Capítulo 14
Capítulo 14
Não bebia exageradamente. Ao contrário. Em realidade bebia menos. Potter
estava convencido de que os últimos copos o tinham levado “para cima”, tinham-lhe afundado em uma desesperada frustração. Agora só podia subir.
Depois das últimas semanas, dava-se conta de que a esperança não era a resposta. Nunca havia se sentido assim. Naquele mundo de horror real não havia escapatória nos sonhos. Podia adaptar-se ao horror. Mas a monotonia era o pior obstáculo, compreendia agora. E essa descoberta o tranqüilizava; era como pôr todas as cartas sobre sua mesa mental e, as repassando, ordenar definitivamente o jogo.
A morte do cão não lhe havia alcançado o desespero que temia. De certo modo sentiu morrer as esperanças e as excitações vãs. Aceitando assim seu cárcere, sem tentar impossíveis fugas, nem golpear inutilmente os muros.
E assim, conformado, voltou para trabalho.
Aconteceu quase um ano antes, ao cabo de uns dias de ter levado Virginia a sua
segunda e última morada.
Débil, com o pensamento vazio, com a impressão de uma perda irreparável,
perambulava pelas ruas, pouco depois do meio-dia, com as mãos soltas dos lados,
arrastando os pés. Seu rosto não expressava nada.
Tinha vagado pelas ruas durante várias horas, sem parar por onde passava. Sabia que não podia voltar para os cômodos vazios da casa, que não podia olhar as coisas que ambos haviam tocado, possuído e desfrutado juntos. Não podia olhar a cama vazia de Kathy, as roupas penduradas ainda nos cabides, as jóias e os perfumes da cômoda.
E caminhava assim, sem saber onde estava, quando viu aqueles grupos de
gente e ao homem que o pegou pela manga lhe jogando na cara um fétido bafo de alho.
—Vem, irmão, vem —disse o homem com voz rouca. Potter observou ao homem: a garganta rosada, as bochechas com manchas vermelhas, os olhos febris, os trajes escuros, sujos e enrugados—. Venha e salve-se, irmão, salve-se.
Potter olhou-o fixamente. Não entendia nada. O homem puxava-lhe pela manga, com dedos esqueléticos.
—Nunca é muito tarde para arrepender-se —disse o homem—. A salvação chega a
todos os que... O resto da frase se afogou no murmúrio do lugar de onde se aproximavam. Era como o som de um oceano que queria sair. Potter tratou de se desvencilhar do homem.
—Não quero... O homem não escutava, arrastando-lhe.
—Mas eu não...
A igreja já o havia engolido, afundando-o em muitos gritos, esperneio e aplausos.
Potter retrocedeu por instinto e sentiu que o coração lhe pulsava rapidamente.
Estava rodeado por centenas de pessoas, que se fechavam como ondas sobre ele,
e uivavam, e gritavam palavras ininteligíveis.
Por fim cessaram-se os gritos e ouviu-se uma voz que saía da penumbra, como um
chicote do destino, chiando nos alto-falantes.
—Querem retroceder diante da sagrada cruz de Deus? Querem olhar no espelho e não ver a imagem deste rosto que Deus lhes deu? Querem sair das tumbas se arrastando como monstros saídos do inferno?
Falava em um tom de voz imperativo, vibrante, premente.
—Querem se transformar em bestas negras e ímpias? Querem danificar o céu da noite com demoníacas asas de morcego? Querem, digo, ser uma dessas criaturas eternamente condenadas, monstros noturnos abandonados pela mão de Deus?
—Não! —explodiu a multidão, sacudida pelo medo—. Não!, nos salve!
Potter deu um passo atrás, chocando-se com adeptos que elevavam as mãos e
clamavam piedade aos céus.
—Pois bem, escutem! Ouçam a palavra de Deus! O mal açoitará todas as nações, o
castigo do Senhor alcançará todo mundo! Na verdade lhes digo que se deixar de
serem meninos, inocentes e puros aos olhos de Deus, se não cantarmos a glória
do Senhor Todo-poderoso e de seu único filho, Jesus Cristo Nosso Senhor, se não
nos fincarmos de joelhos e pedimos perdão por nossas ofensas, estaremos
condenados! Ouçam, ouçam! Estamos condenados, condenados, condenados!
—Amém!
—Nos salve!
Gente se retorcia e gemia, golpeando o peito, e gritavam aterrorizados, proferindo
espantadas aleluias.
Potter era transportado de um lado a outro, sacudido por uma tormenta de súplicas e abandonado ao fogo cruzado de fanáticas devoções.
—Deus castigou nossos múltiplos pecados! Deus deixou cair sobre nós o peso de sua ira! Deus nos enviou o dilúvio em forma de corrente de criaturas infernais! Tem aberto as tumbas, tem descoberto as criptas; levantou os mortos de seus negros sepulcros, e os lançou contra nós! A morte e o inferno nos enviam seus cadáveres. Esta é a palavra de Deus! Oh, Deus, castigou-nos. Oh Deus, desmascarastes nossas faltas, flagelaste-nos com sua ira todo-poderosa!
