Um pouco de veneno.



II. Paixão que mata.




11. Um pouco de veneno.



Hermione era um fantasma, naquela manhã. O primeiro sinal acabara de soar quando ela chegou ao colégio. Não teve coragem de juntar-se ao tumulto dos estudantes correndo para as classes. Encostou-se à parede, abraçada ao fichário e ao livro de química inorgânica, e ficou vendo esvaziar-se o pátio.
Inorgânica... não-orgânica... sem órgãos... sem organismo... sem entranhas... sem vida... mas cheia de paixão, cheia daquela paixão de um lado só, sem retorno, sem correspondência, sem esperança, sem futuro...
Sem futuro mesmo, depois daquela tarde. A mãe tinha chegado, é claro, com sua enxaqueca e a surpresa de encontrar o sobrinho com Gina em pleno sofá da sala.
— Na maior atracação! Pouca vergonha! O que vão dizer os vizinhos? Ah, se seu pai estivesse vivo...
— Ele está vivo, mamãe!
Depois, à noite, conselho de família. Exigências de compromissos. Os pais de Gina, bem à antiga, imaginando todas as safadezas, falando em exames médicos, derramando lágrimas e ameaças.
Mas discutir o quê? Ali estavam os dois, amando-se como nunca, como nunca querendo compromissos, jurando amor eterno.
— Praticamente duas crianças! — lamentava-se tia Narcisa. — Não é cedo demais para se falar em papéis assinados?
Todos os papéis que importavam, porém, já tinham sido escritos. E todos por Hermione. Foram eles que geraram e alimentavam ainda o amor daqueles dois. E destruíam a esperança da autora. Em muitos deles, ficara apenas a marca de uma lágrima. Pingada na solidão de seu desespero.
— Senhorita Ilusão... Hermione... Não vai subir para a classe? – Harry! Sempre Harry, sempre presente, nunca Draco!
— Já vou, Harry. É só um instante. Suba você.
— Eu espero.
— Não, por favor. Vá. Eu preciso deste instante. Faça isso por mim.
Harry aproximou-se suavemente. Tomou-lhe a pontinha do queixo e ergueu o rosto de Hermione em direção ao seu.
— Não, Harry, por favor...
Com a palma da mão, procurou afastar o rapaz.
— Eu preciso ficar só, só um momento...
— Hermione...
Seus dedos enroscaram-se em alguma coisa que saía da camisa de Harry, quando ela se esquivou dos lábios que procuravam os seus. Com o arranque, algo veio partido, pendurado em sua mão.
"Uma correntinha... Estão na moda as correntinhas...", pensou a menina.
A correntinha caiu no chão. Abaixaram-se os dois para recolhê-la, mas...
— Ei, vocês dois! O que estão fazendo fora da classe? - Brucutu! O bedel-chefe. Uma massa enorme que devia ter sido carcereiro antes de empregar-se naquele colégio. O pavor de todos os alunos, o perseguidor implacável. O pesadelo dos cabuladores, dos conversadores, dos namoradores.
— Nada... a gente já ia subir...
— Já deviam ter subido, vocês sabem muito bem. Ninguém pode ficar no pátio depois do sinal!
— Sim, é que...
— Pra diretoria já! Os dois!
A mão de Harry apertou a de Hermione, para dar-lhe apoio. Mas aquilo não era necessário. Ouvir um discursinho de dona Minerva, a diretora obesa e sorridente que era a alma daquela escola, não assustava ninguém. Quem assustava era Brucutu.

