Capítulo 3
Às vezes a aceitação de um pequeno convite acaba exigindo esforço imensos, Danielle constatou, enquanto olhava pela janela do avião jato - um dos onze da companhia Qu'Har Air. Mas aquele e especial, pois pertencia à família de Hassan.
Um jovem gentil e prestativo, Saud, tinha sido deslocado do trabalho normal nos escritórios da companhia para acompanhar Dal1ieIl naquela viagem. E ela estava encantada com isso.
O barulho dos motores potentes do avião diminuiu, sugerindo q estavam chegando ao destino.
Perdendo o controle, Danielle alisou a saia de seda com dedos trêmulos. O tecido era verde-claro e discreto, e realçava-lhe a cor dos cabelos e o bronzeado da pele. Examinou as mãos e os braços surpreendeu-se por estar tão queimada, o que era raro para uma inglesa típica como ela. Na verdade, tinha apenas tomado um pau do sol ameno da Inglaterra e, segundo Hassan, deveria estar prepara para enfrentar o calorão de todo o mês de agosto em Qu'Har, tem em que permaneceria por lá.
Sentiu curiosidade de saber o que os familiares de Hassan iria achar dela. Embora tivesse prometido a si mesma que não se preocuparia com esse tipo de coisa, agora desejava que tudo corresse be principalmente por causa do padrasto. Por sorte, Jourdan - aconselhado por Hassan, para evitar que se encontrassem - estava em Paris numa viagem de negócios. Sem dúvida seria embaraçoso conhecer, homem que não havia aceitado para ser seu marido.
O jato aterrissava devagar. Pela janelinha, ela pôde ver um céu muito alzul e limpo. Voltou casualmente a cabeça para trás e viu que Saud a fitava. Surpreendido, o rapaz desviou o olhar com timidez, evitando encará-la. Trajava-se com bom gosto, tinha cabelos pretos e lisos e era filho de um dos primos de Hassan e funcionário da companhia. Nos países árabes, essas trocas familiares eram uma virtude nao um hábito condenável, refletiu Danielle, lamentando não ter linda sobre a vida e os costumes da gente com quem iria conviver durante um curto período de tempo. E se, desavisadamente, transgredisse alguma lei? Na verdade, não tinha por que se preocupar... Jamaile, a primeira mulher do irmão mais velho de Hassan, concerteza lhe explicaria tudo o que precisasse saber.
Em pouco tempo o avião parou no aeroporto, castigado pelo sol quente. Agradecida pela presença do tímido acompanhante, ela desembarcou naquela terra estranha.
- Gostou da viagem, senhorita? - perguntou-lhe o piloto, com polidez.
- Sim, obrigada.
Embora estivesse acostumada com o respeito que as pessoas em geral tinham por ela, Danielle nunca soube avaliar o verdadeiro sentido da palavra deferência até se tornar membro da família Ahmed. E pela primeira vez, naquele momento, percebia o que significava de fato pertencer àquela família. .. Isso a encorajava a enfrentar aquele solo desconhecido.
Com calma caminhou em direção ao carro que a esperava. Nenhuma palavra seria suficiente para descrever o Mercedes preto e brilhante estacionado pomposamente à saída do aeroporto, denunciando a posição de seus anfitriões.
Durante grande parte do percurso até o palacete, Danielle permaU calada, olhando encantada os edifícios que se erguiam dos dois lados da avenida principal. À medida que se afastavam do aeroporto, divisar, muito ao longe, uma, grande extensão de deserto, entremeada aqui e ali por palmeiras. De repente, sem que esperasse, surgiram estufas construídas sobre terras cultivadas que, conforme Saud lhe explicou, faziam parte de um novo plano para diminuir a dependência de Qu'Har dos produtos de importação.
- A estufa e a usina recém-construídas no litoral são resultado da vontade de xeque Hassan, para que todo o povo usufrua a riqueza petrlífera do país.
Sim, pensou Danielle, olhando os sinais da tecnologia em toda a su volta. Aqui está uma coisa de que esse rapaz pode se orgulhar!
- Vê aquele prédio branco lá adiante? - perguntou Saud.
- Sim. O que é? .
- Uma nova escola só para mulheres. Foi uma idéia tão ousada que criou uma porção de problemas, até os líderes religiosos resolveram cOncordar com a implantação.
