CAPÍTULO UM
UM
Eu estava na 5ª série quando pensei pela primeira vez sobre fazer trinta anos. Um dia, eu e minha melhor amiga Cho pegamos uma agenda e abrimos no final, onde havia um calendário perpétuo que permitia consultar qualquer data no futuro e, por meio de uma pequena tabela, determinar qual seria o dia da semana correspondente. Então localizamos nossos aniversários do ano seguinte, o meu em maio e o dela em setembro. O meu caía na quarta, uma noite de aula. O dela caía na sexta. Uma vitória pequena, mas típica. Cho era sempre a mais sortuda. Sua pele se bronzeava mais rápido, seu cabelo era mais fácil de modelar e ela não precisava de aparelho nos dentes. Tinha a melhor coleção de adesivos. Mais bótons do Michael Jackson. Tinha também um jeans de cinqüenta dólares da Guess, com zíperes na lateral do tornozelo, além de dois furos em cada orelha e um irmão, o que era melhor do que ser filha única como eu.
Pelo menos eu era alguns meses mais velha e ela nunca poderia me alcançar. Foi aí que decidi checar meu trigésimo aniversário — num ano tão distante que soava como ficção científica. Caía num domingo, o que significava que meu marido boa-pinta e eu providenciaríamos uma babá responsável para os nossos dois (possivelmente três) filhos na noite de sábado, jantaríamos num sofisticado restaurante francês com guardanapos de pano e ficaríamos fora até depois da meia-noite, de forma que, tecnicamente, estaríamos celebrando na data real do meu aniversário. Eu teria acabado de ganhar uma grande causa, de provar a inocência de um homem da cidade. E meu marido faria um brinde em minha homenagem: “À Hermione, minha linda esposa, mãe dos meus filhos e a melhor advogada da cidade.” Compartilhava minha fantasia com Cho quando descobrimos que seu trigésimo aniversário caía numa terça-feira. Uma decepção para ela. Observei enquanto ela apertava os lábios processando a informação.
— Você sabe como é, Mione, quem se importa com o dia da semana em que cai o aniversário de trinta anos? — ela disse, sacudindo os ombros macios e bronzeados. — Até lá nós já estaremos velhas. Os aniversários não importam quando a gente fica velha.
Pensei nos meus pais, que estavam na faixa dos trinta, e na maneira displicente com que tratavam os próprios aniversários. Meu pai acabara de dar uma torradeira de aniversário para minha mãe, porque a nossa havia quebrado na semana anterior. A torradeira nova torrava quatro fatias de pão ao mesmo tempo, em vez de apenas duas. Não era exatamente um presente, mas minha mãe pareceu bem satisfeita com seu novo eletrodoméstico. Em nenhum momento pude identificar nela a decepção que eu sentia quando meus presentes de Natal não correspondiam às minhas expectativas. Então Cho provavelmente tinha razão. Coisas divertidas como aniversários não teriam tanta importância quando chegássemos aos trinta.
Só fui pensar outra vez nesse assunto no último ano da escola, quando Cho e eu começamos a ver uma série meio triste na televisão. Nós preferíamos programas mais alegres, mas mesmo assim assistíamos. Meu grande problema com essa série eram os personagens, que viviam se queixando, e as questões deprimentes que eles pareciam estar sempre atraindo. Lembro de achar que eles tinham mais era que crescer e parar com frescuras, parar de ficar tentando entender o sentido da vida e começar a fazer a lista do supermercado. Isso foi na época em que eu pensava que os meus anos de adolescência estavam se arrastando demais e que os meus vinte anos certamente durariam para sempre.