Os aplausos soaram como uma descarga de fuzilaria, os corpos foram de um lado a
outro como que empurrados pelo vento. Eram os gemidos dos que logo morreriam, dos que lutavam ainda pela vida. Potter abriu passagem entre os assistentes, as mãos estendidas para frente como mãos de cego que medem o caminho.
Conseguiu sair, fraco e tremente. Dentro da igreja, gente continuava gritando. A noite já tinha caído.
Sentado na sala, tomando um uísque suave, com um livro de psicologia sobre
os joelhos, Potter recordou-se daquela tarde.
«A condição conhecida como cegueira histérica —leu - pode ser parcial ou total,
e incluir uma ou várias pessoas».
Isto era um novo descobrimento. Até o momento, havia tentado atribuir aos
germes todas as características do vampiro. Se algumas dessas características não
coincidiam com os germes, Potter as atribuía à superstição. Alguma vez tinha
procurado explicações psicológicas, mas sem lhes dar muita importância.
Não havia motivos, pensava agora, para negar que em alguns fenômenos se
dessem causas físicas e causas psicológicas. Parecia uma dessas evidências que
nem um cego deixaria de lado. Bom, sempre resisti a evidências, refletiu.
Se prestasse atenção à reação que tinham experimentado algumas vítimas, tudo era
fácil de entender. Nos últimos dias da praga alguns jornais tinham reportado a epidemia dos vampiros a todos os lugares do país. Potter mesmo recordava a
interminável sucessão de artigos pseudocientíficos: Tudo era parte de uma
desesperada campanha para vender mais jornais.
Tinha sido algo realmente grotesco. Um frenético desejo de vender enquanto o mundo agonizava.
A imprensa escrita tinha mostrado sua verdadeira face naqueles dias. E a isto se
somava uma busca desesperada para as respostas que muita gente tratava de achar
nos cultos primitivos. Com pouco êxito. Não só morriam tão rapidamente como os
outros, mas sim, faziam-no aterrorizados.
Logo, aquele espantoso horror que presumia-se a uma ressurreição. Recuperar a
consciência clandestinamente, em uma terra úmida e pesada, e perceber que a
morte não significava o descanso. Desenterrar-se com mãos, como garras, através da terra, impulsionados por uma estranha e irresistível força.
Feitos como estes podiam destruir o que ficasse da mente. E assim muitas coisas
começavam a ter explicação. Por exemplo, a cruz.
O temor de serem repelidos por um símbolo adorado ressuscitava, estendendo-se
assim o medo ao dito símbolo. Os vampiros arrastados por antigos temores se
repugnavam a si mesmos, cobrindo com um denso véu suas mentes. Convertiam-se, pois, em escravos solitários da noite, almas perdidas e curvadas, que procuravam descanso na terra nativa para sentir-se unidos a algo, a algo...
A água? Só era a aceitação de uma lenda. Segundo a história de Tam O'Shanter, as
bruxas fugiam da água. E, por conseguinte... todas aquelas criaturas que se
relacionavam de algum modo, ficavam confundidas em lendas e superstições.
E como explicar os vampiros vivos? Isso também era simples.
Em vida tinham sido os desenquadrados, os loucos. Como o vampirismo não ia
atraí-los? Potter se atrevia a dizer que, todos quão vivos vinham a sua casa, de noite, estavam loucos. Acreditavam-se verdadeiros vampiros, mas só eram dementes. E por isso não lhe tinha queimado a casa. Não podiam pensar.
Recordou do homem que uma noite tinha subido em um poste, em frente a casa. E
Enquanto Potter espiava pelo buraco, ele havia se jogado no vazio, movendo os braços freneticamente. Potter não lhe entendeu até então, mas agora a resposta era óbvia:
O homem se identificava como um morcego.
Potter observou o copo quase vazio, e ficou com os lábios fixos em um sorriso.
Assim, pensou, lentamente, pode ser que ao fim tenha descoberto algo. Tenho
descoberto que não são uma espécie invencível. Muito ao contrário. São umas espécies extremamente débeis e vulneráveis.
Deixou o copo sobre a mesa.
Não preciso disto, pensou. Não necessito já excitar minha imaginação. Não preciso
beber para esquecer, ou me esconder em outro mundo. Não há nada que esquecer. Não agora.
Era a primeira vez, desde a morte do cão, que sorria quase satisfeito. Faltava muito a aprender, mas já não tanto. Curiosamente, a vida agora havia voltado suportável.
Vestirei os hábitos do eremita sem prantos, pensou. No toca-disco soava a música, serena e tranqüila.
Lá fora, os vampiros esperavam.
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