A sombra de um pesadelo.
13. A sombra de um pesadelo.
— Que coisa mais ridícula, Gina!
— Falar em casamento? Ridículo por quê, Hermione? Ele quer e eu quero. É o que mais quero na vida. Se for preciso, eu invento até o que não houver, só para os meus pais e os pais dele não mudarem de idéia. Eu quero Draco para mim. Inteirinho e para sempre!
— Mas vocês ainda são...
— Somos um homem e uma mulher, Hermione. Perdidamente apaixonados um pelo outro. Isso basta. E você tem tudo a ver com isso, minha amiga. Você ajudou nosso amor a crescer. Você será a nossa madrinha!
— Mandou me chamar, dona Bellatrix?
— Entre, Hermione. Sente-se.
A menina aproximou-se da cadeira indicada. Mas permaneceu de pé.
— Não é nada importante, Hermione. Disseram que você anda meio preocupada, calada, desligada das aulas. O que está acontecendo, minha filha? Ainda impressionada com o suicídio de dona Minerva?
— Hein? Com o quê?
— Com o suicídio de dona Minerva... Suicídio?
— Com o suicídio? É... acho que sim...
A vice-diretora aproximou-se de Hermione e colocou as mãos maternalmente sobre os ombros da aluna.
— Sei que foi duro para você, minha querida. Foi duro para todos nós. Mas todos temos de reagir. A vida continua. E a sua está apenas no começo. Vamos tentar esquecer tudo isso...
Esquecer?
— Ah, dona Bellatrix, não vai dar para esquecer enquanto...
— Enquanto o quê, Hermione?
— N-nada, professora...
A vice-diretora, que assumira o posto de dona Minerva, estava agora controlada, sem os choramingos histéricos daquela manhã. Mas adiantaria falar com ela? Contar-lhe tudo?
Estava claro que não.
— Mãe...
— O que foi, Hermione?
— Posso entrar, mãe?
A menina aproximou-se da cama da mãe e ajoelhou-se na beirada, como costumava fazer muitos anos atrás, quando havia mais um ocupante naquela cama.
— Mãe, eu preciso falar com você.
O quarto só estava iluminado pela luz fria da televisão. Recostada na cama, a mãe de Hermione estranhou um pouco a visita da filha.
— Está na hora da novela, Hermione. Você nunca me procura na hora da novela...
"Você é que não quer ser interrompida na hora da novela, mamãe...", pensou Hermione.
— Mãe... eu preciso de ajuda...
— De ajuda? Que espécie de ajuda quer agora? Você não é a senhorita-sabe-tudo?
— Eu não sei nada, mamãe...
— O que quer, então?
— Eu... eu estou sofrendo, mamãe...
— O que você tem, minha filha? O que está sentindo? Vou telefonar para o médico e...
— Não, mamãe. Eu não estou doente. É... é outra coisa.
— Outra coisa? Mas que outra coisa, menina?
Hermione avançou pela cama de gatinhas, como se quisesse novamente ser um bebê em busca da proteção do colo quente da mãe. Enrodilhou-se, de cabeça baixa.
— Nem sei como contar. Mas eu preciso de ajuda...
— Ajuda? O que você andou fazendo, Hermione?
— Mãe... você amava papai?
— Se eu amava seu pai... Que conversa é essa, Hermione?
— O que você faria se o amasse e ele não amasse você? Como se sentiria?
— Ora, Hermione, isso não são conversas para uma menina da sua idade!
— Mamãe, me ouça: o que você faria se tivesse encontrado o único amor de sua vida e ele estivesse apaixonado pela sua melhor amiga?
— Deixe de besteira, Hermione! Você é muito criança para essas bobagens!
— Eu sou mulher, mamãe! Eu não sou mais criança. Eu preciso de ajuda!
— Você precisa é parar de ler essas bobagens que você anda lendo. Esses livros andam enchendo a sua cabeça de idéias que não são para a sua idade.
— Por favor, mamãe...
— Já acabaram os comerciais, Hermione. A novela já vai começar. Vá para seu quarto agora e deixe de pensar em besteira.
— Por favor...
— E feche a porta. Minha cabeça está me matando!
— Essa menina anda estranha... Não sei...
— Vai ver ela sabe de alguma coisa.
— Não creio. Ela teria dito. Para mim ou para a polícia. Talvez esteja imaginando alguma coisa. Ela é muito inteligente.
— Quer que eu fique de olho nela?
— Não sei... talvez... Mas discretamente. Veja com quem ela anda. Com quem fala. Vai ver, não há nada com que nos preocupar... Mas eu não gostaria que ela dissesse alguma besteira pelos corredores sobre a morte de dona Minerva.
— Deixe comigo.
Brucutu fechou a porta silenciosamente.
Hermione não poderia entrar em aula naquela manhã. Também não poderia ficar em casa, dividindo o espaço com a enxaqueca da mãe. Quando o sinal tocou chamando para a primeira aula, continuou a andar, sem rumo, pelos quarteirões que rodeavam a escola.
