Capitulo unico
As batidas na porta eram suaves. Mas insistentes. Ele abriu os olhos. Sentou-se na cama.
—Welky? É você Welky?
A elfa demorou um pouco para responder.
—Eu queria saber se o senhor já acordou. É que está chegando a hora...
—Hora do quê?
—Hora do casamento!
Casamento? Que casamento?
—Que casamento Welky?
Ela deu uma risadinha.
—O senhor já acordou mesmo? Acho que o senhor ainda está dormindo, é bom tomar um café. Vou trazer o café.
Ele recostou a cabeça no esplendor da cama. Hora do casamento? Mas que casamento? Hoje é Quinta-Feira, não? Quinta-feira, trinta e um de julho. Então? Quem é que se casa hoje? Não tenho nenhum casamento marcado para hoje. E logo cedo... Vagou o olhar pelo quarto. Estava ficando muito velha, a Welky, coitada, imagine, vir batendo na porta daquele jeito, “hora do casamento!...” Bocejou, Os objetos do quarto pareciam flutuar no meio da escuridão. Fechou os olhos e fixou-se no espelho oval que emergia das sombras como um peixe luminoso. Quinta-feira trinta e um. “Que casamento é esse? Não sei de nada...”
—Welky! Casamento de quem? Que história é essa?
Ela já não podia ouvi-lo. Atirando longe as cobertas, levantou-se. “Bobagem, não tenho nenhum casamento pra hoje. Ainda bem, uma chateação...”
“Aposto que o dia está azul!”, murmurou ao abrir a janela. Um raio de sol varou o quarto. “Azul, azul”, repetiu sem nenhum entusiasmo. Poderia ir ao clube e depois almoçar com Cho. Passaria rapidamente pelo ministério e em seguida se meteria no cinema, “Hoje não quero nada de importante! Nada!” Bagunçou os cabelos. Arreganhou os lábios para examinar os dentes.
“Hei, Hei, Hei, Weasley é nosso rei!” cantarolou olhando para o espelho. Foi então que viu: estendido na poltrona estava um fraque. Um fraque mesmo? Um fraque, via perfeitamente através do espelho as calças bem vincadas, o colete apontando pra dentro do paletó, a gravata prateada pendendo até o chão.
“Um fraque”, repetiu ele fixando o olhar assombrado na própria imagem. Mas que fraque era esse? E quem o deixara ali, quem? “Nunca tive nenhum fraque, não ia agora... Mas que bobagem é essa? Por Merlin! Quem deixou esse fraque comigo? Como se eu devesse vestir para alguma cerimônia. Para o casamento, a Welky não avisou? Hora do casamento!”
Via-se embaçado no espelho como uma figura de sonhos. O fraque também estava num vapor azulado, breve reflexo do um espelho criado por imagens: uma face podia ser de outra pessoa, um fraque que não era de ninguém. Baixou a cabeça. Welky tinha razão, ele estava mesmo precisando de um café. Um café que devia ser tomado rapidamente, “está na hora do casamento!” Deu alguns passos pelo quarto: rodeava a poltrona mas sem se atrever a tocar na roupa que agora se destacava dentre os móveis e objetos, tão nítida. “Mas que é isto? Quem trouxe esse fraque aqui? Uma brincadeira?” Não, não era brincadeira, Welky era séria demais para entrar em brincadeiras assim. E, depois, onde é que está a graça? Nem tinha cabimento. Um equívoco, então? Um simples equívoco? Aproximou-se da poltrona: estava agora mais curioso do que propriamente surpreendido. De quem seria? Passou a mão no paletó, cheirou-o: bem como tinha imaginado, um fraque novo. Intacto. Examinou o forro. Nele, apenas o nome do alfaiate, Malkins. Os bolsos vazios, claro.
“Malkins”, murmurou inexpressivamente. Arqueou as sobrancelhas. Dei8xou cair a gravata. Um equívoco, é lógico: um amigo ia se casar e a roupa viera pra ele, feito tonta Welky recebeu a pacote e pensou que... Mas que amigo seria esse?
—Posso entrar?
Ele teve um estremecimento: a voz de Welky parecia vir de dentro do espelho.
— Welky, e o... o fraque?
—Que é que tem o fraque, senhor? Não está aí?
—Está. Mas a calça amarrotou um pouco...
—Posso alisar se o senhor quiser. Mas já são nove horas, o casamento não é às dez, senhor? O café está aqui, o senhor não quer uma xícara?
—Agora não, depois.