Danielle percebeu um tom de desagrado na voz de Saud.
- Tem alguma coisa contra a educação de mulheres? - perguntou, procurando provocá-lo.
Ele ficou sem saber o que responder, limitando-se a balançar a' cabeça. Entretanto, nos .olhos, estampava-se um forte sinal de desaprovação.
Danielle preferiu suavizar a conversa para não embaraçá-lo mais.
- Bom, aqui é diferente do Ocidente - observou, diplomaticamente. - Fale-me um pouco sobre sua família. Isto é, se não se
importa.
- Oh, não. Claro que não! Bom... o Emir é o chefe da famíli e do país. Sou filho do primo em segundo grau dele e por isso nã, tenho muita importância na hierarquia da família. De fato, foi só trabalhando nos escritórios do xeque Hassan, meu tio, que passei ocupar certa posição na companhia.
- Mas você é formado, não? - Insistiu, lembrando o que padrasto tinha falado a respeito do rapaz. - Por que não procuro trabalho em outro lugar?
- Não quis sair daqui. Qu'Har é o meu lar, e o lar de meus pais O xeque Hassan custeou meus estudos, e os de uma porção de gente e a única maneira que encontrei para retribuir foi utilizar meus conhe cimentos em prol do desenvolvimento do meu país.Danielle sentiu-se comovida pela simplicidade com que Saud falava, ali estava o outro lado do soldado do deserto: a ingenuidade e a lealdade.
- Ele é um homem generoso e sensato - comentou Saud, com seriedade. - Todos nós só temos de lhe agradecer...
- Principalmente Jourdan - arriscou Danielle, pensando cuidados de Hassan para com ele, desde pequeno.
- Ah, sim, Jourdan - Saud repetiu com entusiasmo.
Danielle olhou para ele e viu um olhar cheio de orgulho admiração.
- Papai fala que Jourdan é o sucessor natural do xeque Hassan, e que sem ele nosso país ficaria numa situação tão ruim que logo desaparecia do mapa - explicou o rapaz. - Ele é o que chamamos "dádiva do Profeta".
- Como assim, dádiva do Profeta? - Apesar de sua aversão por aquele homem desconhecido, Danielle não conseguia deixar de se interessar por ele.
- É o nome que a gente dá para quem nasce com a força, o conhecimento e a capacidade de manter nosso povo unido - Saud explicou. - Na nossa casa sempre nasceu alguém com essas qualidades em épocas de conflito e ae necessidade. O pai do xeque Hassan também achou que o filho era uma dádiva, até saber que ele não poderia ser pai. Numa família como a nossa, com tantos irmãos e filhos, existe sempre rivalidade. E às vezes dessa tensão toda surgem os que lutam para conquistar o poder e o controle de tudo. O país é pequeno, mas riquíssimo em petróleo. - lamentável que a nossa gente não consiga administrar essa riqueza com sabedoria. É importante planejar hoje para o futuro, quando talvez não tenhamos o petróleo, e é exatamente isso que o xeque Hassan vem tentando fazer. A maioria dos planos, contudo, já foram colocados em prática. Muito dos nossos melhores homens estudaram no exterior, e somas ulculáveis de dinheiro foram aplicadas no aprendizado e em equipamentos tecnológicos. Mas tudo isso de nada valerá se ninguém estiver preparado para continuar o trabalho iniciado pelo xeque Hassan.
Precisamos de um homem fortíssimo, capaz de vencer todos os obstáculos, feroz como um gavião e esperto como uma serpente. Jourdan é esse homem...
- Feroz como um gavião -, repetiu Danielle com desagrado. Aquilo soava autoritário e agressivo: Esperto como uma serpente. Imaginava uma mente maquiavélica capaz de construir todos os meandros de uma intriga. Sabia quanto os muçulmanos apreciavam a sutileza e precisavam desse dom para alcançarem sucesso no mundo negócios árabes. Um homem que se deixasse enganar não seria bem-visto por um árabe, para quem o respeito era tudo.
- Você gosta muito de Jourdan, não? - disse com naturalidade, perguntando-se se Saud estaria ou não a par do casamento desfeito. Era estranho que, sendo Jourdan tão importante dentro da família real, não lhe tivessem escolhido uma moça árabe.