Então cheguei aos meus vinte anos. E os primeiros anos dessa década realmente pareceram intermináveis. Quando ouvia pessoas que eu conhecia e que eram um pouco mais velhas do que eu lamentando o fim da juventude, eu ficava toda prosa, não me sentia ainda na zona de perigo. Tinha tempo de sobra. Até que cheguei aos 27, quando os dias de ter de apresentar carteira de identidade para provar a idade se tornaram coisa do passado e quando comecei a ficar impressionada com a repentina aceleração dos anos, e com as conseqüentes rugas e os primeiros cabelos brancos (nessa época sempre me lembrava dos monólogos anuais da minha mãe enquanto tirava do armário os enfeites de Natal). Aos 29, um verdadeiro pavor se instalou, e eu me dei conta de que de certo modo era como se eu já tivesse trinta. Mas nem tanto. Porque ainda poderia continuar dizendo que tinha vinte e poucos. Ainda tinha algo em comum com estudantes universitários em vias de se formar.
Descobri que trinta era apenas um número, que a gente tem a idade que sente que tem e tudo o mais. Também me dei conta de que, sob um ponto de vista mais abrangente, uma pessoa de trinta ainda é jovem. Mas não tão jovem. Está longe, por exemplo, da idade mais adequada para se ter filhos. É tarde demais para, digamos, começar a treinar para ganhar uma medalha olímpica. Mesmo considerando-se a hipótese de morrer em idade avançada, ainda assim a gente está a um terço do caminho para cruzar a linha de chegada. Por isso, não consigo evitar uma certa inquietação ao me sentar num sofá marrom-avermelhado bem fofo, numa sala escura no Upper West Side, na minha festa-surpresa de aniversário organizada pela Cho, que ainda é minha melhor amiga.
Amanhã é o domingo que contemplei pela primeira vez quando era uma aluna de 5ª série, brincando com a agenda. Depois de hoje à noite, os meus vinte anos vão ter se acabado, serão um capítulo fechado para sempre. A sensação que eu tenho me faz lembrar das noites de Ano-Novo, quando a contagem regressiva começa e eu fico na dúvida entre pegar minha câmera ou apenas viver o momento. Geralmente pego a câmera e mais tarde me arrependo quando a foto não sai. Então fico extremamente frustrada e penso comigo mesma que a noite teria sido mais divertida se não significasse tanto, se eu não fosse forçada a analisar onde estivera até aquele momento e para onde estava indo.
Como as noites de Ano-Novo, esta noite representa um final e um começo. Não gosto de finais e começos. Se pudesse escolher, ficaria oscilando entre os dois extremos. A pior coisa desse final (da minha juventude) e desse começo (da meia-idade) é que, pela primeira vez na vida, percebo que não sei para onde estou indo. Meus desejos são simples: um trabalho de que eu goste e um cara que eu ame. E na noite do meu trigésimo aniversário tenho de reconhecer que estou perdendo por 2 a 0.
Em primeiro lugar, sou advogada de um grande escritório de Nova York. Por definição isso significa que sou uma desgraçada. Ser advogada simplesmente não corresponde ao que dizem por aí. Trabalho durante horas torturantes, cuidando das tarefas mais tediosas para um dos advogados associados do escritório, que é mesquinho e obsessivo. E esse tipo de ódio pelo próprio trabalho é uma coisa que começa a crescer aos poucos em você. É por isso que já sei de cor o mantra das pessoas que trabalham em escritórios de advocacia: Odeio meu trabalho e logo, logo vou pedir demissão. Logo que pagar meus empréstimos. Logo que ganhar o bônus do próximo ano. Logo que pensar em alguma outra coisa para fazer que pague o meu aluguel. Ou logo que achar alguém que passe a pagar por mim.
O que leva à minha segunda constatação: estou sozinha numa cidade de milhões. Tenho vários amigos, como ficou comprovado pela presença maciça esta noite. Amigos para andar de patins. Amigos para veranear nos Hamptons. Amigos para encontrar na quinta à noite depois do trabalho, para um, dois, ou três drinques. E tenho Cho, minha melhor amiga, que nasceu no mesmo lugar que eu e sintetiza tudo isso que acabei de dizer. Só que todo mundo sabe que amigos não são tudo, embora muitas vezes eu diga o contrário, apenas para não ficar mal diante das minhas amigas casadas e noivas. Eu não tinha planos de estar sozinha quando chegasse aos trinta, mesmo ao início dos trinta. A esta altura eu já queria ter um marido; queria ter ficado noiva na faixa dos vinte. Mas aprendi que a gente não pode simplesmente fazer um cronograma pessoal e desejar que se torne realidade. Então aqui estou eu, às portas de uma nova década, chegando à conclusão de que estar sozinha faz dos meus trinta anos uma coisa assustadora, e de que ter completado trinta faz com que eu me sinta mais sozinha.