“Depois”, repetiu baixando o olhar para a poltrona. Empalideceu. Via agora ao lado do armário uma maleta — a maleta que usava para viagens curtas — cuidadosamente preparada, como se daí a alguns instantes devesse embarcar. Ajoelhou-se diante da pilha de roupas. “Mas pra onde? Não sei de nada, não sei de nada!...” Examinou a roupa. Tudo novo, tudo pronto para uma bela lua-de-mel. E quem ia se casar era ele.
Inclinou o corpo para trás, ainda de joelhos, sentou-se sobre os calcanhares, abriu as mãos e ficou olhando para as unhas. “Perdi a memória. Perdi a memória.” Fechou as mãos e bateu com os punhos fechados no chão. “Mas não, não é verdade, me lembro de tudo, como é que perdi a memória se me lembro de tudo?...”
Levantou-se de um salto e arrancou o paletó do pijama. Mas que brincadeira é esta? Que jogo é este? “Estou ótimo, nunca estive tão em forma, sei tudo, lembro tudo, meu nome é Harry, auror, vinte e oito anos, trabalhando no ministério, Percy Weasley é meu chefe, são chatos mas ganho bem, meus pais morreram quando eu tinha um ano e Cho é minha ex-namorada, com quem me encontro sempre, tem dois filhos, o mais novo é Jake... Na primeira gaveta da cômoda, lado direito, estão os enfeites de natal que ela deu pra mim, para lembrar o começo do nosso namoro, dentro de uma caixa estão as fotos de mamãe e papai. Me lembro da minha infância, tudo, tudo, Rua dos Alfeneiro, 4, casa dos Dursley...”
Correu até a cômoda, abriu a gaveta: “Não falei?...”, murmurou ele apertando o medalhão entre os dedos. Sorriu cheio de gratidão para o retrato da mãe, que sorria dias antes de morrer. “Olha aí, não falei?...” Beijou a fotografia e apertou um dos enfeites de natal de Cho. Fechou a gaveta. “E então?” Esboçou um gesto na direção da poltrona. Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno de névoa se fechava indevassável: nomes, caras, tudo era escuridão. Ao começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E nem isso eu tenho. Ou tenho?” Devia ter um retrato, ao menos um retrato! Vagou pelas paredes, pelos móveis. Nada. Revirou as gavetas. Folheou avidamente o álbum com antigas fotos de família, caras amarelas e mortas, desconhecidas na maioria. Nas ultimas páginas, ainda não colados, algumas fotos recentes: flagrantes de um piquenique, de um passeio de barco, de uma festa de formatura... Num instantâneo tirado ao lado de um trem, no meio do grupo de amigos, estava Parvati. Passou o polegar na silhueta ensolarada. Amor breve e brutal que começou no reencontro da turma da Grifinória. Parvati já estava casada. “E eu nunca me casaria com ela”, pensou ao voltar a folha do álbum. “Mas vou me casar agora com uma que num sei quem é.”
“Welky sabe, pergunto a ela!” Mas perguntar como? “Welky, qual é o nome da minha noiva?” Ridículo. Ridículo. Seria denunciar loucura. Vacilou. Mas o que seria agora revelar loucura: recusar a realidade ou pactuar com ela?
Abriu de novo o álbum, apanhou ao acaso uma foto de Cho. Não, não, Cho já havia casado uma vez, e bruxos só se casam uma vez na vida, a não ser que seja viúva, ela não pode casar pela segunda vez. “A noiva é solteira. Ou viúva. E com personalidade, eu jamais vestiria esse fraque se não fosse obrigado. Palhaçada de casamento com fraque. Ela deve ter exigido todo o ritual, não abril mão de nada... E eu? Que papel estou fazendo nisso tudo?!” Ficou olhando para a carinha bonita de Fleur. Viúva. “Mas por que Fleur? Não, não, impossível, por que teria de ser ela?” Tirou ao acaso um postal de dentro de um envelope: dentre duas desconhecidas estava Luna com seus cabelos loiros e mal cuidados, talvez. A Luna. E se fosse a Luna? Um caso que se arrastara um ano. No ultimo encontro — Lembrava-se tão bem — beberam uísque de fogo e se deitando lado a lado, ouviram as Esquisitonas. Acho as Esquisitonas irritantes, disse ela se levantando e, com um feitiço, calando o pequeno radio. Ele chegou a esboçar um gesto para retê-la mas pensou: pra quê? Viu-a se vestir sabendo muito bem que ela não voltaria. Mas estava com sono. Fazia calor. Deixou-a partir. E se ela tivesse voltado? Guardou o retrato no envelope, não podia se a Luna, alguém lhe dissera a tempos que ela andava viajando com um lunático como ela. Fechou o álbum. E Lilá casada pela terceira vez. E Kattie, a suave Kattie do tempo do quadribol. E Angelina já era mãe de cinco filhos. E Padma estava morta.
