Eu nunca te amei...



15. Eu nunca te amei...


Brucutu poderia muito bem ter voltado. Poderia muito bem estar agora em volta da casa, pronto para cumprir as ameaças.
— Juízo! — disse ela.
— Juízo! — repetia o inimigo rachado, mais cruel que de costume. — Ah, o juízo de Hermione! Ah, a paixão de Hermione! Ah, o amor de Hermione! Juízo...
— Esse juízo eu já perdi junto com o amor que nunca terei...
— Você perdeu foi a vontade de lutar. De lutar por aquilo que você quer.
— Ah, Draco, Draco... será que tudo que tenho feito não foi lutar por ele?
— Você luta pela vitória de outro exército. O exército de Gina.
— É o único exército que tem alguma chance. O meu não pode ganhar nenhuma batalha...
— O que tem o seu que os outros não têm?
— Gina é linda! E eu sou feia!
— Ninguém, nunca, lhe disse isso.
— E que eu sou linda? Alguém disse?
— Harry diz isso, o tempo todo. Mostra isso, o tempo todo.
— Mas Draco...
— Draco disse, na noite da festa.
— Aquela noite... Ah, se aquela noite nunca tivesse acontecido! Ah, se eu nunca tivesse conhecido aquele anjo! Ah, se aquela correntinha nunca tivesse roçado o meu rosto! Ah, se a sombra da noite não tivesse disfarçado a feiúra da bêbada gorducha caída na grama do jardim! Ah, se eu pudesse esquecer aquele beijo! Ah, se eu não fosse tão feia!
— Ninguém, nunca, lhe disse isso também.
— Eu digo! Você diz!
— Ninguém diz nada para você. Não adianta. Você nunca ouve.
— Eu vejo, eu sinto, eu amo!
— Sim, mas o que você faz consigo mesma?
— O que eu tenho de fazer, eu vou fazer. Esta noite.

Da morte não sei o dia,
Mas posso saber!

Aos poucos, frase a frase, Hermione estava transtornada, como se tivesse discutido por horas com a mais teimosa das criaturas.
— E você... você será minha testemunha.
— Eu sou sempre sua testemunha.
— Primeiro tenho de testemunhar outra morte. A primeira morte real que chegou perto de mim. A morte feia. A morte grotesca. O assassinato covarde de uma mulher que sabia rir. Acho que eu devo isso a ela. Alguém a empurrou para a morte. Ela não escolheu.
— E você?
— Ninguém escolhe por mim.
— Brucutu pode escolher...
Brucutu! Hermione imaginou aquelas mãos enormes agarrando, apertando, estraçalhando. Lembrou-se do sonho, do pesadelo, da dor, da nudez, da espada ensangüentada, da brutalidade. Que outro método usaria Brucutu para matar? Linamarina? Um fino pó branco colocado em um envelope plástico? Não. Sem sangue, sem carnes dilaceradas nem ossos esmigalhados não seria uma ação de Brucutu.
— Ninguém escolhe o meu caminho. Ninguém escolhe a minha hora. Aqui está a minha escolha!
Na palma da mão esquerda, o pequeno frasco de comprimidos.
— Hermione...
Na mão direita, a escova de cabelo começou a trabalhar. A demolir. Metodicamente, Hermione golpeou o inimigo uma, duas, dez vezes.
— Adeus! Vamos embora. Vamos juntos.
— Hermione! Abra!
A campainha tocou com insistência. Depois, batidas frenéticas à porta da frente despertaram parte da consciência de Hermione.
— Já vou, Brucutu. Já estou indo!
— Sou eu, Hermione. Abra! Eu trouxe a polícia!
Espalhadas pela pia e pelo chão de ladrilhos, milhões de imagens de Hermione. O inimigo se multiplicara ao infinito.

