O trabalho de Runas Antigas



Scorpius estava sentado na biblioteca. Sentia-se culpado, pois sabia que deveria estar a estudar empenhadamente para os seus Exames de Feitiçaria Barbaramente Extenuantes, mas havia meia hora que ele largara o estudo e estava concentrado nos seus pensamentos.
Estava a fazer um exercício mental e lembrar-se do dia 1 de Setembro de há seis anos atrás. Lembrava-se da sua primeira vez na Plataforma Nove e Três Quartos. Lembrava-se de olhar por cima do ombro e tentar parecer o mais confiante possível, o que era difícil devido ao frio na barriga e aos nervos de antecipação que percorriam o seu corpo como uma corrente eléctrica. Lembrava-se de os avistar ao longe – os Potter e os Weasley – e sentir-se infeliz. Pareciam todos tão unidos e contentes. Nada que se assemelhasse à sua família. O pai Draco e a mãe Astoria não se amavam e ele, desde pequeno, via e sentia isso na sua pele. O pai passava a maior parte da semana fora de casa a trabalhar. Quando chegava a mãe discutia com ele e perguntava-lhe por onde tinha andado a semana toda. Os berros começavam e a mãe ameaçava ir se embora para França ter com o avô e a avó Greengrass. Scorpius fechava-se no quarto e tentava não ouvir a discussão. Mas isso tinha sido há tanto tempo…agora o seu pai tinha saído de casa e Scorpius só o via uma semana nas férias grandes e uma semana no Natal e, francamente, parecia-lhe suficiente. Dava-se bem com o seu pai, mas não tinham uma relação muito próximo, pois ele andava sempre fora do país em negócio. Também se dava bem com a sua mãe e, quando começava a ficar demasiado deprimido por ver o seu olhar triste todos os dias, já o regresso a Hogwarts se aproximava. Hogwarts não era, agora, muito melhor que a sua casa, mas pensou que isso seria por naquele dia se sentir especialmente deprimido… No entanto, lembrava-se perfeitamente como as primeira horas no castelo tinham sido assustadoras.
Começou pela chegada ao castelo passando por um enorme lago e caminhando um terreno lamacento resultante do tempo chuvoso, guiados por um homem que ele achara um bocado tolo e muito grande, com crespos cabelos brancos e uma barba cinzento esbranquiçada – Hagrid. Depois a longa espera para ser seleccionado para a sua equipa. No entanto, nada disto foi pior que a própria selecção. Ainda hoje, Scorpius tremia ao lembrar-se do que o Chapéus Seleccionador tinha dito.
- Hum… vejo aqui uma personalidade complexa. Ora, não me cabe a mim prever o futuro, mas penso que daqui a uns anos serás um modelo perfeito de um Gryffindor.
- O quê??? Gryffindor? – dissera Scorpius horrorizado. Era tão imbecil na altura, agora pensava. – O meu pai, o meu pai… a minha mãe… o que vão pensar? Eu tenho de ir para os Slytherins…
- Calma, calma, rapaz… Bem, de facto é de notar a grande influência de sangue Slytherin nas tuas veias. Já para não falar do teu sangue puríssimo de feiticeiro – e aqui Scorpius lembrava-se de se ter sentido extremamente orgulhoso – Mas nota que eu poderei colocar-te nos Slytherins, mas um dia isso não se adequará a ti.
Na sala da biblioteca, Scorpius suspirou. Agora sabia bem quão infantil tinha sido na altura e arrependia-se de ter insisto em ser colocado nos Slytherin. Mas, mesmo assim, lembrava-se que tinha sentido uma enorme aflição quando o Chapéu tinha sequer pensado em pô-lo na equipa que o seu pai mais odiava, a equipa do famoso Harry Potter e a equipa em que estava o seu filho James e para a qual o seu irmão Albus seria, certamente, seleccionado.
- Bem, rapaz, se é assim tão importante para ti e para o teu pai, assim seja… Slytherin!
Scorpius lembrava-se como tinha respirado fundo e se tinha sentido muito mais confiante depois da selecção. Tenho de enviar uma coruja para casa… o papá vai ficar tão contente!, pensou. Caminhou confiante para a mesa dos Slytherin e foi recebido com um aplauso. Louis Goyle, dois anos mais velho que Scorpius, sorriu da ponta mesa. Scorpius já o conhecia na altura, era filho de um dos amigos de infância do seu pai, mas não gostava muito dele – achava-o um pouco néscio, até mesmo estúpido. Mas, por delicadeza, e porque já tinha ganho o dia, sorriu-lhe de volta.