- Eu o admiro muito - concordou Saud. - Algumas pessoas só não entendem por que ele segue a religião da mãe. Contudo o Corão
reconhece o valor de todas as religiões, e Jourdan aceita os preceitos do Corão e procura segui-las como qualquer um da nossa raça.
- Ele parece ser um modelo de perfeição - Danielle observou, com certa frieza. - é uma pena não poder conhecê-lo...
Entretida com o cenário que se estendia até o horizonte, ela não percebeu o olhar de surpresa de Saud.
O carro avançava para um arco aberto numa enorme parede branca, tão brilhante quanto a luz do sol, e DanieIle fechou os olhos para protegê-los. Quando voltou a abri-los, o automóvel estava parando na frente de um edifício baixo e comprido com muitas janelas fechadas e um delicado trabalho em mosaico decorando a entrada.
- Vou deixá-la aqui - disse Saud, saindo do carro. - O criado a levará até o alojamento feminino, onde Jamaile a receberá.
- Vamos nos ver outra vez?
Saud corou e lançou um olhar ansioso para o motorista, que se aproximava, como se dentro dele crescesse uma incontrolável vontade de ficar a sós com ela, para que ninguém os ouvisse conversando.
- Pedirei a papai permissão para revê-la - respondeu, quase murmurando.
O motorista tomou o lugar e em poucos minutos o carro arrancou, passando por baixo de outro arco decorado com frisas em arabesco, que dava para um pátio fechado. Numa das quatro paredes, uma porta se abriu. Sentindo-se como Alice no País das Maravilhas, Danielle compreendeu que devia entrar por aquela porta. Ela assim fez, como se vivesse um sonho, ciente de que uma ou outra porta, na parede ao lado, também tinha se aberto. Não se voltou para ver, mas alguém pegou sua bagagem e seguiu silenciosamente atrás dela. Atravessou a porta escancarada e de repente viu-se envolvida pelo aroma forte de incenso de jasmim.
- Queira seguir-me, por favor!
A moça que falava estava vestida de preto dos pés à cabeça e tinha a voz baixa e melodiosa. Começaram a andar e Danielle ouviu o tilintar de argolas colocadas nos tornozelos dela. No final do longo corredor, ela abriu uma porta e indicou a Danielle que a seguisse.
Era um aposento quadrado, com um pequeno divã debaixo de uma janela, junto a uma pequena fonte.
- Se me permite...
A moça puxou Danielle gentilmente para sentar no divã e tirou-lhe as sandálias de salto alto. Em seguida, lavou-lhe as mãos e os pés com a água da fonte, cujo perfume era suave e exótico.
Os gestos da jovem eram decididos e rápidos, o olhar modesto e triste. Ela deve ser uma espécie de criada, Danielle pensou, enquanto a moça se levantava e ia até o outro lado do aposento, de onde voltou trazendo um par de chinelos bordados.
- É necessário usá-los na presença de Jamaile - explicou.- É costume àjoelhar-se e aproximar-se, depois sair sem voltar as costas.
Mas no seu caso basta ajoelhar-se. Para você, as formalidades habituais foram dispensadas...
O inglês da jovem era perfeito, tão perfeito que fazia Danielle envergonhar-se por não saber uma palavra da língua árabe.
- Onde aprendeu falar inglês tão bem?
- Foi papai quem me ensinou. E estou aqui só por causa disso. Jamaile quer que todas as filhas e netas aprendam essa língua.
- Por quê?
- Para que possam estudar na Inglaterra. Ela deseja que as garotas da família recebam uma boa educação. Diz que é importante para que elas não sejam rejeitadas pelos homens por causa da ignorância. Mas agora, se permite, vou levá-la até a presença dela.
Estavam numa ante-sala que conduzia à câmara ampla com teto abobadado, adornado com pinturas e alto-relevo.
- Meu Deus! - exclamou Danielle, maravilhada com tanta beleza. Que cores! Eram múltiplas e ricas em tonalidades, como se fossem jóias faiscantes sob um intenso raio de sol!
Numa extremidade da câmara, erguia-se uma plataforma com uma poltrona luxuosa, delicadamente esculpida, e, atrás dela, uma parede com arabescos, repleta de formas abstratas e coloridas que pareciam ter atingido uma beleza inimaginável. Pedras semipreciosas tinham sido incrustadas e brilhavam com os raios do sol que atravessavam as frestas das venezianas fechadas.Danielle, como que voltando de um prolongado delírio, finalmente percebeu que a moça havia saído. Uma porta no painel pintado se abriu e ela, lembrando das explicações, ajoelhou-se com rapidez sobre o pequeno tapete colocado para esse fim no piso ladrilhado.