A situação parece ainda mais sombria porque a minha melhor amiga, e a mais antiga, tem um trabalho glamouroso como relações públicas e ficou noiva há pouco tempo. Cho continua sendo a sortuda da turma. Estou a observando agora, enquanto ela conta uma história para um grupo de amigos nossos, incluindo o noivo dela. Harry e Cho formam um belo casal, magros e altos, ambos com cabelos escuros e olhos verdes. Eles fazem parte da alta sociedade de Nova York. São o tipo de casal bem arrumado que vai ao sexto andar da Bloomingdales's fazer listas de casamento que incluem porcelana fina e cristais. Você odeia o ar presunçoso deles, mas não consegue deixar de olhar quando está no mesmo andar, em busca de •um presente "não tão caro" para o último de uma série de casamentos para os quais você foi convidada sem ter um namorado. Você se estica para dar uma espiada no anel dela e no mesmo instante se arrepende. Ela percebe e lança um olhar de desprezo na sua direção, enquanto checa você de cima a baixo. Você desejaria não ter ido de tênis para a Bloomingdales's. Ela provavelmente fica achando que os sapatos talvez sejam parte do seu problema. Você compra então o seu vaso Waterford e se manda dali.
- Moral da história: se você quer uma depilação à brasileira, seja bem específica. Diga à depiladora para deixar uma margem de segurança ou vai acabar sem nada, como uma menininha de dez anos de idade! - Cho conclui sua historinha indecente e todo mundo ri. Com exceção de Harry, que balança a cabeça como se dissesse "que figura esta minha noiva".- Certo. Volto já, já - declara ela, de repente. - Uma rodada de tequila para todos!
Enquanto ela se afasta do grupo em direção ao bar, começo a me lembrar de todos os aniversários que celebramos juntas, todos os marcos que atingimos juntas, marcos que eu sempre atingi primeiro. Tirei minha carteira de motorista antes dela e pude legalmente beber antes dela. Ser mais velha, mesmo que por apenas alguns meses, costumava ser uma coisa boa. Mas agora nossa sorte mudou. Cho tem um verão a mais na faixa dos vinte — uma vantagem de ter nascido no outono. Não que isso faça muita diferença para ela: quando você está noiva ou é casada, fazer trinta anos simplesmente não é a mesma coisa.
Neste momento Cho está debruçada no bar, dando bola para um cara de vinte e poucos anos, aspirante a ator/barman a respeito do qual ela já declarou que, se fosse solteira, “traçaria” facilmente. Como se algum dia Cho fosse ser solteira. Uma vez, quando estávamos no segundo grau, ela disse:
— Eu não termino, eu troco.
Neste caso ela manteve a palavra; era sempre ela quem dispensava. Durante toda a nossa adolescência, faculdade e juventude, Cho esteve ligada a alguém. Em geral ela tem mais de um cara esperançoso por perto.
De repente me ocorre que eu poderia me ajeitar com o barman. Estou totalmente desimpedida — nem ao menos saí com alguém nos últimos dois meses. Mas não me parece uma coisa que alguém devesse fazer aos trinta. Viver uma aventura de uma noite é para meninas que estão na casa dos vinte. Não que naquela época eu soubesse disso. Meu caminho sempre foi o do bom comportamento, o de uma pessoa certinha, sem desvios. Tirava dez em tudo na escola, entrei para o segundo grau, me formei com grandes honras, fiz a prova para entrar no curso de Direito, fui direto para a faculdade e depois para um grande escritório de advocacia. Nada de sair pela Europa de mochila, nada de histórias malucas, nada de paixões doentias ou tórridas. Nada de segredos. Nada de intrigas. E agora parece que é tarde demais para qualquer coisa do tipo. Porque esse negócio apenas retardaria ainda mais os meus planos de encontrar um marido, de me estabelecer, ter filhos e um lar feliz com gramado, garagem e uma torradeira que torra quatro fatias de pão de uma só vez.