Mas isso tinha sido há seis anos. Entretanto, seis anos tinham passado e as coisas tinham mudado imenso. No início tinha tudo corrido perfeitamente: com o desejo de agradar o seu pai, Scorpius tinha-se esforçado imenso para ser o primeiro em todas as disciplinas e de facto tinha conseguido manter-se sempre entre os melhores. Menos na estúpida cadeira de Cuidados Com as Criaturas Mágicas, leccionada pelo Grande Hagrid, que já estava demasiado velho para dar aulas e perdia muitas vezes a linha de raciocínio. Continuava a ser um bom aluno, no entanto, os motivos pelos quais se continuava a esforçar mais do que a maior parte dos seus colegas tinham mudado.
Agradar o seu pai já não era importante, pelo contrário. Quando, no 3º ano, o pai tinha deixado a casa, Scorpius tinha pensado mesmo em descuidar dos estudos como forma de o irritar, de lhe chamar a atenção. Mas os estudos acabaram por se tornar num refúgio, uma forma de «esquecer» que em casa as coisas estavam péssimas, que os seus colegas o odiavam ou desprezavam cada vez mais, que era infeliz e se sentia sozinho e incompleto…
Há 3 anos atrás Scorpius era o mais popular entre os Slytherin e o mais respeitado. Esforçava-se imenso por parecer que realmente isso lhe interessava, pois era isso que os seus colegas esperavam dele. Esforçava-se por ser forte, arrogante e confiante, pois eram essas as qualidades que apreciavam na sua equipa. Mas por dentro tornara-se cada vez mais consciente de que o que o pai lhe ensinara e o que os seus colegas apreciavam não estava certo. Não estava certo desprezar as outras equipas, não estava certo odiar todos os Gryffindor, não estava certo troçar dos mais fracos, nem, quando era o primeiro a agarrar a Snitch, dando a vitória à sua equipa de Quidditch, estava certo festejar a derrota da outra equipa E, pior de tudo, estava totalmente errado desprezar Muggles, meios-sangues e Sangues de Lama,…
- Não somos todos iguais? Não somos todos seres humanos? - dissera numa das primeiras aulas de Estudo dos Muggles no 3º ano. Os poucos colegas Slytherin que assistiam a essa aula ficaram deveras incomodados com o seu comentário e foram contar aos outros Slytherin, instalando-se um ambiente de desprezo e desconfiança em relação ao «amiguinho dos Sangues de Lama». Scorpius depressa aprendeu a não repetir algo do género. Tentou comportar-se como o seu pai lhe ensinara, tentou ser como os outros Slytherin, até ao divórcio dos seus pais. Depois de uma fase de isolamento, sentia-se mais corajoso e pronto a enfrentar os colegas e, mais importante, a demonstrar às outras equipas que não tinha nada contra elas e que desejava que elas não tivessem nada contra ele. «Principalmente a ela…», pensou. Mas tentou afastar o pensamento como se fosse um Dementor que consumia toda a sua felicidade e vontade de viver. No entanto era difícil com ela a dez passos dele a soltar alegres gargalhadas despreocupadas enquanto Leonard lhe fazia carícias no pescoço.
Uma gargalhada mais alta fez-se ouvir e a responsável da biblioteca, Mrs. Pouch, ergueu um olhar de aviso. Rose e Leonard trocaram um olhar de cúmplicidade, pegaram nos sacos e foram embora.
Scorpius sentiu-se, de novo, profundamente infeliz. Tentou lembrar-se quando é que os pensamentos sobre Rose Weasley se tinham tornado mais frequentes. Excepto no dia 1 de Setembro na Plataforma Nove e Três Quartos, Scorpius não se lembrava de ter reparado nela mais do que em qualquer outra rapariga até o seu 4º ano. Sim, fora aí, quando ela entrou na 1ª aula de Runas Antigas do 4º ano com um sorriso jovial, que tudo tinha começado. Já a tinha visto noutras aulas, pois os Gryffindor e os Slytherin tinham aulas conjuntas de Poções e Defesa contra a magia negra, mas, sem qualquer justificação, quando Scorpius a viu nesse momento sentiu o estômago leve para depois o sentir extremamente pesado, tudo numa fracção de segundo. Ouvira Rose dizer qualquer coisa a Mrs. Feehan como:
- Bom dia professora. Mudei este ano para esta diciplina… deixei Estudo dos Muggles…
- Muito bem… Miss Weasley, não é? Pode sentar-se ali ao lado de Mr. Malfoy.