Era uma daquelas manhãs geladas de outono e as ruazinhas estavam desertas. A poucas quadras da escola, uma pracinha minúscula, sem bancos nem nada, sobrevivia à especulação imobiliária, exibindo apenas uma árvore. Mas era uma árvore antiga, grande, majestosa, com galhos pesados que pendiam sobre o chão, formando quase uma tenda verde-escura sob a qual Hermione se abrigou.
Debaixo da árvore, a grama não mais crescia, e a menina se sentou no chão batido, meio coberto de folhas caídas e papéis de sorvete.
Já não tinha lágrimas para chorar. Todo o estoque havia empapado o travesseiro naquela noite, enquanto a mãe assistia à novela. Depois, embalada por seu próprio pranto, Hermione adormecera.
Lembrava-se perfeitamente do sonho. Ela era a mesma princesa de um reino distante, a mesma de seus sonhos de criança. Mas agora era uma moça, a beira do mesmo lago de águas cristalinas onde os sapos aguardavam, pacientes, que uma princesa como ela resolvesse beijá-los e transformá-los em príncipes. A água a atraía, e ela desabotoou o corpete de fios de ouro. Estava só, sob um multicolorido dossel de folhagens através do qual a brisa compunha uma sinfonia acompanhada pelo murmúrio suave das águas do lago. Despiu-se completamente e mirou-se refletida no espelho da água.
Já não era uma criança. Seus cabelos soltos desciam pelos ombros, apontando para seios maduros, eretos, pedintes do carinho de uma mão masculina. Suas mãos desceram pelo corpo, contornando uma cintura estreita, um ventre reto e percorrendo uma pele eriçada, excitada, úmida. Acariciou as próprias coxas e demorou-se descobrindo-se mulher. Um calafrio gostoso percorreu-lhe a espinha, subindo até a nuca e espalhando-se pelo cérebro como se fosse o gostinho do chocolate que se derrete mansamente na boca.
Estava pronta. Pronta para o príncipe encantado que viesse, que a tomasse, que aspirasse seu perfume e a carregasse nua em seu cavalo branco.
Uma gargalhada infernal arrancou-a de seu devaneio. Refletida junto ao seu corpinho indefeso, a imagem de um gigante ameaçador aproximava-se cuspindo baba e palavrões. Sentiu-se agarrada por braços peludos, e um hálito demoníaco de alho e enxofre a sufocou.
Aterrorizada, olhou para a carranca do agressor.
Era Brucutu.
Tentou gritar, tentou desvencilhar-se do abraço obsceno. Debateu-se, sentindo aquelas mãos imundas a apalpá-la, a desvendar cada canto do seu corpo, a apertar, a invadir, a profanar, enquanto a gargalhada transformava-se num arfar ofegante.
Sufocada, quase desmaiando, viu quando uma mão de aço abateu-se sobre o ombro do monstro e o arrancou de cima dela.
Era um cavaleiro altivo, de armadura de prata, pronto a defendê-la até a morte. Foi um combate de sonhos. As espadas reluziam e entrecruzavam-se soltando fagulhas. Gotas de sangue salpicavam-lhe a pele nua cada vez que um golpe chegava mais perto. Até que, com um volteio, a espada do cavaleiro fez um círculo de prata no ar, arrancando a cabeça de Brucutu, que rolou pela relva e foi desaparecer nas águas do lago.
O cavaleiro cravou a espada na terra. Olhou para a princesa e, ainda com o elmo abaixado, ajoelhou-se no chão, oferecendo seus préstimos.
Quem seria ele? Pendendo sobre a armadura, uma correntinha balançava.
A correntinha!
Sem vergonha da própria nudez, Hermione atirou-se em seus braços.
De repente, todo o cavalheirismo do herói pareceu desvanecer-se. Ele aceitou o abraço, esmagando-a com o peso da armadura. Onde ela buscava carinho, foi dor que encontrou. Outra vez foi agarrada brutalmente, agora arranhada em ferros como se uma jaula se fechasse sobre ela.
— Não!
Desesperada, ergueu o visor do elmo. Era Brucutu novamente!
— Não! Socorro!
— Calma, Hermione! Eu estou aqui. O que houve?
Outros braços a enlaçavam. Desta vez sob a árvore da praça, aquecendo-a do frio da manhã. Ela havia sonhado tudo de novo, acordada, como se tivesse enlouquecido.
— Calma, meu amor... Me abrace. Está tudo bem...
— Oh, Harry... você...
Deixou-se soluçar baixinho, fungando como uma criança sobre aquele peito amigo que a toda hora se fazia presente.
Os dois deixaram passar todo o tempo de que Hermione precisava. E ela precisou de bastante tempo.
— Desculpe, Harry. Eu ando nervosa, eu ando meio louca, falando sozinha, eu...
— Está bem. Você não está sozinha agora.
Era um bom amigo. Um amigo que Hermione até poderia ter aproveitado melhor se não o tivesse conhecido no pior momento de sua vida. Deixou-se abraçar, e sentiu aquecer-se aquela manhã que soprava gelada por entre as ramagens da pracinha.
— Obrigada, Harry. Foi bom você ter aparecido.