Com a cabeça abaixada, ouviu um leve tilintar de metais e o farfalhar de sedas. Não ousou olhar para cima, até que uma voz macia, e agradável ecoou:
- Venha cá, minha filha, quero conhecer o tesouro de Hassan...
Daniella pôs-se de pé e deu alguns passos indecisos em direção ao trono. Deparou-se com o olhar atento de uma mulher baixa, miúda, luxuosamente vestida, os dedos cobertos de anéis e jóias pendurudas no pescoço.
- Os cabelos dela têm a cor do deserto depois da chuva - comentou a mulher com uma outra, que estava parada atrás do trono.
Danielle não tinha notado a presença dela até Jamaile falar.
- Na Inglaterra - disse uma outra acompanhante -, essa cor indica vivacidade.
Jamaile sorriu e com um gesto pediu a Danielle que subisse na plataforma.
- Como são afortunados os homens ingleses - comentou. -, Enquanto aqui nossos patrícios julgam as mulheres pela reputação, lá basta olhá-las para perceberem se estão diante de uma mulher geniosa, temperamental como uma potranca árabe, ou dócil como uma pomba.
- Ela observou Danielle com atenção. - Qual delas, na sua opinião, um homem escolheria?
- Não sei. - Danielle respondeu, hesitante. - Imagino que os homens, assim como as mulheres, têm necessidades diferentes. Uns preferem mulheres serenas, outros, temperamentais.
- Ela fala com prudência - Jamaile disse às acompanhantes.- Hassan não mentiu: sua beleza é como a dos nenúfares e outras flores aquáticas, pálidas e delicadas, que se fecham em si mesmas quando ameaçadas por algum perigo. Enquanto estiver em Qu'Har, Danielle, você ficará aqui, sob minha guarda, certo?
Danielle assentiu com a cabeça, encantada com a maneira da mulher se referir a ela.
- Como Hassan deve ter explicado, nossas mulheres não andam sozinhas nas ruas, e nunca se apresentam a um homem sem cobrir o rosto com um véu. A não ser diante do pai ou do marido. Naturalmente, como européia, não precisa seguir esse costume. Mas como filha de nosso irmão, talvez fosse aconselhável adotá-lo. Deixo a seu critério a decisão... Caso prefira segui-lo enquanto estiver entre nós, Zoe providenciará um chadrah e lhe dará explicações sobre as leis de nosso país. Todavia, nós compreenderíamos se desejasse manter os hábitos ocidentais...
Como é que eu posso contestá-la?, perguntou-se Danielle, percebendo que não havia outra saída senão aceitar a proposta feita por Jamaile. Se insistisse em usar as próprias roupas, talvez a acusassem de ser egoísta e indiferente à reputação de Hassan; se se vestisse e se comportasse como uma mulher muçulmana, seria o primeiro passO para agredir sua própria personalidade.
A mulher silenciou, aguardando a resposta. Danielle lembrou da generosidade e do amor que Hassan sempre lhe dedicou e compreendeu que havia apenas uma escolha.
- Usarei o chadrah - disse, um tanto desanimada, dominada por uma sensação de fatalidade da qual não conseguia fugir. Era como se tivesse embarcado numa viagem sem rumo, como se a sua vida nunca mais pudesse voltar ao normal pelo simples fato de ter pronundado aquela frase.
No fundo, porém, aceitava aS regras do jogo esperando que a fllmília de Hassán não mais criticasse sua mãe, escolhida como segunda esposa do xeque.
Jamaile sorriu.
- Assim seja! Acompanhe Zoe. Mais tarde conversaremos. Há muitos anos não vejo Hassan e você me dará notícias dele e da velha Inglaterra, que não visito desde à minha infância.
Danielle afastou-se devagar de Jamaile, sem voltar as costas, o que Zoe aprovou com um sorriso.
Depois que saíram da câmara de recepção, Danielle seguiu Zoe ao longo de um enorme corredor.
- Seus aposentos já estão preparados...
