Capítulo 21



Capítulo 21

Um confuso murmúrio no ar. Potter tossiu fracamente, com uma careta de dor.

Moveu a cabeça de um lado para outro do travesseiro. O ruído se intensificou. Era como uma soma de ruídos. Levou lentamente as mãos ao peito. Por que não lhe apagavam aquele fogo que lhe ardia em cima? Alguém continuava lhe colocando carvões acesos na carne. Outro gemido, de agonia esta vez. Em seguida abriu os olhos.

Contemplou, sem piscar, o teto de gesso. A dor crescia e diminuía intermitentemente.

Potter tornou a contrair o rosto, resistindo à dor. Se se relaxasse, estava perdido. Durante uns minutos lutou contra a dor. Logo, como uma máquina que começa a funcionar, ofegando, detendo-se, movendo-se outra vez, sentiu que começava a despertar. Onde estou?, Perguntou-se. A dor era espantosa. Olhou no peito e viu uma ampla atadura, com uma mancha vermelha e úmida. Fechou os olhos. Estou ferido, disse. Ferido gravemente. Sentia a boca e a garganta ressecadas. Onde estou, onde estou...

Então lhe veio à memória o ataque à casa e os homens de negro. E soube onde se
encontrava, antes de ver a janela com barras de ferro que havia de um lado. Olhou pela abertura um bom momento. O confuso ruído vinha de fora.

Deixou balançar a cabeça sobre o travesseiro e continuou olhando o teto Era difícil
compreender que não se tratava de um pesadelo. Três anos de solidão na casa, para terminar assim.

Mas aí estava essa terrível dor no peito, e a mancha de sangue empapando a atadura.

Fechou os olhos. vou morrer, pensou. E entretanto, não parecia que chegaria o momento.

Apesar de ter vivido com a morte, de ter passado tantas vezes sobre ela, como por uma pirueta, não parecia real. A morte própria escapava de sua capacidade de compreensão.

Estava ainda deitado de costas quando se abriu uma porta.
Não podia virar-se. A dor era insuportável. Ouviu passos que se aproximavam da cama e detinham-se junto a ela. Levantou os olhos, mas não viu ninguém. Meu executor, pensou, a justiça desta nova sociedade. Fechou os olhos e esperou.

Ouviu as pegadas em outra vez. Potter tratou de tragar saliva, mas tinha a
garganta muito seca. Passou a língua pelos lábios para umedecer-lhes

—Tem sede?

Abriu os olhos e olhou, e o coração acelerou seus batimentos. A dor aumentou. Gemeu e virou a cabeça sobre o travesseiro, mordendo os lábios e apertando a manta com força.

A mulher estava a seu lado, ajoelhada, lhe secando a testa, umedecendo os lábios com um trapo frio e úmido. A dor se abrandou, e Potter viu ao fim, o rosto da mulher. Ficou olhando-a, com olhos entrecortados pela dor.

—Vá —disse finalmente.

A jovem não respondeu. Levantou-se do chão e se sentou na borda da cama. Secou-lhe outra vez a testa. Em seguida estendeu um braço e Potter ouviu um ruído de água.

A jovem sustentou-lhe a cabeça, ajudando-o a beber. A dor aumentava e agora
era cortante e fria. Provavelmente isto é o que sentiam eles, pensou, quando as lanças lhes atravessavam o coração. Esta agonia cortante e mordente. A vida que escapa com o sangue.

Deixou cair a cabeça no travesseiro.

—Obrigado —murmurou.

A jovem o olhou com uma curiosa expressão mesclada de simpatia e desprendimento desta vez. Penteava-se agora para trás, com o cabelo preso em rabo-de-cavalo. Parecia muito mais segura de si mesmo.

—Não acreditou em mim, não é verdade? —disse.

A secura da garganta lhe fez tossir. Abriu a boca e aspirou uma baforada de ar úmido.
—Sim..., sim, acreditei —disse.

—Por que não se foi então?

Potter tratou de falar, mas lhe confundiram as palavras. Voltou a tomar fôlego.