Scorpius tinha sentido o coração dar um pulo e o estômago contorcer-se ainda mais. Rose puxara a cadeira e sentara-se ao lado dele. Não parecia particularmente feliz por estar lá, mas suficientemente resignada para dizer:
- Bom dia… Scorpius Malfoy, não é? O meu nome é Rose Weasley. Já ouvi falar de ti…
- B.. bom di…a…! – foi quanto Scorpius conseguira balbuciar, pois os nervos tinham-no atacado e dominado. Esqueceu-se de sorrir e agora pensava que poderia ter-se esforçado muito mais por causar boa impressão. No entanto, Rose tinha, claramente, estranhado o seu comportamento nervoso, esperando um bocado mais da confiança arrogante típica dos Slytherin.
E pouco mais tinham falado, pois, embora Rose tentasse estabelecer diálogo, ele retribuía sempre respostas curtas e muito mais objectivas que o sociavelmente correcto, de forma a controlar os nervos cada vez que ouvia a sua voz.
Tinha passado quase exactamente dois anos desde esse dia e a Professora Feehan os tinha avisado que no final do ano teriam de entregar um trabalho de investigação e síntese, elaborado a pares, sobre os Hieróglifos do Antigo Egipto e as suas influências na linguagem mágica actual. Ora, como Scorpius continuava com Rose todas as aulas de Runas Antigas ao seu lado, deduziu que faria o trabalho com ela. Essa constatação tinha-o deixado nervoso mas feliz em simultâneo.
- Bem… já estamos quase nas férias de Natal, está na altura de começarmos a trabalhar nisso… - pensou Scorpius em voz alta. E este pensamento foi o que lhe bastou para pegar nas suas coisas e sair da biblioteca.
«Ela deve estar nos jardins, não é?», Scorpius encaminhou-se para o exterior e desejou profundamente que Leonard Phillians não estivesse com Rose, ou seria muitíssimo mais difícil falar com ela.
No entanto, depois de procurar no exterior todo durante meia hora, Scorpius lamentou-se e pensou que ela provavelmente estaria num corredor isolado, ou na Sala das Necessidades, muitas vezes requisitada pelos parzinhos como um local isolado e privado, enrolada em Leonard. Mas, quase imediatamente depois de formular o triste pensamento, viu Leonard acompanhado de Albus Severus e sem sinal de Rose perto deles, retomando o caminho à procura dela.
Quando finalmente a encontrou, ela estava sozinha sentada no corredor perto do Grande Salão, imersa num livro intitulado «Lendas e Mitos da História da Feitiçaria em Inglaterra». Scorpius forçou uma tossidela suave para ela se aperceber que ele estava ali e encheu-se de coragem, coragem essa que foi abalada quando ela se lançou um sorriso interrogativo.
- Rose? Precisávamos de falar…
- Ah sim?
- Sim… Isto é, sobre o… o trabalho de Runas…
- Ah claro. – o sorriso enigmático e desafiador desaparecera, dando lugar a uma expressão muito mais convidativa – Pois… é melhor começarmos a pensar em trabalhar nisso.
- Iá. Eu pensei que… bom, eu não vou passar as férias a casa do meu pai, como de costume, ele está… bom… ocupado… E, se tu ficasses cá nas férias do Natal talvez… bem… pudéssemos…
- Oh, desculpa Scorpius… eu vou passar férias a casa dos Potter, sabes… os pais do Albus?
- Ah, claro… Bem, não há problema… temos tempo depois, né..? – disse ele, num murmúrio, pois estava certo de que, se ergue-se a voz, esta vacilaria…
- Bem… temos. Mas eu volto três dias antes de começarem as aulas, talvez possamos ir começando aí, se quiseres…
- Certo… combinado então…
- Combinado… - e voltou a mergulhar os olhos no livro, mas como Scorpius não se moveu do local ela ergueu-os outra vez – Sim, Scorpius? É tudo não é? Ou queres dizer mais alguma coisa?
Scorpius pensou que havia muito mais coisas que ele queria dizer, mas que, de certeza não iria dizer, não naquele momento. Por isso acenou que não, forçou um sorriso e disse «Xau» e em resposta recebeu um sorriso que o deixou sem fôlego.

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