Subiram uma escada espiralada que parecia não ter fim. Chegando no patamar, Zoe abriu uma porta e pediu a Danielle que entrasse. Danielle, então, ficou maravilhada, acompanhando Zoe pelo salão exótico até darem num quarto suntuoso, onde havia uma cama coberta com lençóis de seda adornados com pequenas e delicadas folhas douradas. Ao lado, ficava o . quarto de vestir com guarda-roupas espelhados, uma inovação evidentemente recente, e mais adiante um banheiro com peças em mármore cor-de-rosa, que se harmonizava com o padrão de cores do quarto.
- A criada trará algumaS roupas para você escolher - disse Zoe -, e amanhã uma costureira providenciará exatamente o que desejar...
- Oh, mas vou ficar aqui apenas três semanas - Danielle argumentou. - Não há necessidade...
- Recusar os presentes de J amaile seria o mesmo que insultá-Ia - Zoe avisou, com seriedade.
- Bom, nesse caso...
Zoe ficou com ela algum tempo, explicando detalhes da maneira correta de agir em diversas situações.
- Mas como é que vou me lembrar de tudo isso? - DanieU quis saber.
- Não é tão difícil quanto parece. Sempre haverá uma de nós po rperto para ajudá-la... Eu a verei hoje à noite, no jantar - acrescentou, levantando do divã. - Você sabe descer sozinha?
- Oh, claro! Prestei muita atenção em todo o caminho! É tudo muito bonito. Não me esquecerei!
Zoe saiu e fechou a porta atrás de si. Danielle sentiu-se desamparada.
Apesar das diferenças de cultura e de educação, gostava de Zoe, com seu olhar meigo e a voz branda. Era sobrinha de Jamaile conforme tinha sido informada, e uma de suas acompanhantes, que era motivo de alegria à família. Se Jamaile se sentisse satisfeita com o desempenho dela até o final do ano, retribuiria aumentando-lhe o dote e ajudando seus pais a encontrarem um bom marido para ela.
Danielle ficou espantada com essa revelação, mas Zoe parecia contente e feliz com o fato de o pai escolher o companheiro de sua vida. Não tocaram no nome de Jourdan embora o assunto fosse propício, e Danielle nada comentou por imaginar que aquele casamento arranjado fosse mantido em segredo pela família.
Tão logo Zoe se retirou, Danielle examinou os guarda-roupas. Um meia dúzia de cáftãs de seda estava pendurada, com cores que ia , do rosa ao verde-jade mais intenso. Pegou um deles e colocou sobre ó corpo, descobrindo que logo se transformaria numa oriental desajeitada. Desajeitada, sim, mas com um ar sensual de apaixonada.Imediatamente repôs o cáftã ao lado dos outros.
Bateram de leve à porta e, antes que pudesse responder, uma criada entrou.
- Vim por ordem de Jamaile - explicou. - Trouxe-lhe este chadrah para usá-lo no palácio.
Danielle pegou o véu grosso e negro, disfarçando o desagrado, e arrepiou-se só com a idéia de usar aquela peça a contragosto, pois estaria traindo seus princípios mais arraigados. Porém, lembrou que ali ela representava o padrasto e não ficaria bem ofender a quem quer que fosse. De repente, soou o alto e agudo som de um sino, e ela, assustada, deixou cair o manto.
A criada prostrou-se imediatamente, ficando imóvel por vários segundos antes de levantar, calma e graciosamente, e dirigir-se a Danielle.
- Com certeza deseja um bom banho antes do jantar e estou aqui para ajudá-la. Trouxe-lhe um perfume feito com as rosas de nosso jardim. Danielle teve ímpetos de dizer que não precisava de ajuda, mas antes que pudesse falar, a moça caminhou para o suntuoso banheiro, abriu as torneiras e misturou uma essência forte dentro da banheira, o que fez com que a água se tomasse leitosa.
- Eu... eu prefiro me lavar sozinha - Começou Danielle.
A expressão da criada era de mágoa e decepção.
- Quer que eu me retire?
- Sabe, as garotas européias não estão acostumadas com acompanhantes... Como se chama?
- Zanaide - respondeu a moça, intimidada. - Jamaile pensará que a ofendi se me mandar embora...