—Não... não pude —murmurou ao fim—. Quis ir... várias vezes. Uma vez... até recolhi minhas coisas e... deixei a casa. Mas voltei... Não podia... não podia ir... Estava muito habituado... à casa... Era realmente isso, um... hábito. Como o hábito de viver. Estava... acostumado.

Os olhos da mulher olharam o rosto de Potter. Secou-lhe outra vez a testa, apertando os lábios.

—Agora é muito tarde, sabe?

—Sei —disse Potter.

Tratou de sorrir, e deixou escapar uma careta.

—Por que resistiu então? —Disse Ruth—. Tinham a ordem de lhe trazer aqui sem
machucá-lo. Se não tivesse enfrentado eles, não lhe teriam acertado.
Um espasmo sacudiu Potter.

—Isso não mudaria nada —disse.

Fechou os olhos e apertou os dentes, lutando com a dor. Quando os abriu outra vez, ela estava ali ainda. A expressão de seu rosto era a mesma.
Potter sorriu fracamente.

—Você..., sua sociedade... é realmente algo fantástico —ofegou—. Quem eram
esses assassinos que destroçaram... minha casa? O... conselho de justiça?

O olhar da mulher era frio e sereno. Ela mudou , pensou Potter de repente.

—Todas as sociedades novas são primitivas —replicou a jovem—. Você sabe.
São... como grupos terroristas que transformam a sociedade à base da violência. É
inevitável. Você mesmo utilizou a violência, Harry. Matou. Muitas vezes.

—Só para... sobreviver.
—Nós temos as mesmas razões —disse Ruth tranqüilamente—. Para sobreviver. Não podemos permitir que os mortos persigam os vivos. Devem ser destruídos. Assim como quem mata os mortos e os vivos.

Potter respirou fundo, e a dor mordeu-lhe dos lados. Um calafrio lhe percorreu o
corpo. Isto terminará logo, pensou. Não posso resistir muito mais. Não, não temia à morte. Não entendia por que, mas não o assustava.

A dor diminuiu. Potter olhou o rosto sereno da jovem.

—De acordo —disse—. Mas... viu a expressão dos seus rostos quando matam? —Um movimento compulsivo—. Alegria —murmurou—. Alegria pura.

O sorriso de Ruth parecia irônico. Ela mudou realmente, pensou Potter.

—Viu alguma vez sua cara? —perguntou a jovem lhe refrescando a testa. Eu vi,
lembra? E nem sequer matava até então. Simplesmente me perseguia.

Potter fechou os olhos. Por que a escutou?, pensou. É uma nova convertida, uma nova militante desta religião da violência.

—Possivelmente viu alegria em seus rostos —seguiu ela—. Não é de se estranhar. São muito jovens.

E são assassinos pagos, assassinos legais. Se os respeita porque assassinam,
os admira. O que esperava deles? São homens. E os homens chegam a gozar matando. É uma velha história, Harry. Você a conhece bem.

Potter a olhou. O sorriso da Ruth era o sorriso duro e tirante da mulher que quer
continuar na abnegação e no sacrifício.

—Harry Potter —disse—, o último representante da velha raça. O rosto de Potter
mudou.

—O último? —murmurou, sentindo de repente sobre ele o peso de uma profunda
solidão.

—Assim parece ao menos —disse ela indiferente—. Realmente é o único.
Quando desaparecer, não ficará ninguém como você em nosso mundo.

Potter olhou pela janela.

—Há... gente... fora —disse.

A mulher moveu a cabeça afirmativamente.

—Minha morte?

—Sua execução.

Potter levantou o olhar para ela sentindo que lhe punham rígidos os músculos.

—Agradeceria se apressassem-se —disse, sem medo, com voz desafiante.

Olharam-se nos olhos. Logo algo pareceu ceder nela. Estava muito pálida.

—Sabia —disse—. Sabia que não teria medo. Impulsivamente acariciou a mão de
Potter.