***


Apertando mais do que o necessário, Brucutu arrastou os dois pelos braços até à diretoria.
Sem saber explicar por quê, Hermione sentia um clima de insegurança ao longo do corredor.
— O que está havendo? — estranhou o enorme bedel.
A porta da diretoria estava fechada. À sua frente, a jovem professora de filosofia esmurrava a porta, nervosamente.
— O que houve, dona Tonks? — perguntou Brucutu.
— Hein? Não sei. Estou preocupada. Eu tinha uma reunião com dona Minerva agora, mas ela está trancada aí dentro. Não responde...
— Bom, eu tenho a chave mestra. Se a senhora quiser...
— O que está esperando? Abra logo!
Brucutu largou os dois e tirou um molho de chaves do bolso.
— Está difícil... A outra chave está na fechadura, do lado de dentro...
— Anda logo! — insistiu nervosamente a professora Tonks.
A fechadura cedeu com um estalo. Brucutu abriu a porta e agarrou novamente os braços de Hermione e Harry, acompanhando-os para dentro da diretoria.
As cortinas estavam fechadas e as luzes todas acesas. Isso era anormal, para aquela hora da manhã, mas era assim que dona Minerva trabalhava em seus serões.
— Dona Minerva? — Hermione ouviu atrás de si a voz da professora de filosofia. — Onde a senhora está?
A enorme mesa de trabalho, antiga e esculpida a mão por algum artista esquecido há muito tempo, estava coberta de papéis. Contendo-se para não gritar de dor por causa do apertão de Brucutu, Hermione foi empurrada à frente, em direção à mesa. Por isso, ela foi a primeira a encontrar o cadáver de dona Minerva.