***


Foi uma Hermione diferente que abriu a porta. Uma mulher. Por fora, calma, adulta, controlada.
A professora Bellatrix entrou apressada e abraçou a menina com o carinho de uma irmã mais velha.
— Trouxe a polícia comigo, Hermione. Podemos entrar?
Hermione hesitou. Não esperava aquela mulher com a polícia. Atrás da professora, entrou o mesmo investigador nervoso que cuidara do interrogatório no colégio. Como era mesmo o nome dele?
Hermione apontou o sofá da sala para os dois, como uma perfeita dona-de-casa que estivesse recebendo convidados para o chá.
— Algumas perguntas eu deixei de fazer daquela vez, na diretoria, Hermione — começou o investigador, sem perder tempo. — E eu sei que também houve muitas respostas que você deixou de dar. Você é menor de idade, e eu não posso chamá-la oficialmente para depor, se você não quiser. Mas, agora, que tal colocarmos essas perguntas e essas respostas em dia?
Hermione hesitou novamente. Mas, depois do ataque de Brucutu, ela estava convencida de que precisava falar tudo o que sabia. O medo do que Brucutu pudesse fazer não contava. Ela devia falar. E ninguém melhor para ouvir do que a polícia.
A professora Bellatrix tirou um pacote de bombons da bolsa.
— Alguém quer um bombom?
— Obrigado.
— Não, obrigada.
— Eu é que estou nervosa por você, Hermione. Estou deixando de fumar e comendo doces para distrair a vontade. Um pouco de açúcar é o melhor relaxante que existe. Assim, eu me livro do câncer nos pulmões e estouro de engordar!
Ninguém achou graça. Ela deixou o saco de bombons na mesinha, em frente ao sofá, e ficou mordiscando um deles.
Conscientemente, claramente, como se cumprisse uma missão, Hermione começou a falar. Deixou de lado o triste diálogo com Draco, mas descreveu a visita ao laboratório naquela primeira manhã de aulas. Disse da penumbra, da falta de óculos, do vulto de avental, do frasco de linamarina, até das lágrimas.
— Você estava chorando? Por quê?
— Nada, é que... eu tinha tirado um zero em redação...
— Você?! — sorriu a professora, que a conhecia muito bem. — Você tirar um zero em redação?
Em seguida, Hermione falou da conversa com Harry na pracinha e da suspeita de que Brucutu os estivesse ouvindo às escondidas. Depois contou do ataque na rua. Da ameaça de morte. De Brucutu.
— Então tudo se ajusta — comentou a professora, lambendo a pontinha do dedo suja de chocolate. — Brucutu é o culpado. Foi ele quem você viu no laboratório.
Hermione sacudiu firmemente a cabeça.
— Não, não podia ser ele. Mesmo sem óculos, eu reconheceria facilmente aquela figura enorme. Não era ele. Era alguém muito menor.
— Coitadinha... Você passou por uma boa, não foi?
— Você fez muito mal em não me contar tudo o que sabia, na primeira vez, Hermione — censurou o investigador.
— O senhor acha que eu deveria falar tudo ali, na frente de todos, até do Brucutu?
— Está bem. Talvez você tenha feito bem em não falar na frente do Brucutu. Mas você poderia ter me procurado depois. Não é por você ser menor de idade que eu não daria atenção ao que você tinha a dizer. Às vezes, um pequeno detalhe é a última peça que falta para fechar o quebra-cabeça.
— Estou falando agora. Disse tudo o que tinha a dizer.
— De qualquer modo, a ameaça de Brucutu contra você é suficiente para envolvê-lo no caso até o pescoço.
O investigador pegou o telefone e ligou para a delegacia. Do outro lado da linha, alguém recebeu a ordem para que se iniciasse uma caçada a Brucutu.
— Suspeita de homicídio... Um elemento potencialmente violento...
Desligou o telefone e voltou-se para Hermione.
— O vulto que você viu estava de guarda-pó, não estava?
— Estava. De avental branco.
— Isso aponta para algum professor — raciocinou o investigador.
— Pode ser...
— Você poderia me ajudar mais, Hermione. Vamos tentar um jogo.
Pense em todos os professores da escola. Um por um.
— Um por um?
— Sei que você estava nervosa, naquela manhã. Sei que viu pouco, por causa do escuro, das lágrimas e por estar sem óculos. Mas o pouco que você viu pode encaixar-se ou não no porte físico dos professores que você conhece muito bem. Se você se concentrar, poderá eliminar muitos, como fez com dona Minerva e com Brucutu, por serem, ambos, grandes demais. Assim, eu poderia ter uma lista menor de suspeitos a investigar.
Hermione não respondeu. Já tinha dito tudo. Da morte da diretora já tinha cuidado. O resto era com a polícia.
A professora levantou-se bruscamente.
— Ah, não! Chega de atormentar a pobrezinha. Ela já passou por muitos apertos hoje. Agora, precisa descansar. É hora de irmos embora. Deixemos as tais comparações e eliminações para amanhã. Trate de dormir, minha querida. Amanhã, tudo parecerá mais cor-de-rosa.
O investigador concordou.
— Está bem. Descanse sossegada, Hermione. Vou deixar um policial aqui em frente, na rua, a noite toda. Você estará perfeitamente segura.
Hermione fechou a porta atrás dos dois. Agora, estava sozinha com seu último dever cumprido. Colocou um disco na vitrola e estendeu-se no sofá, embalada por uma canção suave, que falava em desalento, em solidão, em amores perdidos.
Sobre a mesinha, o pacote de bombons tinha sido esquecido, com um último, solitário, bombom dentro dele.
Hermione ainda não tinha jantado. Aliás, nem tinha almoçado naquele dia.
Pegou o bombom.

