CHUVA DE FACAS



Block Cell


 


Pouco importava se a tormenta invadisse o azul celeste de um dia pacífico, pois naquele lugar as mudanças climáticas nunca eram notadas. Imundos corredores largos rodeavam grades onde mãos enlouquecidas descansavam. O deslize lento, as vestes esfarrapadas num balanço atraente e o constante ruído da matraca aumentada em muitas vezes. Chegavam perto, desejavam seus lábios, mas não sugavam suas almas. E a névoa... Escondia a figura esquelética dos outros infelizes que dividiam aquela prisão.


Arrepios constantes, gosto amargo na garganta e repugno ao sentir o cheiro podre vigiar o corredor. A maresia enojava o paladar e o sal do alto mar secava a boca. Não havia um que não sentisse os sintomas. Era impossível controlar o mal estar e a claustrofobia depois de notar aquele nevoeiro. Cada tentativa de conforto era cruelmente aspirada.


A cada novo grito que entrava por aquelas portas metálicas, um sorriso maldoso repousava nos antigos habitantes daquela fortaleza que gozavam das ‘boas-vindas’. Mais uma daquelas criaturas deslizava ali perto e o riso desaparecia por completo.


Azkaban sempre fora parecida a um poço melancólico. As paredes eram úmidas e ouvia-se o eco dos angustiados. Poucos patamares dividindo as vítimas dos vigilantes que os rondavam lentos; o som estalado incomodando os corpos inertes jogados nas celas.


 


***


 


No fim do primeiro corredor um homem debruçava-se nas grades de ferro. De negros olhos fundos, alto e magro, enrolava distraidamente a barbicha e um sorriso desdenhoso acalentava sua elegância de bom servo. Entretanto, a própria infelicidade estirada ao seu lado espantou seus ânimos. O sorriso de Karkarroff não desapareceu ao ver uma fenda de luz no outro extremo daquele mesmo corredor.


<i>“O jovem escorou-se na carteira entediado com as explicações do professor de Poções. Não se interessava por misturar meros ingredientes nem cheirar a chumbo, mas havia um fascínio especial na aula seguinte: Artes das Trevas.


Durmstrang era seu refúgio do resto do mundo e até do futuro. Estava no último ano letivo e não queria largar aquele lugar como se apenas fizesse parte do seu passado. O jovem Karkarroff sentia-se ligado secretamente com aquela edificação, com os campos de um tom âmbar ao fim de tarde e o gelo que torturava as noites do norte. Já sentia Durmstrang no sangue; era um conviva íntimo, um mistério constante.”</i>


Fora muito bem para as mãos de Voldemort. Diretamente para o núcleo que almejava e o acolheu não como simples servo, mas como informante de confiança. Pra quê sujar os dedos se tinha dupla de olhos e ouvidos apurados? Seu mestre seria a fonte de poder que transbordava em idéias de puritanismo na raça bruxa: puro-sangue, puro-sangue, puro-sangue... E a outra parte desprezível, que não honrasse o líquido escarlate e nobre de séculos bordado em árvores genealógicas, merecia eliminação. Brutal.


Agora via-se aprisionado, solitário e forçado a remoer seus princípios, mas ainda convicto e preconceituoso como sempre. Nem mesmo aqueles seres repugnantes mereciam sua mente sóbria e tão imaculada. Era um Karkarroff de alta lábia e orgulho. Era um legítimo puro-sangue.


<i> “Bruxos uniformizados, de varinhas a postos, arrastavam um homem que lutava contra os feitiços tentando inutilmente fugir dali. Um auror, que tinha um olho azul elétrico implantado na cara, fazia questão de escolher o calabouço ao qual acorrentar o novo prisioneiro.


- Lugar de destaque, Karkaroff – rosnou Moody apontando para a cela ao fundo – Todos lhe verão assim que entrarem.


O olhar furioso daquele Comensal da Morte tinha poder de perfurar barreiras quase intransponíveis, mas o auror não se intimidou com o gesto. Assim que Igor Karkaroff foi jogado nas pedras frias, seu olhar baixou a um nível quase insignificante perto daquele que o capturara.


- Eu disse que caçaria todos vocês nem que fosse a última coisa que eu fizesse.- disse Moody. O prisioneiro riu - Gostam de rir das nossas ambições, não é? Você não foi o primeiro nem o último.


Moody estava certo do que dizia, pois logo depois um grito estridente os assustou enquanto encaravam-se transbordando em cólera. Era a psicose de Azkaban que despertara. Mais uma vez.”</i>


O silêncio dominante ressaltou o ambiente das masmorras. Às vezes, na mais absoluta lucidez, ouvia-se correntes e gemidos aborrecidos. Como se as almas que apodreceram ali um dia surgissem do chão de ardósia e flutuassem numa procura infindável por seus corpos. Este não era o caso; o pior era o próprio silêncio. Ele sim que pregava o medo, pois anunciava que a qualquer momento um ruído poderia trazer as mais fantásticas ficções. Ele moveu os olhos rápidos verificando a falta de dementadores naquela ala. Ainda pior era quando recordava de um passado que nem Wizengamot saberia julgar.


<i>“A aurora começava a despontar no fim da longa rua de casas altas quando uma mulher lívida correu pela calçada, amedrontada e olhando para os lados, até o meio do quarteirão. Tinha as roupas rasgadas e aspecto de quem mal se mantêm em pé, contudo, ainda escondia nos traços finos e olhos oblíquos o requinte proveniente de uma família nobre. Conservava uma beleza adolescente que fora encarcerada por meses sem luz do sol. Aquela mulher era Evie Roockwood, a bela irmã mais nova de Augustus.