***


O resto do dia foi uma espécie de pesadelo circense, muito diferente do que Hermione imaginaria para um enredo de filme.
Morta dona Minerva, a autoridade máxima era a professora Bellatrix, uma vice-diretora cuja utilidade na direção da escola ainda não tinha sido percebida por ninguém. Seu primeiro ato como autoridade máxima foi um verdadeiro faniquito, que só serviu para quase transformar em comédia o trágico fim de dona Minerva.
Depois que a fizeram engolir um copo com água açucarada, a professora Bellatrix trancou a diretoria e proibiu que qualquer pessoa entrasse lá.
— Ai, ai, ai, coitada de dona Minerva! Como é que uma coisa dessas foi acontecer? O coração dela era tão forte... Alguém chamou o pronto-socorro?
Foi necessário convencer a professora Bellatrix de que o pronto-socorro teria pouco o que fazer com um cadáver e que o certo seria chamar a polícia, como em todos os casos de morte súbita, sem assistência médica.
— A polícia?! Na nossa escola? Que horror! Coitada da Minerva! Minerva! Minerva!
Entrou na sala da diretora como uma louca e trancou-se, sozinha. Lá dentro, teve outro ataque, aos berros, como se fosse possível acordar a morta.
Quando a porta se abriu, a professora Bellatrix parecia convencida de que a morta estava mesmo morta. Determinou que a diretoria fosse trancada de novo, com cadáver e tudo.
Engoliu mais água com açúcar e, sem parar de lamentar-se, mandou dispensar todos os alunos e funcionários. Mais tarde, teve de agüentar a fúria do investigador, que chegou duas horas depois de chamada a polícia.
— Quem lhe deu ordem para dispensar todo mundo?
— N-ninguém... — gaguejou a professora Bellatrix, sem saber o que fazer com as mãos. — Foi para os alunos não ficarem impressionados...
— E para estragar o meu trabalho!
— N-não... eu pensei que um ataque do coração, como esse... - Não tinha sido um ataque do coração, afinal. Pela projeção da escola e de dona Minerva, a autópsia foi feita naquela mesma tarde. No corpo obeso daquela educadora sorridente, querida por todos, líder de todos, encontraram uma boa dose de cianureto.
Já anoitecia quando um carro da polícia foi buscar Hermione em casa. A mãe veio junto, naturalmente, carregando a pior crise de enxaqueca de que a filha se lembrava.
Mas a mãe teve de aguardar fora da sala da diretora, enquanto o investigador interrogava sua filha. Na sala, apenas a polícia, a professora Bellatrix, que ainda não tinha descoberto o que fazer com as mãos, as quatro testemunhas daquela manhã e o professor de química.
O investigador procurava reconstituir a cena da descoberta do cadáver. Perguntava, interrompia, duvidava. Sentada ao lado de Harry, quase sem ouvir o interrogatório, Hermione recordava claramente todo o cenário daquela manhã.
— Coitada da dona Minerva... — choramingava a professora Bellatrix.
Hermione lembrava-se da mão gorda de dona Minerva, primeiro pedaço da anatomia morta que ela vira entre a mesa e a janela. Coisa feia, sem jeito, que é um cadáver! Ainda mais de alguém tão gordo, tão grande como a diretora. Estava jogada no tapete, como se um caminhão basculante a tivesse descarregado por cima da mesa. O vestido levantado, a boca aberta, os olhos esbugalhados. Nada que pudesse lembrar a alegria, o entusiasmo e o talento daquela mulher. A morte havia levado tudo.
— Coitadinha da dona Minerva... — fungava a professora Bellatrix, como se estivesse ouvindo os pensamentos de Hermione e não o interrogatório profissional do investigador.
Tão gorda... Coitada! Sempre falando em fazer regime. Garantira que, no começo do ano letivo, estava decidida a emagrecer. Dissera que, desta vez, a decisão era para ser levada a sério.
Hermione sorriu e, por um instante, visualizou a mesa da diretora naquela manhã. Lembrou-se claramente de um papel de bombom. Pobre dona Minerva! De dia, comendo saladinhas e exibindo sua vontade de emagrecer como se fosse um troféu e, à noite, fechada na diretoria com seus bombons e sua gulodice, como uma criança que se esconde para fazer reinações.
— Logo agora que ela estava fazendo regime... — lamentou-se a professora Bellatrix.
Daquele momento em diante não haveria mais gula ou regime para dona Minerva. Não havia nem mais o papel de bombom, que desaparecera da mesa. Nela, o que havia era um objeto, talvez um vaso, coberto por um pano.
— Cianureto! — vociferava o investigador para o professor de química. — Como é que uma escola como esta guarda cianureto no laboratório?
O professor de química olhou de lado, procurando algum apoio junto a Brucutu ou à professora Tonks, que parecia a mais revoltada de todos, embora soubesse controlar-se melhor, sem fazer o papel ridículo da professora Bellatrix.
— São estudos que estou fazendo com o pessoal do curso técnico — balbuciou o químico. — Estamos analisando a mandioca e...
— A mandioca?! — berrou o investigador. — Vai me dizer que a vítima foi envenenada com mandioca?
— Não... é que extraímos um glicosídeo da mandioca que...
O pano que cobria o vaso sobre a mesa foi retirado. Não era um vaso. Era um frasco de laboratório. A meia distância, mesmo de óculos, não era possível a Hermione distinguir o que estava escrito no rótulo.
— A autópsia encontrou cianureto, professor.
— Pois é. Neste frasco há glicosídeo cianonitrila que é extraído da mandioca...
— Cianureto?
— É. Pode-se dizer que sim.
— A vítima poderia ter apanhado isto no laboratório, não é? Qualquer pessoa poderia, não é?
— Bem, dona Minerva poderia...
— Como é que uma coisa dessas foi acontecer justo na nossa escola? — lamentou, aos soluços, a professora Bellatrix, assoando o nariz com estrondo.
O investigador exibiu um envelope plástico transparente que revelava um pouco de pó branco.
— Este envelope estava no chão, ao lado da mão da vítima. Certamente é o mesmo produto deste frasco, não é?
— Pode ser... — o professor de química sentia-se esmagado. — Posso fazer uma análise e...
— Deixe isso à polícia técnica, professor. A sua parte irresponsável o senhor já fez, deixando cianureto no laboratório, ao alcance de qualquer um!
O professor protestou timidamente:
— Ora, não é bem assim. Há muitos produtos potencialmente perigosos em qualquer laboratório. No caso da linamarina...
— Como?! O que o senhor disse?
A surpresa de Hermione interrompeu o professor.
— Linamarina. É o nome que se dá a esse glicosídeo.
— A esse veneno, o senhor quer dizer! — cortou o investigador. As recordações daquela triste manhã, na escuridão do laboratório, voltaram todas à memória de Hermione. Linamarina! Os dois nomes de mulher que, juntos, agora eram o nome da morte. Há quase um mês alguém mexera naquele frasco. Na penumbra, sem óculos, cheia de lágrimas, no começo da longa estrada que haveria de afastá-la cada vez mais do seu grande amor, Hermione não poderia ter reconhecido aquele alguém. Sua única certeza é que não poderia ter sido a diretora. O vulto de avental branco não era grande. Nem obeso.
— Coitada da dona Minerva! — choramingou de novo a vice-diretora.
— Dona Bellatrix! Quer retirar-se? A senhora está atrapalhando o interrogatório!
Para a polícia, o caso pareceu simples. A porta trancada, com a chave do lado de dentro, o envelope contendo linamarina, as janelas fechadas e quatro testemunhas que haviam encontrado juntas, o cadáver eram provas suficientes para uma conclusão de suicídio. Motivos para o suicídio? Não cabia à polícia deduzir. Afinal, onde está mesmo a lógica de alguém que decide tirar a própria vida? Uma vida obesa, alegre e produtiva? Uma vida de mulher, uma morte de mulher, uma morte com nome de mulher? Uma morte chamada linamarina?
Lembrou-se do poeta João Cabral de Melo Neto e de Morte e vida severina, aquele poema maravilhoso. Uma vida severina... uma morte linamarina... Tudo se juntava como uma carga pesada demais para Hermione. A recordação daquele beijo louco, daquele Draco louco do jardim, daquela noite louca, quando tudo havia começado. Depois, a desilusão no laboratório, as cartas e os poemas cheios de seu amor desesperado. Agora, aquela morte tão estúpida, tão grotesca, e a lembrança do vulto de branco mexendo na linamarina. Mexendo na morte.
Suicídio... E o que Hermione tinha feito no dia anterior? Não tinha sido ela mesma a disparar o tiro de misericórdia na nuca de sua última esperança de felicidade? O que tinha sido aquela declaração ao telefone? O que tinha significado forçar o encontro de Draco e Gina em sua própria casa? Não fora isso uma espécie de suicídio? Um desejo de acabar logo com aquele sofrimento que só crescia, a cada hora, a cada verso, a cada lágrima?
Afinal, o que era a morte? Uma massa de banha jogada grotescamente sobre um tapete de diretoria? E o que era a vida, o que seria a vida, agora que a ligação entre Draco e Gina tornara-se pública e definitiva? O que seria então a morte senão um alívio, um basta a toda aquela tortura? O que seria a morte? Severina como a do retirante nordestino? Linamarina como a da diretora obesa e sorridente? Como seria a outra morte, a da menina gorda, da garota feia, da poetisa de óculos, espinha no nariz e inimigo rachado?
"Mais vale um fim trágico do que uma tragédia sem fim...", recordou ela, ainda na diretoria, mal sentindo a delicada pressão da mão de Harry sobre a sua.
Olhou para o tapete vazio onde havia descoberto o cadáver da diretora. E foi o seu próprio cadáver que viu ali.