Sendo assim, fico apreensiva a respeito do futuro e, de certa forma, arrependida em relação ao passado. Digo a mim mesma que haverá tempo de ponderar a questão amanhã. Neste exato momento vou me divertir. É o tipo de coisa que uma pessoa disciplinada pode simplesmente decidir. E sou extremamente disciplinada — o tipo de criança que fazia o dever de casa na sexta-feira à tarde, logo depois da escola, o tipo de mulher (já que a partir de amanhã não restará mais nada de menina em mim) que passa fio dental todas as noites e que faz a cama todas as manhãs.
Cho volta com as bebidas, mas Harry recusa a dele, então ela insiste que eu fique com duas. Antes que eu perceba, a noite começa a adquirir aquela nebulosidade, entra naquele estágio em que você passa da condição de alegre para a de bêbada, perdendo a noção do tempo e da ordem exata das coisas. Pelo jeito, Cho atingiu esse estado até antes de mim, porque neste exato momento ela está dançando sobre o bar, rodopiando e serpenteando num minúsculo vestido modelo frente-única e com um salto de sete centímetros.
— Roubando a cena na sua festa — cochicha comigo Gina, minha melhor amiga do trabalho. — Ela não tem vergonha.
Eu rio.
— É, isso é a cara dela.
Cho solta uns gritinhos, bate palmas com os braços para o alto e me convoca com uma expressão sedutora que agradaria qualquer homem que já tenha alguma vez fantasiado com mulheres interagindo com mulheres.
— Mione, Mione, vem pra cá!
É claro que ela sabe que eu não vou me juntar a ela. Jamais dancei em cima de um bar. Não saberia o que fazer lá em cima, a não ser cair. Balanço a cabeça e rio, uma recusa educada. Ficamos todos aguardando a próxima jogada, que consiste em girar os quadris exatamente no ritmo da música, ir se inclinando aos poucos e depois voltar bruscamente para endireitar o corpo, o cabelo se esparramando para todos os lados. A flexibilidade da manobra me faz lembrar de sua imitação perfeita de Tawny Kitaen no clipe de “Here I Go Again”, do Whitesnake, da maneira como ela rodopiava e fazia spaccati no capô do BMW do pai dela, para deleite dos adolescentes da vizinhança. Olho para Harry, que nesses momentos nunca sabe se acha divertido ou se fica irritado. Dizer que o cara é paciente é pouco. Harry e eu temos isso em comum.
— Feliz aniversário, Mione! — grita Cho. — Vamos todos fazer um brinde à Mione!
E é o que todos fazem. Sem desgrudar os olhos dela.
Um minuto depois, Harry tira Cho do bar, suspendendo-a em seus ombros e devolvendo-a ao chão, ao meu lado, num movimento contínuo. Com certeza ele já fez isso outras vezes.
— Está bem — anuncia ele. — Vou levar nossa pequena organizadora de festas para casa.
Cho apanha sua bebida e bate o pé.
— Você não manda em mim, Harry! Não é, Mione?
Enquanto afirma sua independência, Cho tropeça e derrama todo o martíni no sapato de Harry. Ele faz uma cara feia.
— Você está bêbada, Cho. Ninguém está achando a menor graça, só você.
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou embora... Estou mesmo me sentindo meio mal — diz ela, parecendo enjoada.
— Você vai ficar bem?
— Vou ficar numa boa, não se preocupe — responde, agora fazendo o papel da menininha doente e corajosa.
Agradeço Cho pela festa, digo que foi uma completa surpresa — o que é uma mentira, porque sabia que ela tiraria vantagens do meu trigésimo aniversário para comprar um vestido novo, dar um festão e convidar tantos amigos dela quanto meus. Ainda assim, foi legal da parte dela ter organizado a festa e estou satisfeita de que tenha feito isso. Cho é o tipo de amiga que sempre faz as coisas parecerem especiais. Ela me dá um abraço apertado, diz que seria capaz de fazer qualquer coisa por mim e pergunta o que seria dela sem mim, sua madrinha número um, a irmã que ela nunca teve. Ela está bastante efusiva, como sempre fica quando bebe demais.