—Quando ouvi que foram lhe buscar, pensei em te prevenir. Mas me ocorreu que
se ainda estava ali, nada lhe faria mudar de idéia. Em seguida pensei em lhe ajudar a escapar. Mas me disseram que estava ferido gravemente, e uma fuga seria
impossível. —Um sorriso lhe cruzou o rosto—. Alegra-me que não tenha medo. É
muito valente, Harry —acrescentou com voz mais suave.
Calaram, e Potter sentiu a pressão de sua mão.

—Como... você pôde vir? —perguntou.

—Sou oficial de carreira na nova sociedade —disse a jovem. Potter moveu a mão sob seus dedos.

—Não deixe... não deixe... —Tossiu, e apareceu um fio de sangue—. Não deixe
que sejam muito brutais... muito cruéis.

—O que posso... —começou Ruth, e calou. Sorriu em seguida—. Cuidarei para que
assim seja —disse.

Potter não pôde responder. A dor aumentava. Retorcia-se e convulsionava como um animal dentro de seu corpo.

Ruth se inclinou para ele.

—Harry —disse—. Escute-me. Querem lhe executar. Embora esteja ferido. Têm
que fazê-lo. O povo esteve esperando lá fora toda à noite. Eles têm medo de você, Harry, odeiam-lhe. E querem que pague com sua vida.

Desabotoou a blusa e procurou no corpete. Tirou ao fim um pacotinho e colocou-o na mão direita de Potter.

—É o melhor que posso fazer por você, Harry —sussurrou-Para que seja mais breve. Adverti-lhe. Disse-lhe que fugisse —a voz lhe tremeu ligeiramente—. Não pode lutar contra todos, Harry.

—Já sei…

As palavras de Potter se converteram em sons guturais. Ruth se inclinou e roçou com seus lábios frescos os de Potter. Logo a seguir, se levantou e fechou a blusa.

—Tome logo —disse olhando a mão direita da Potter.

Potter ouviu seus passos afastando-se para a porta e em seguida o ruído de chaves.
Fechou os olhos, e umas lágrimas ardentes correram pela face. Adeus, Ruth.
Adeus ao mundo.

Logo, de repente, apoiando-se em um braço, sentou-se na cama. A dor era
espantosa, mas Potter não se acovardou. Com as mandíbulas apertadas, tirou as pernas da cama e se colocou de pé. Sentindo apenas o movimento de suas
pernas, e cambaleando-se, cruzou o calabouço.

Caiu contra a janela, e olhou à rua. Estava cheia de gente. Agrupavam-se à luz cinzenta da manhã. O som de suas vozes chegava a ele como o zumbido de abelhas. Potter os olhou, agarrado com a mão esquerda nas barras de ferro e com os olhos febris.

Então alguém o viu.

Durante um momento as vozes se elevaram um pouco. Ouviram-se alguns gritos.
Mas logo o silêncio se estendeu sobre suas cabeças como uma pesada capa. Todos
voltaram seus rostos pálidos para Potter.

Potter os observou serenamente. E de repente raciocinou: Eu sou o anormal. A normalidade é um conceito majoritário. Norma de muitos, não de um sozinho.

E compreendeu a expressão que refletiam aqueles rostos: angústia, medo, horror.
Tinha-lhe medo. Eles lhe viam como um monstro terrível e desconhecido, de uma
maldade mais odiosa que a da praga. Um espectro invisível, que como prova de sua existência semeava o chão com os cadáveres sangrados, de seus seres queridos.

E Potter os compreendeu, e deixou de odiá-los. A mão direita apertou o pacote de pílulas.

Pelo menos o fim não seria violento, pelo menos não haveria uma carnificina...

Potter observou os novos habitantes da terra. Não era um deles. Semelhante aos
vampiros, era um anátema e um terror obscuro que deviam eliminar e destruir. E
de repente nasceu a nova idéia, divertindo-o, apesar da dor.
Tossiu pigarreando. Virou-se e se apoiou na parede enquanto tomava as pílulas.
O círculo se fechava. De sua morte nascia um novo terror, uma nova superstição penetrava a inexpugnável fortaleza da eternidade.

Eu sou lenda.

FIM

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