***


— Oh, Hermione, entre. Está mais calminha? - Carinhosamente, a professora Bellatrix fez Hermione entrar na pequena sala da vice-diretoria, tão inútil quanto a ocupante. — Bem... eu é que estava nervosa, não é? Mas você compreende, tenho certeza. Minerva morta, assim, sem mais nem menos... Nós éramos muito amigas, muito amigas mesmo...
— Sinto muito, dona Bellatrix...
— Nós éramos tão amigas... Ela se preocupava tanto comigo... Imagino o seu choque ao encontrar o corpo da pobrezinha. Você parecia tão nervosa lá, durante o interrogatório... Mas não era para menos, não é? Estávamos todos muito nervosos...
Hermione sentiu-se pouco à vontade. O que queria aquela mulher? Será que faria outro escândalo, na frente dela? Um cansaço pesado começou a tomar conta do seu corpo. As cargas que ela tinha de suportar estavam pesadas demais para seus ombros de menina.
— Por que você se surpreendeu com o nome do veneno, querida?
— Eu? Me surpreendi? Não me lembro...
— Acho que foi só impressão minha, não foi? Vai ver foi o nervosismo que... Como era mesmo o nome do veneno?
— O nome, professora? Não sei... cianureto, parece...
— É. Cianureto...
A professora Bellatrix olhava brandamente para a aluna. Mas era um olhar ausente, como se não esperasse resposta.
— Você não sabe... é claro que você não sabe. Pobre amiga morta! Eu já lhe disse que nós éramos muito amigas, não disse? Ela se preocupava tanto comigo... Imagine: tinha cismado que eu devia me aposentar. Queria que eu descansasse. Veja só... Ela trabalhava tanto, era tão dinâmica... E eu é que precisava descansar. Coitada da Minerva...
A professora Bellatriz continuava a falar, como se a menina não existisse, repassando para si mesma aquela amizade que terminara de modo tão triste.
Hermione levantou-se e saiu silenciosamente da sala.
— É tudo tão trágico, Minerva...



***


Continua

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