Harry a interrompe.
— Feliz aniversário, Mione. A gente se fala amanhã.
Ele me dá um beijo no rosto.
— Obrigada, Harry — digo. — Boa noite.
Fico observando enquanto ele a conduz para fora, segurando-a pelo cotovelo depois que ela quase tropeça no meio-fio. Oh, ter um guarda costas como este. Poder beber sem a menor preocupação, sabendo que haverá alguém para levar você em segurança para casa.
Algum tempo depois, Harry reaparece no bar.
— Cho perdeu a bolsa. Ela acha que deixou por aqui. É pequena, prateada — diz. — Vocês viram por aí?
— Ela perdeu a bolsa Chanel dela?
Balanço a cabeça e rio, porque perder as coisas é a cara da Cho. Em geral tomo conta das coisas dela, mas no meu aniversário não estou a serviço. Ainda assim, ajudo Harry a procurar a bolsa, encontrando-a, afinal, embaixo de um dos bancos do bar.
Quando ele já está de saída, Draco, um amigo de Harry, um de seus padrinhos de casamento, o convence a ficar.
— Ah, vai, cara. Fica mais um pouco aí.
Então Harry liga para Cho em casa e ela balbucia seu consentimento, diz a ele para se divertir sem ela. Embora provavelmente esteja convencida de que tal coisa não seja possível.
Aos poucos meus amigos vão indo embora, ainda me desejando parabéns. Harry e eu somos os últimos, até mesmo Draco já foi. Sentamos no bar puxando conversa com o ator/barman que tem um “Amy” tatuado e interesse zero numa advogada que está envelhecendo. Já passa das duas quando decidimos que está na hora de ir embora. A noite está mais para meados de verão do que para primavera e, de repente, o ar quente me enche de esperanças: Este vai ser o verão em que vou encontrar o homem da minha vida.
Harry chama um táxi para mim, mas, quando o carro para, ele diz:
— Que tal irmos para um outro bar? Quer tomar mais um drinque?
— Tudo bem — respondo. — Por que não?
Entramos no carro e ele diz ao motorista para ir dirigindo, que ele ainda tem de pensar em qual vai ser a próxima parada. Acabamos em Alphabet City, num bar que fica na esquina da Sétima Avenida com a Avenida B, apropriadamente chamado 7B. Não é um cenário muito pra cima — o 7B é meio sombrio e enfumaçado. De qualquer forma, gosto dali — não é pretensioso e tampouco uma espelunca se esforçando para ser bacana justamente por não ser pretensiosa.
Harry aponta na direção de uma mesa que fica entre dois bancos altos.
— Senta aí. Eu já venho.
Ele se vira.
— O que eu trago pra você?
Digo que vou querer o mesmo que ele, sento e fico esperando na mesa. Percebo que ele diz alguma coisa para uma garota que está no bar, vestida com uma calça verde-oliva cheia de bolsos grandes e uma camiseta bem justa onde se lê “Anjo Caído”. Ela sorri e balança a cabeça. “Omaha” está tocando ao fundo. É uma daquelas músicas que parecem melancólicas e alegres ao mesmo tempo.
Alguns momentos depois, Harry desliza pelo banco à minha frente e empurra uma cerveja na minha direção.
— Newcastle — diz ele. Então sorri, algumas rugas aparecendo em torno dos olhos. — Você gosta?
Faço que sim com a cabeça e sorrio.
De soslaio, vejo Anjo Caído girar em seu banco de bar e dar uma olhada em Harry, absorvendo seus traços bem desenhados, o cabelo charmosamente desalinhado e os lábios carnudos. Uma vez Cho reclamou que Harry provocava mais olhares e viradas de cabeça do que ela. Entretanto, ao contrário de sua parceira do sexo oposto, Harry parece não perceber a atenção. Anjo Caído agora olha em minha direção, provavelmente imaginando o que ele está fazendo com alguém tão comum. Espero que ela pense que somos um casal. Hoje à noite ninguém precisa saber que sou apenas coadjuvante na festa de casamento.