Os enormes olhos castanhos de Zanaide ficaram tão tristonhos, que Dunielle não teve como argumentar. Enquanto a moça lavava-lhe o corpo com uma esponja macia, ela reconhecia que naquele momento não poderia negar o prazer e a delícia que sentia por estar mergulhada numa água aromatizada. Quando saiu da banheira e enrolou-se na toalha estendida por Zanaide, percebeu que não tinha ficado nem um pouco inibida.
- Sua pele é tão branca e macia! - observou Zanaide. - O homem que tiver a felicidade de olhá-la ficará maravilhado diante de tanta beleza. Mas acho que deveria comer mais para engordar uns quilinhos.
- Nos países europeus os homens preferem mulheres magras e esguias - Danielle justificou com um sorriso malicioso, adivinhando os pensamentos da criada.
- Você não é noiva?
- Não - respondeu, ainda sonindo e balançando a cabeça.- E você é?
- Há muitos anos! Sou noiva do meu primo de segundo grau, como é costume. Vamos casar no ano que vem. - Suspirou, pôs-se de pé e abriu um pequeno armário. - Se quiser deitar no divã, por favor...
Perturbada, Danielle obedeceu, e pouco depois Zanaide começou a massageá-la com um óleo perfumado.
-Não vejo Faisal há muito tempo - a moça continuou. - Ele estudou numa universidade da Inglaterra e de lá foi trabalhar na Arábia Saudita. Meu irmão disse que se transformou num home muito bonito!
Uma covinha apareceu nas faces de Zanaide quando sorriu com malícia do comentário e, como. resposta, Danielle também sorriu.
- E você não se importa com esse casamento arranjado? Não gostaria de conhecer um homem especial, apaixonar-se por ele e aí então optar pelo casamento?
- Eu me apaixonarei pelo meu marido - respondeu Zanaide, sem hesitar. - Se me comportasse de outra maneira, só traria desonra para minha família.
Sem dizer nada, retirou-se do quarto por alguns momentos e voltou com um cáftã verde-jade no braço.
- Não, esse não! - protestou DanieUe, lembrando que já havia experimentado aquele e constatado o péssimo resultado sobre o corpo.
Zanaide franziu as sobrancelhas, sem compreender.
- Por que não? É o mais bonito! Não quer insultar Jamaile, quer? Com sinceridade, o que acha dele?
- É deslumbrante - admitiu -, mas me sinto mais à vontade com minhas roupas. Você também não gostaria de usar o tipo de roupa que se usa no meu país!
Zanaide riu, piscando os olhos.
- Também uso jeans, mas só em casa, com mamãe e minhas irmãs. Mamãe não se conforma, mas meus irmãos dizem para ela que na Europa todas as moças adotaram calças compridas. Isso é muito salutar! Aproveitar as boas coisas dos dois mundos...
DanielIe arregalou os olhos, espantada com a confissão de Zanaide. Mas então as mulheres muçulmanas não se submetiam completamente à dominação dos homens?
Aparentemente sim. Enquanto Zanaide lavava-lhe e enxugava-lhe os cabelos, procurava dar informações esclarecedoras, o que fez com que DanieIle formasse um quadro bastante diferente daquele que havia traçado inicialmente. Além de estudarem no exterior, as mulheres eram encorajadas a fazer longos treinamentos, e como mostravam-se discretas e observavam as leis muçulmanas, também gozavam um certo grau de liberdade.
- Claro, a gente não pode dançar e ficar à vontade entre os homens, como acontece na Europa, mas o xeque Hassan fez muito por nós e prometeu ajudar-nos ainda mais. Muitas de nós preferem continuar usando o chadrah e manter o antigo padrão de vida. Não é verdade que o desconhecido oferece maior fascínio que o conhecido? Nosso mistério é que fascina os homens...
Danielle compareceu ao jantar e depois retirou-se, aliviada. Todas as mulheres tinham sido gentis, mas o esforço para lembrar de todos nomes, somado à longa viagem e ao ambiente estranho, cultivou na sensação de extremo cansaço. O que mais desejava naquele momento era atirar-se numa cama confortável.
Já havia tomado duas xícaras de café forte e sem dúvida teria tio obrigada a aceitar outras se Zoe não notasse seu embaraço e desse um jeitinho de poupá-la. A comida, embora deliciosa, pesava no estômago. Foi com satisfação que Danielle deixou a mesa e andou pelo corredor em direção à escada em espiral que dava para o seu quarto. Lá, Zanaide deveria estar à sua espera.