— É a primeira vez que você diz isto.
— Como me encontrou aqui?
— Por acaso. Estava passando...
— Estava passando, nada! Você me seguiu.
— É claro que sim!
— Ah, Harry! Você não toma jeito...
— Está mais calma agora? Quer falar sobre o que a está perturbando tanto?
— Eu... nada... é que... a morte da dona Minerva...
De que adiantaria falar-lhe de Draco? De que adiantaria dizer-lhe de sua desesperança? Afinal, havia a morte da diretora, que os dois haviam testemunhado. Aquela morte os unia. Então era melhor tratar daquela morte. Harry não tinha nada a ver com a outra. A outra morte, a morte-menina, que estava cada vez mais próxima.
— Você quer saber o que eu sei, Harry, não é? É muito pouco, nem sei se adianta...
Harry nada disse. Não insistiu. Se ela achava que devia falar, que falasse. Do modo e no tempo que quisesse.
— Pode não ser nada, Harry. Mas, se for alguma coisa, isso quer dizer que dona Minerva não se suicidou. Ela foi assassinada.
Desviou os olhos do rapaz. O que tinha que falar agora era bem difícil, mas Harry não precisava saber de todos os detalhes.
— Você já me falou de suas suspeitas, Harry. Mas é que eu vi... eu vi uma coisa que... Bem, no primeiro dia de aula, eu entrei no laboratório sozinha. Nem sei por quê, acho que curiosidade, só...
É claro que ela não falaria de Draco!
— O laboratório é escuro, com aquelas cortinas. Mas eu vi alguém, alguém de avental branco, que entrou e pegou alguma coisa. Eu me escondi e acho que ele não me viu. Depois fui ver o frasco em que ele tinha mexido. Na hora, não desconfiei de nada, mas depois...
— O que estava escrito no frasco, Hermione?
— Estava escrito "linamarina"... - Harry soltou um assobio:
— Quer dizer que alguém, às escondidas, pegou um pouco de veneno? Você viu quem era?
— Não. Eu... eu estava sem óculos. Eles estavam sujos e...
— Viu se era jovem? Ou velho? Se era homem ou mulher?
— Não... eu não tenho certeza.
— Era alto? Baixo?
— Só vi que não era gordo.
— Como?
— Não era obeso. Não podia ser dona Minerva.
— É muito pouco, Hermione. Para a polícia é muito pouco. Uma garota, sem óculos, escondida na escuridão do laboratório, vê alguém...
— Que não é gordo...
— Que não é gordo, pegando um pouco de veneno. Ele pode ter mexido em outro frasco, não pode?
— Pode. Só que, se mexeu na linamarina, temos um indício.
— Muito pequeno. Quase nada, para a polícia.
— Mas, se for real, temos alguém, três semanas antes do crime...
Harry sorriu paciente, como se explicasse a tabuada a uma criança.
— Hermione, todas as semanas, todos os dias, antes e depois da morte de dona Minerva, tem sempre alguém mexendo nos frascos do laboratório. Isso não prova nada.
— Sei que não prova nada, Harry. Sei que muitos funcionários e professores estão autorizados a trabalhar com os produtos do laboratório. Mas alguém entrou lá e pegou um pouco de veneno para matar dona Minerva. E eu vi quando ele fez isso! Eu sei que ele fez isso!
— Ora, Hermione! Que mania a sua de sempre saber tudo! Se você falar disso à polícia, o máximo que eles vão pensar é que existe uma menininha querendo bancar a detetive...
Hermione calou-se por um instante, avaliando as palavras de Harry. Sem olhar para o amigo, perguntou:
— E você, Harry? O que pensa?
— Eu penso que você é a garota mais adorável que eu conheço. Não me importa se você quer bancar a adulta ou se quer bancar a detetive. Para mim, você é uma criança assustada. Uma criança que eu quero proteger. Proteger e am...
Criança?! O sangue subiu ao rosto de Hermione. Ela se pôs de pé, furiosa, disposta a... Mas um outro rosto, uma carantonha sinistra, recortada em meio às sombras indefinidas da folhagem, calou o protesto que estava pronto a explodir em sua garganta.
— O quê? Harry, veja!
A folhagem mexeu-se e Harry levantou-se apenas a tempo de correr, afastando os galhos pesados, e perceber o vulto de alguém que desaparecia na esquina oposta.
Hermione refez-se da surpresa e alcançou o amigo.
— Quem era, Harry? Você viu? Acho que alguém estava espionando a gente.
— Espionando? Chega de bancar a detetive, Hermione. Deve ser um moleque qualquer.
— Não parecia um moleque, Harry. Que horror! Me abrace, por favor...
— Nem precisa pedir...
O rapaz enlaçou carinhosamente a menina e esperou que aquele coraçãozinho recuperasse os batimentos normais.
— Harry, acho... acho que estou tendo outro pesadelo: eu juraria que era Brucutu.
— Brucutu? Bobagem! Se fosse ele, já nos teria agarrado pelas orelhas. Nós estamos cabulando aula, esqueceu-se?
Continua
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