisitos que tinha feito para Madame Marcia. Por isso, quando se cansou de se queixar do fraco gosto para sapatos que ela tinha e do quanto odeia cobras, disse que tinha ouvido Marcia a falar com um dos outros Feiticeiros. Endor, aquele galináceo gordo, segundo parece. Bom, ouviu-os dizer que tinham dado um tiro na Rainha! E que tinham sido os Guardiães da Custódia um dos seus Assassinos.
Lílian não podia acreditar no que estava ouvindo.
- Quando? - perguntou, quase sem ar.
- Bem, essa é a parte verdadeiramente horrível. - sussurrou Sally, entusiasmada. - Disseram que foi no dia em que o bebê dela nasceu. Há seis meses já, e nós sem sabermos de nada. É terrível... terrível. E também dispararam sobre o Sr. Alther. Morto. Foi por isso que Marcia se tornou...
- Alther está morto? - admirou-se Sara. - Não posso acreditar. Realmente, não posso... Todos pensamos que tinha se aposentado. O Tiago foi Aprendiz dele há uns anos atrás. Era encantador...
- Era? - perguntou Sally distraidamente, ansiosa para poder continuar com sua história. - E não é tudo, sabe? Porque o Terry ficou com a impressão de que Marcia tinha salvo a Princesa e a tinha levado para um lugar qualquer. O Endor e a Marcia estavam só conversando, interrogando-se como ela estaria. Mas claro, quando perceberam que o Terry estava lá com os sapatos, calaram-se. A Marcia foi muito brusca com ele, segundo Terry me disse. Depois daquilo sentiu-se um bocado estranho, e acha que devem ter lançado um Feitiço de Esquecimento nele, mas ele tinha se esquivado por trás de uma coluna quando a viu falar entre dentes e não pegou como devia ser. Está bem aborrecido com isso, porque não consegue se lembrar se chegaram a pagar os sapatos ou não. - Sally Mullin fez uma pausa para respirar e tomar um longo gole de chá. - A pobre Princezinha. Que Deus ajude a pequenina. Pergunto-me onde estará agora. Provavelmente definhando num calabouço qualquer. Não como aquele seu anjinho que está ali... Como vai ela?
- Oh, está muito bem. - respondeu Lílian, que normalmente teria se posto a falar sobre as fungadas de Gina, os dentinhos novos de Gina, e de como ela já conseguia se sentar e segurar sua própria xícara. Mas naquele momento Gina queria desviar as atenções de Gina porque Lílian tinha passado os últimos seis meses a se perguntar quem seria realmente a sua bebê, e agora já sabia.
Gina era, pensou Lílian, com certeza tinha que ser... a Princesa bebê.
Pela primeira vez Lílian ficou contente por se despedir de Sally Mullin. Viu-a apressar-se corredor abaixo e, ao fechar a porta atrás de si, soltou um suspiro de alívio. E então correu até o berço de Gina.
Lílian pegou Gina no colo. Gina sorriu e estendeu as mãos para agarrar o amuleto que Gina usava no colar.
- Bem, pequena Princesa, - murmurou Lílian - sempre soube que era especial, mas nunca pensei que fosses a nossa própria Princesa. - Os olhos violeta-escuros da bebê encontraram os de Lílian e ela olhou solenemente para Lílian como se dissesse, Pois bem, agora já sabe.
Lílian voltou a deitar Gina no berço, suavemente. Tinha a cabeça girando e as mãos tremiam ao servir-se de outra xícara de chá. Era difícil acreditar em tudo o que ouvira. A Rainha estava morta. E Alther também. A sua pequena Gina era a herdeira do Castelo. A Princesa. O que estava acontecendo?
Lílian passou o resto da tarde dividida entre olhar aturdida para Gina, para a Princesa Gina, e preocupar-se com o que aconteceria se alguém descobrisse quem ela era. Onde estava Tiago quando ela precisava dele?
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Tiago estava desfrutando de um dia de pesca com os meninos.
Havia uma pequena praia na dobra do rio um pouco depois d’Os Bairros. Tiago estava mostrado a Rony e a Neville, os dois mais novos, como atar as jarras de compota ao extremo de uma vara e mergulhá-las na água. Neville já tinha apanhado três esgana-gatos, mas Rony deixava cair sempre a sua e começava a ficar irritado.
Tiago pegou Rony no colo e levou-o para ver Fred e Jorge, os gêmeos de cinco anos. Fred estava todo satisfeito sonhando acordado e balançando um pé na água quente e límpida. Jorge estava usando um ramo para mexer em qualquer coisa sob uma rocha. Era um enorme besouro d’água. Rony soltou um queixume e agarrou-se com força ao pescoço de Tiago.
Carlinhos, que já tinha quase sete anos, era um pescador de verdade. Tinham-lhe dado uma vara de pesca de verdade no seu último aniversário, e já tinha dois pequenos peixes prateados estendidos numa rocha ao seu lado. Estava prestes a puxar um terceiro para fora d’água. Rony gritou de entusiasmo.
- Tire-o daqui, pai. Vai assustar os peixes. - disse Carlinhos, mal-humorado.
Tiago afastou-se na ponta dos pés com Rony e foi sentar-se ao lado de seu filho mais velho, Guilherme. Gui tinha uma vara de pesca numa mão e um livro na outra. O sonho de Gui era tornar-se Feiticeiro ExtraOrdinário, e estava ocupado lendo todos os livros de magia antigos de Tiago. Este que tinha na mão, reparou Tiago, era O Encantador de Peixes Completo.