Com o corpo e a cabeça pesados, sentiu que os degraus não tinham fim. Mas dizendo a si mesma que aquilo era produto da sua imaginação, segurou o tecido do chadrah e continuou subindo.
Candelabros de parede iluminavam a escadaria e, noS cantos, as sombras tremiam quando uma brisa mais forte agitava as chamas.
Uma das sombras escuras pareceu avançar ao seu encontro. Deteve-se, engoliu em seco e, observando com atenção, notou que não se tratava de uma sombra, mas de um homem vestido com um manto preto, que laDra parecia envolvê-Ia.
O manto se abriu e mostrou um peito forte e bronzeado, coberto de pêlos crespos ainda molhados, como se o desconhecido tivesse acabado de sair do banho. Danielle ergueu os olhos e viu os cabelos pretos e úmidos. O rosto, extremamente masculino, tinha ossos angulosos e acentuados, o olhar brilhante.
O homem moveu-se e disse algumas palavras em árabe e então, na meia-luz, Danielle viu seus olhos negros que a examinavam com arrogância.
Ele tornou a falar, desta vez com voz ríspida, como se lhe desse ulguma ordem.
- Eu... não entendo a sua língua. Só falo ingiês...
Os lábios dele se abriram e dentes brancos brilharam na penumbra.
Ele a teria compreendido? Danielle estremeceu e deu um passo atrás, instintivamente.
Uma mão magra agarrou-lhe o pulso e a puxou para a frente.
- Está à minha procura? -ele perguntou num inglês quase perfeito. Mas não havia gentileza na voz. Pelo contrário, parecia muito impaciente.
Danielle não soube fazer outra coisa senão fitá-lo e, quando a soltou, automaticamente esfregou o pulso dolorido.
- Estava indo para o meu quarto...
Ele franziu as sobrancelhas espessas, com um ar incrédulo.
- Nessa parte do palácio? Não sabe que não existem mulheres por aqui?...
Mais que as palavras, o tom insolente fez Danielle enrubescer como se acabasse de cometer um crime. Voltou o rosto e olhou para baixo.
- Oh, mas eu tenho certeza que tomei o caminho certo...
O homem agora parecia sério e indiferente à explicação.
Quantos anos ele terá?, perguntou-se Danielle. Trinta? Talvez u pouco mais? Fosse qual fosse a idade, sem dúvida alguma tratava-se de alguém que gostaria de conhecer. Apesar da antipatia inicial, reconhecia a intensa masculinidade dele, pressentia o tronco esguio, mas poderoso por baixo do manto; as coxas de músculos tensos que a seda fina não conseguia esconder.
- Então...?
Os olhos dele não paravam de percorrer todo o corpo dela, desa fitando-a. E quando paravam para encará-la, pareciam ler seus pensamentos com facilidade. Ele sabia do efeito que causava em Danielle Parecia sentir o pulsar acelerado do coração dela.
Ela lhe deu as costas, procurando esconder o tremor dos lábios, dominada pelo desejo instintivo de desaparecer dali imediatamente. Mas como? O ambiente a havia influenciado tanto, a ponto de se comportar como Zoe e Zanaide na presença de um homem desconhecido? Onde estavam a segurança e a independência conquistadas com tanto esfqrço?
- Não notei que havia me distanciado da ala das mulheres... Não poderia fazer a gentileza de me indicar o corredor certo?
Ele sorriu com ironia. Danielle endureceu o corpo, percebendo que zombava dela. Mas os olhos não... os olhos a estudavam minuciosamente...
- Você é bastante ousada - ele observou. - Ou será a simples ignorância que fez a pombinha indefesa passar para o reino do poderoso gavião? Desconhece por acaso o perigo que está correndo?...
Cansada e confusa, Danielle fítou-o em silêncio, a respiração difícil. Ele então prendeu-a novamente pelos pulsos e puxou-a contra o corpo másculo, os rostos quase colados. Sem esperar qualquer reação, beijou-a com violência.
Ela nunca tinha experimentado um beijo tão íntimo e tão ardoroso, nunca havia sentido a pressão de mãos masculinas nos seus quadris, apertando-a contra um corpo que, para seu espanto, estava completamente nu sob o manto!