Harry e eu conversamos sobre nossos trabalhos, sobre a casa que vamos dividir em Hamptons a partir da próxima semana e sobre muitas outras coisas. Mas o nome de Cho não é mencionado, nem o casamento deles em setembro.
Depois que terminamos nossa cerveja vamos até a jukebox, enchemos a máquina com dólares, em busca de músicas boas. Aperto duas vezes o código para “Thunder Road” porque essa é minha música favorita. Digo isso a ele.
— É, Bruce Springsteen também está no topo da minha lista. Você já viu algum show dele?
— Já — respondo. — Duas vezes.
Quase digo a ele que fui com a Cho nos tempos da escola, que a arrastei comigo embora ela preferisse bandas como Poison e Bon Jovi. Mas não menciono isso. Porque do contrário ele vai se lembrar de voltar para casa para encontrá-la e eu não quero ficar sozinha nos últimos momentos dos meus vinte anos. Obviamente, preferia estar com um namorado, mas Harry é melhor do que nada.
No 7B os garçons estão atendendo aos últimos pedidos da noite. Pegamos mais algumas cervejas e voltamos para a mesa. Algum tempo depois entramos novamente num táxi, indo em direção ao norte pela Primeira Avenida.
— Duas paradas — avisa Harry ao motorista, porque moramos em lados opostos do Central Park.
Harry está segurando a bolsa Chanel de Cho, que fica pequena e deslocada em sua mão enorme. Olho para o mostrador prateado do Rolex dele, um presente de Cho. Falta pouco para as quatro horas.
Ficamos em silêncio por uns dez ou 15 quarteirões, ambos olhando para fora de nossas respectivas janelas, até que o carro passa por um buraco e me vejo lançada para o meio do banco traseiro, minha perna roçando a dele. Então, de repente, do nada, Harry está me beijando. Ou talvez eu esteja beijando Harry. Não sei como, estamos nos beijando. Minha cabeça fica leve enquanto ouço o suave som dos nossos lábios se encontrando repetidas vezes. A certa altura, Harry, entre um beijo e outro, diz ao motorista que no fim das contas vai ser apenas uma parada.
Chegamos na esquina da 73 com a Terceira Avenida, perto do meu apartamento. Harry entrega uma nota de vinte para o motorista e não espera pelo troco. Saltamos do táxi, nos beijamos mais na calçada e então na frente de José, meu porteiro. Enquanto subimos, nos beijamos o tempo todo. Estou imprensada contra a parede do elevador, minhas mãos em sua nuca. Fico surpresa ao sentir a maciez do cabelo dele.
Luto com as chaves, girando para o lado errado da fechadura, enquanto Harry mantém o braço em torno da minha cintura, seus lábios no meu pescoço e na lateral do meu rosto. Finalmente a porta se abre, e estamos nos beijando no meio do meu apartamento de apenas um cômodo. Estamos de pé, tendo apenas um ao outro como apoio. Vamos cambaleando até minha cama, arrumada ao estilo de uma cama de hospital.
— Você está bêbada? — A voz dele é um sussurro no escuro.
—Não — respondo.
Porque sempre se diz que não se está bêbado. E embora eu esteja tenho um momento de lucidez quando considero exatamente o que estava faltando nos meus vinte anos e o que desejo encontrar a partir dos meus trinta. Fico impressionada ao ver que, de certa forma, posso ter ambas as coisas nesta importante noite de aniversario. Harry pode ser meu segredo, minha ultima chance para um capitulo oculto nos meus vinte anos, e também uma espécie de prelúdio — uma promessa de que alguém como ele possa aparecer. Cho surge no meu pensamento, mas esta sendo empurrada lá para trás, encoberta por uma força mais forte do que nossa amizade e do que a minha própria consciência. Harry se movimenta sobre mim. Meus olhos estão fechados, então abertos, depois fechados novamente.
E então, não sei como, estou na cama com o noivo da minha melhor amiga.
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