Tiago contava que todos os seus filhos viessem a ser algum tipo de Feiticeiro; era tradição da família. A tia de Tiago era uma famosa Bruxa Branca e tanto o pai, quanto o tio de Tiago tinham sido Metamorfos, que era não só um ramo muito especializado, como um que Tiago esperava que seus rapazes evitassem, pois os Metamorfos de sucesso tornavam-se cada vez mais instáveis quando ficavam mais velhos, tornando-se por vezes incapazes de manter a sua própria forma por mais do que alguns minutos de cada vez. O pai de Tiago tinha acabado por desaparecer na Floresta sob a forma de uma árvore, mas ninguém sabia qual. Era uma das razões pelas quais Tiago desfrutava das suas caminhadas pela Floresta. Não raras vezes dirigia um comentário a uma árvore mais desgrenhada na esperança de que fosse seu pai.
Lílian Potter vinha de uma família de Magos e Feiticeiros. Quando menina, Lílian tinha estudado as ervas e curas com Galena, a Curandeira da Floresta, onde um dia tinha conhecido Tiago. Tiago andava à procura do pai. Estava perdido e infeliz, e Lílian levou-o com ela para ver Galena. Galena tinha-o ajudado a compreender que o seu pai, como Metamorfo que era, deveria ter escolhido o seu destino final como sendo uma árvore a muito tempo, e que agora devia estar se sentindo verdadeiramente feliz por isso. E Tiago, pela primeira vez na vida, compreendeu que também se sentia imensamente feliz sentado ao lado de Lílian em frente à lareira da Curandeira.
Quando Lílian tinha aprendido tudo o que podia sobre as ervas e as curas, despedira-se calorosamente de Galena e juntara-se a Tiago no seu quarto n’Os Bairros. E ali tinham ficado desde então, apertando-se para receber mais e mais crianças, enquanto Rony desistia alegremente do seu Aprendizado e começava a trabalhar como um Feiticeiro Normal assalariado para poder pagar as contas. Lílian fazia tinturas de ervas na cozinha quando tinha um momento livre, o que não acontecia muitas vezes.
Nessa noite, quando Tiago e os rapazes subiam os degraus de volta da praia aos Bairros, um enorme e ameaçador Guardião da Custódia, vestido de preto dos pés à cabeça, barrou-lhes o caminho.
- Alto! - ladrou. Rony começou a chorar.
Silas deteve-se e disse aos rapazes que se comportassem.
- Documentos! - gritou o Guarda. - Onde estão os seus documentos?
Tiago ficou olhando para ele.
- Que documentos? - perguntou calmamente, não querendo causar quaisquer problemas quando tinha consigo seis garotos cansados e mortinhos para chegar em casa e jantar.
- Os seus documentos, escória de Feiticeiros. A área da praia está vedada a qualquer um que não tenha os documentos próprios. - escarneceu o Guarda.
Tiago estava chocado. Se não estivesse com os meninos, teria discutido, mas tinha reparado na pistola que o guarda levava.
- Peço desculpas. - disse ele. - Não sabia.
O Guarda olhou-os de alto a baixo como se decidindo o que fazer, mas felizmente para Tiago tinha outras pessoas para visitar e aterrorizar.
- Leve a sua ralé daqui para fora e não se atreva a voltar. - cuspiu o Guarda. - Fiquem no seu lugar.
Tiago apressou os chocados meninos degraus acima e de volta à segurança d’Os Bairros. Carlinhos deixou seus peixes caírem e começou a soluçar.
- Pronto, pronto, - disse Tiago - está tudo bem.
- Mas Tiago sentia que as coisas não estavam nada bem.
O que estava acontecendo?
- Por que ele nos chamou de escória de Feiticeiros, pai? - perguntou Gui. - Os Feiticeiros são os melhores, não são?
- Sim, - respondeu Tiago distraidamente - os melhores.
Mas o problema era, pensou Tiago, que se fosse um Feiticeiro, não havia maneira de escondê-lo. Todos os Feiticeiros, e só os Feiticeiros, os tinham. Tiago tinha, Lílian tinha e todos os meninos com exceção de Rony e Neville os tinham. E logo que Rony e Neville fossem para as aulas de Magya na escola, também os teriam. Lenta, mas seguramente, até não restarem dúvidas, os olhos de uma criança Feiticeira tornar-se-iam verdes logo que fosse exposta ao ensino da Magya. Sempre fora algo de que se orgulhar.
Até agora, quando subitamente parecia ser algo perigoso. Nessa noite, quando por fim todas as crianças estavam dormindo, Tiago e Lílian ficaram conversando noite adentro. Falaram de sua Princesa e de seus meninos Feiticeiros e das mudanças que tinham tomado o Castelo de assalto. Discutiram a hipótese de fugirem para os Pântanos Marram, ou irem para a Floresta e viverem com Galena. Quando a madrugada por fim surgiu e eles tinham finalmente adormecido, Tiago e Lílian tinham decidido fazer aquilo que os Potter faziam normalmente. Manter-se discretos e esperar que tudo corresse bem.
E assim, pelos nove anos e meio que se seguiram, Tiago e Lílian mantiveram-se quietos. Fechavam e trancavam a porta, falavam apenas com os vizinhos e aqueles em quem podiam confiar e, quando puseram fim às aulas de Magya na escola, ensinaram Magya aos filhos em casa, à noite. E foi por isso que, ao fim de nove anos e meio, com exceção de um, todos os Potter tinham penetrantes olhos verdes.
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