—O senhor quer o café agora? — perguntou Welky
Ele recebeu a bandeja. Encarou-a. Era evidente que ela não podia gostar da idéia de vê-lo casando, nenhuma elfa quer ter um senhora. Mas além desse ressentimento não haveria naquele sorriso qualquer coisa maligna? Achou-a de um certo modo esquiva. Ambígua.
—Sabe as horas, Welky?
—Vinte pras dez, senhor. O senhor está atrasado.
—Posso me vestir num instante, você sabe.
—Sei, senhor, mas hoje é diferente...
Ele demorou o olhar no café fumegante. Negro, negro. Aspirou-lhe o cheiro. “E se eu der um chute nesse fraque, não caso coisa nenhuma, não me lembro de nada, esse casamento é uma farsa!” Poderiam interná-lo como louco.”Enlouqueceu na manhã do casamento”, diria o jornal. “É que não sei também até que ponto me comprometi. Até que ponto.”
Bebeu o café. Encarou-a de novo.
—Então Welky? Tudo em ordem?
Ela sorriu.
—O senhor é que sabe — disse enfiando as mãos nos bolsos do avental. — Ih, já estava me esquecendo, olha aí, chegaram mais estes telegramas, senhor.
Ele examinou o primeiro. O segundo. Nenhuma pista. O nome dela não estava mencionado nos votos ingênuos convencionais. Telegramas de colegas do ministério. De parentes. Ao noivo. Ao noivo.
“Até que ponto me comprometi?”, repetiu a si mesmo sacudindo a cabeça que já começava a doer. Dirigiu-se ao banheiro. E só quando se cortou pela segunda vez no queixo é que reparou que estava se barbeando sem ensaboar a cara. Lavou o corte que sangrava sem parar. E se dissesse não! Seria fácil, “chega, não caso coisa nenhuma, não pedi ninguém em casamento, não quero, não quero!” Mas teria de saber antes até que ponto tinha ido. Um jogo difícil, sem regras, sem parceiros. Quando deu acordo de si, já estava na hora da cerimônia. A solução era prosseguir jogando.
—Harry! Harry!
Era a voz de Rony. Inclinando-se até o jorro de água, Harry molhou mais uma vez o rosto. Os pulsos.
—Mas, Harry... Você ainda está assim? Faltam só dez minutos! Como você se atrasou desse jeito? Descalço, de pijama!...
Harry baixou o olhar. Rony era seu melhor amigo. Contudo, viera busca-lo para “aquilo”.
—Fico pronto num instante, já fiz a barba.
—E que barba, olha aí, se cortou todo. Já tomou banho?
—Não.
—Ainda Não?! Por Merlin, Harry! Bom, paciência, toma na volta que agora não vai dar tempo — Exclamou Rony empurrando-o para o quarto. — Acho que será o primeiro noivo a se casar sem tomar banho. Uma nota original, sem dúvida.
—Nesse casamento tem outras notas mais originais ainda — murmurou Harry. e quis rir mas os lábios se fecharam numa crispação exasperada.
—Você está pálido, Harry, que palidez é essa? Nervoso?
—Não.
—Acho que a noiva está mais calma.
—Você tem aí o convite?
—Que convite?
—Do casamento.
—Claro que não tenho o convite, que é que você quer com o convite?
—Queria ver uma coisa...
—Que coisa? Não tem que ver nada, Harry, estamos atrasadíssimos, eu sei onde é o lugar, sei a hora, que mais você quer? Nunca vi noivo assim — resmungou Rony.
Harry entregou-lhe a gravata. Pensou em Gina. Gina! Irmã caçula de Rony, a mais bonita, a mais graciosa. Seria ela? Seria? Apalpou os bolsos do colete. Mas o nome devia estar na aliança, pois claro, na aliança.
—E as alianças?
—Estão com a minha mãe, esqueceu? Mas mova-se, homem, vamos embora.
Quando passou por Welky, ela enxugava os olhos na barra do avental. Tocou-lhe o braço.
—Você não vem, Welky?
—Não gosto de ver, senhor.