***


O telefone precisou tocar três vezes para arrancar Hermione do agradável torpor que aos poucos tomava conta de todo o seu corpo.
— Alô...
— Hermione?
— Draco... É você...
— Eu preciso de você, prima.
— Eu também preciso muito de você, Draco...
— Priminha, ouça: Gina deixou uma carta aqui em casa que... sei lá! Nem sei como explicar. Quando eu me encontrar com ela amanhã, nem sei o que falar...
— Você não gostou do poema?
— Não é isso. É que... Ei, como você sabe que é um poema?
— É fácil adivinhar, Draco. Gina sempre manda poemas para você, não é?
— Só que desta vez... é um poema estranho...
— Estranho...
— Eu queria que você me explicasse o que Gina quis dizer com isso. Eu não estou entendendo nada...
— Ah, Draco...
— Eu vou ler para você, prima. Quem sabe, até amanhã, você me prepara uma resposta?
— Até amanhã...
— Ouça, Hermione.
Draco começou a ler o poema, pausadamente, com a voz insegura. Do outro lado, estendida no sofá, Hermione acompanhava cada sílaba, cada verso, de olhos fechados, sem um som, mas pronunciando tudo para dentro de si mesma.
—... a cabeça o possui, manipula, e faz dele o que quer!
— Bonito, Draco...
—... haja o que houver, do meu amor esse garoto foi o rei... O que ela quis dizer com foi o rei?
— Continue, continue...
—... a marca desta lágrima testemunha que eu o amei perdidamente...
—... perdidamente...
—... assinei com minhas lágrimas...
—... com minhas lágrimas...
—... mas a cabeça apaixonada delirou...
Embalada pela voz do seu amado, Hermione agarrou seus próprios versos e declamou, esquecendo-se dos segredos e das promessas:
—... foi farsante, vigarista, mascarada, foi amante, entregando-lhe outra amada, foi covarde que amando nunca amou!
Durante um segundo de surpresa, Draco emudeceu do outro lado. E foi quase com um grito que a compreensão de todos aqueles enganos veio à tona:
— Como? Como você conhece este poema? Acabei de encontrar debaixo da porta!
Apesar da tontura, Hermione percebeu o que fizera. Desorientada, tentou consertar o erro:
— Eu... eu não conheço...
— Você sabe de cor o poema! Você...
— Não, não é isso, Draco... Gina me mostrou. Ela...
— Você sabe!
— Não, Draco, eu não sei de nada...
— Essa voz... Aquela tarde, ao telefone... Hermione! Era você!
— Não, não, Draco, não era eu...
— As cartas, os poemas, o tempo todo! Era você, Hermione!
— Não, não...
— Como eu fui ingênuo! Pedi a você que respondesse suas próprias cartas! Todo aquele amor, toda aquela paixão, era você!
— Não era eu, não era eu... era Gina...
— O tempo todo era você! O tempo todo eu a amei através das cartas, pensando que eram de Gina!
— Eram de Gina... de Gina...
— O tempo todo você me amou, Hermione! Esse tempo todo!
— Não, não...
— Você me amou, Hermione!
— Não, meu amor, eu nunca te amei!
— Hermione, minha querida! Eu sempre te amei pelas tuas cartas, pelos teus poemas. Era você, Hermione! É você, meu amor!
As palavras de Draco ressoavam longínquas dentro da cabeça de Hermione, que mergulhava cada vez mais num torpor de ausência, mas agora leve, gostoso, cheio de todas as palavras que ela tanto ansiara ouvir.
— Draco...
— Hermione!
— Tarde demais... tudo tão lindo... mas tarde demais...
— Hermione! Eu não consigo ouvi-la direito...
— Estou tão tonta, Draco... sono... amor... tão tonta... tão lindo... tão tarde... eu...
— Hermione! Hermione! Fale comigo! Hermione! Responda! - Do outro lado da linha, só o silêncio. — Hermione! Não me deixe! Hermione! Vou correndo para aí! Me espere! Meu amor, espere por mim!

***


Continua

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