O contato lhe despertou os sentidos. Afastou-se com todas as forças conseguiu reunir, mas as mãos dele de novo a prenderam. Aperpdo-lhe os pulsos com mais força ainda, rindo da sua vã tentativa de livra-se dele, comentou:
- Quer dizer então que as mulheres inglesas nem sempre são indiferentes à preservação da castidade? Você fica vermelha como uma rosa que desabrocba no jardim... Também está fechada no pátio, desconhecido e inexplorado... Mas...
- Pare com isso! Não quero ouvi-lo! Me solte e deixe que eu vá hora... Vou me queixar a Jamaile!
Ele riu e deixou-a se afastar do corpo inquieto, embora continuasse prendendo-lhe um dos pulsos.
- Não, não, mignonne... talvez antes queira saber o nome do homem que se comportou tão mal com você...
Danielle, apreensiva e com um estranho pressentimento, encarou-o uurdando a revelação. Mas por que tremia tanto? O que estava acontecendo com ela? Não acreditava que a simples presença de um homem arrogante e pretensioso pudesse torná-la tão frágil e vulnerável!
O rosto dele mergulhava quase totalmente na penumbra, mas ainda, sim ela podia distinguir os músculos tensos das faces, a linha austera da boca, os lábios ameaçadores esboçando um riso sarcástico.
- Quer ou não quer saber quem sou?
A mão dele soltou-lhe o pulso e pousou sobre o ombro, os dedos pressionando para sentir melhor a carne oculta pelo tecido. Ali estava alguém que conbecia profundamente uma mulher, penson Danielle; um homem que se divertia com ela, que zombava do seu embaraço.
Ao toque forte da mão, ela enrijeceu os músculos, tentando fazê-lo recuar. Porém ele riu mais uma vez, deslizando as mãos e apalpando-lhe o seio. Danielle sentiu a respiração presa, o sangue correndo veloz nas veias.
- Seu coração está sob as minhas mãos, como um pássaro pego numa armadilha - ele falou com suavidade, arfando levemente.
Como se ardesse em chamas, Danielle recuou, sentindo o calor das mãos no seio estender-se por todo o corpo. Mas ele não permitiu qu se afastasse demais.
Retirou as mãos e descobriu-lhe a cabeça, desmanchando o penteado feito por Zanaide. A luz mortiça do candelabro iluminou a cabeça de Danielle, como uma fogueira viva.
- Essa luz embeleza a filha de Rassan...
Uma frase como essa, pensou Danielle, teria sido ridícula em outra circunstâncias. Mas ali, naquele antigo palácio povoado de pessoas estranhas, simplesmente estimulava-a a se comportar como a heroína dos romances que sempre desprezou...
- Quem é você? - ela perguntou, afinal, numa voz trêmula.
Ele sorriu com a mesma arrogância e ergueu as sobrancelhas. A entrar numa área mais iluminada, Danielle viu-lhe o corpo poderoso, que se movimentava como se pertencesse a um mundo divino a que nenhum ser humano tinha acesso.
- Quer dizer que realmente não sabe meu nome?
Ele agora falava com uma voz séria, que assustava Danielle. O ar à volta parecia esfriar mais e mais, dominado por uma presença demoníaca e devastadora.
- Como poderia saber? Acabei de chegar e...
- Também acabo de chegar - cortou o homem. - Estava indo para os meus aposentos quando a encontrei, e então pensei que pudesse estar, me procurando. Uma conclusão lógica, não é mesmo, filha de Rassan? Sabe, conheço bem os ingleses... Agarram-se muito, à lógica. Estou certo?
- Não. .. está redondamente enganado! - DanieIle desejava contestá-lo a qualquer preço. - Eu estava indo para os meus aposentos também... Creio que subi a escada errada, é só. - Mas agora, " pensou, é tarde, muito tarde! Ah, se tivesse voltado no momento que pressenti a proximidade daquele homem! - Depois, que motivo teria eu para procurar um homem que sequer conheço? - concluiu.
Sentiu uma grande satisfação ao falar com todo o desprezo possível, num esforço de ferir-lhe o orgulho. De fato, o rosto tenso dele transmitia raiva, uma raiva que poderia levá-lo a um gesto mais violento, a uma tempestade de emoções que facilmente a derrotaria...
- Existe um motivo mais forte do que imagina, filha de Rassan - ele respondeu, com a voz macia e ao mesmo tempo ameaçadora. - Sou Jourdan Saud lbn Ahmed.
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