“Nem eu”, quis lhe dizer. E num relance descobriu algumas caixas de presentes em cima da mesa. Os presentes, como não pensara nisso? O nome dela devia estar nos cartões dos presentes! Mas Rony já o impelia para a rua, “Depressa, não fique assim parado!” Quando entrou no carro, procurou relaxara crispação dos músculos. Afundou na almofada, fechou os olhos. O fraque era largo demais, o colarinho apertava e a cabeça já doía sem disfarce. Mas agora estava tranqüilo, misteriosamente tranqüilo. Deixava-se conduzir. Para onde? Não importava. Rony sabia. E era Rony quem estava na direção.
—O lugar é longe?
—Estamos diante dele — disse Rony arrefecendo a marcha do carro. — Limpe esse corte que está sangrando.
“Perto, não?”, pensou Harry num sobressalto. E quanta gente, quanta gente. Ela devia ser muito relacionada para atrair tanta gente assim. Fechou o vidro da janela. Queria ser aquele menino que vivia trancafiado debaixo da escada dos tios, queria ser a sobra de um gatinho, só a sombra. Guardou no bolso o lenço com sangue.
—O noivo, o noivo! — exclamaram os curiosos espiando para dentro do carro.
Num andar autônomo, Harry foi caminhando em meio dos convidados que se agitaram, farfalhantes. O suor descia-lhe pelas têmporas. Sentiu os lábios secos, a boca seca. Enxugou a testa sentindo no braço, delicada e energética, a pressão dos dedos de Rony impelindo-o para o altar. O perfume das flores era morno como nos velórios. E a nódoa no lenço. Sentia-se enfraquecido como se todo o seu sangue e não apenas algumas gotas tivesse se esvaído naquele corte. Apalpou-o
—Esse cheiro, Rony.
—Que cheiro?
Não respondeu. Viu a Senhora Weasley num dramático chapéu preto e vermelho. Viu Jorge cochichando com Carlinhos e rindo. Viu mais além — e o coração pesou-lhe — Cho ao lado de dois meninos, viu-a rapidamente mas pode sentir o quanto estivera triste, “mas o que é isto, eu não sabia de nada, Harry?! Por que você não me contou?” Viu Percy conversando com alguns colegas do ministério, todos com aquele sorriso malicioso, detestável. Viu Kattie — estaria bêbada? — meio vacilante sob o chapelão de palha. E viu Gina.
Num desfalecimento, Harry quis se apoiar em alguma coisa ao seu alcance. Mas não havia nada ao seu alcance para se apoiar. A cabeça latejou com mais violência, Gina. Gina entre os convidados, a Gininha toda vestida de azul, não podia ser um vestido mais azul, “não é você, Gininha!?...”
—Ela acabou de chegar — avisou a senhora Weasley aproximando-se afobada. — Está tão linda!
Escancarou-se a porta: no alto da escadaria a noiva foi surgindo lentamente, como se tivesse estado submersa abaixo do nível do tapete vermelho. E agora viesse à tona sem nenhuma pressa: primeiro a cabeça, depois os ombros, os braços... Tinha o rosto coberto por um denso véu que flutuava na correnteza do vento como a vela desfraldada de um barco. Susana?
Ela foi se aproximando, obediente ao compasso grave da marcha. Harry apertou os olhos míopes. Como era denso o véu! Quem estaria por detrás, quem? Só vestido, só rendas, só flores, uma flor tão úmida, tão brilhante... o vento soprando a nebulosa que deslizava pelo tapete, indevassável e tão diáfana. Leve. Subia agora os degraus do altar. Harry adiantou-se deu-lhe o braço adivinhando-a sorrir lá no fundo dos véus. Não seria Anna?
Por um momento ele fixou o olhar na mão enluvada que se apoiou no seu braço. Era leve como se a luva estivesse vazia, nada lá dentro, ninguém sob os véus, só névoa. A sedução do mistério envolveu-o como num sortilégio, agora estava excitado demais para recuar. Entregou-se.
O silêncio. Era como se estivesse ali à espera não alguns minutos mas alguns anos. Muitos anos. A duração de uma vida. Quando ele apanhou a ponta do véu que lhe descia até os ombros, ele teve o sentimento de que estava chegando ao fim. Quem, quem? O véu foi subindo de vagar, tão devagar, difícil o gesto. E tão fácil. Atirou-o para trás num movimento suave mais firme.
Harry encarou seus olhos castanhos e seus cabelos, normalmente volumosos, agora presos em um maravilhosos coque.
“Que estranho. Lembrei-me de tantas! Mas justamente nela eu não tinha pensado...”
Inclinou-se para beija-la.
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