Ali se erguia uma construção antiga tombada como patrimônio histórico de Brighton, onde funcionava um orfanato. A jovem elevou os olhos para aquela denominação e sentiu o nó na garganta que a sufocara durante a noite inteira. Evie olhou ternamente para a criança que carregava nos braços. Entre os cobertores puídos a pequena garota observava tudo ao redor com familiares olhos verdes.


O dedo trêmulo da mulher tocou a campainha molhada pela geada noturna e pousou a criança sobre o capacho na porta. Ouviu o passo lerdo descendo a escada e apressou-se na despedida que não mais contou do que com um sucinto beijo na testa da menina. Evie não parecia tentada a chorar as lágrimas merecidas daquela separação; estava terrificada demais atestando a própria morte que fora prometida. Garantida pela pessoa que nunca falhara em suas frases e nunca deixara pendências que a incriminariam. Estava certo o seu destino e ele seria escrito em letras versais por sua impiedosa cunhada, Christine, esposa de Augustus e quem jamais deveria ter se infiltrado naquela família.


Correu para a outra esquina e até ouviu o rangido da porta seguido pelo raro choro da criança. O cabelo negro lhe cobriu a face ao parar sem fôlego e olhar para trás. Na calçada, uma mulher indefinível àquela distância mirava-a com um bolo de cobertores aninhado nos braços. Viu na criança, pela última vez, aqueles olhos... verdes como os do pai.


Karkarrof escorou-se na parede fria atrás de si deixando apenas seus olhos secos depreciando aquela cena de longe. Prometera à Christine guardar o segredo que Evie Roockwood ingenuamente crera estar arquivado para o fim dos dias. Aliás, seus olhos velozes captavam cada gesto e centímetro do destino daquela criança.


Num último sopro de gratidão, Evie parou a encarar sua queda vertiginosa para um infinito que a faria sofrer em proporções inimagináveis. Ela embrenhou-se numa rua lateral e aparatou para seu pior erro.


Igor soltou uma risada pelo nariz, impedido de gargalhar lembrando das palavras de Christine prevendo os passos da cunhada. Já dissera a mulher ao convencê-lo estar ali apenas para contar as melhores partes daquela tragédia:


- Ela andará exatamente para onde pretendo estar. A primeira coisa que ela vai querer, depois de tentar enterrar o futuro dessa criança, será vê-lo mais uma vez no lugar onde tudo sempre aconteceu. Não há erro, simplesmente xeque-mate, estarei esperando meus dois convidados de honra.


 Doía as entranhas acreditar que a jovem Evie ainda pudesse ser tão inocente. A esbelta rapariga que detinha os olhares das visitas que tanto desejavam um whisky na casa de seu irmão, Augustus Roockwood, só para comentar da lástima que era sua solteirisse, não merecia a cobra que se infiltrara na família. Pobre garota, agora bebia o veneno de Christine a sorvos largos marchando para o lugar onde Karkarroff sabia que ela pretendia ir. Ele e Christine.


... Aquela casa de tantos pecados, onde um sorriso assassino lhe daria as boas-vindas.”


         Christine Rookwood, poucos dias antes da prisão de Karkarroff em Azkaban, lhe pedira tal favor. Respirou fundo ao relembrá-la sentindo seu aroma suave e olhar tênue que prendiam qualquer homem a um pedido seu. Nessa hora invejou o bastardo que a fizera se apaixonar... Se ao menos soubesse quem era o canalha... Nem sangue nem briga, só para trucidar a maldita curiosidade que o perseguia sem explicar direito o motivo de denunciar aquela inútil fuga. Quem seria o maldito que hipnotizara Evie e Christine? Quem seria o responsável pela fúria e ódio mútuo daquelas duas mulheres?!


“Era mais uma reunião entre os ‘amigos de sangue’ de uma noite estranha, com a tormenta a rugir e gemidos longos, talvez delirantes. Olhou-se no espelho dispensando qualquer arrogância: um olhar seco revelado pelas pálpebras. Já sem paciência em ver-se fundido às paredes, saiu sem cerimônias para a varanda.


         Ia aos últimos passos até a porta quando seus olhos voltaram-se para a rua. Duas pessoas ocupavam o soalho respingado numa cena que já não era novidade. Andou lentamente, deslizando entre os móveis escuros, até escorar as mãos frias no vidro. Christine tinha os lábios curvados num sorriso medonho. Ela não nascera para sorrir. Segurava com força mais que maternal as mãos da cunhada que tentava desvencilhar-se. Detestavam-se mutuamente sem segredos.


         - Talvez fosse melhor viajar. É uma ótima idéia! – ouviu a voz de Christine – Fique longe por uns tempos, Evie.


         - Eu não quero sair da cidade. Pensa que não se delata quando esses olhos ligeiros param por mais de alguns segundos no mesmo homem? – Evie retrucou.


         - Não seja maldosa, querida. Eu nunca faria o que sua mente suja supõe que eu teria coragem.


         - Ótimo, então fique longe...


         - De quem? – Christine a pegou em seu deslize – Dele?


         - De mim!


         Evie deu um puxão no braço e conseguiu soltar-se, mas foi por meros segundos, pois a mulher empunhou-a bruscamente junto a si, como um abraço a força, segurando a garganta da jovem. Permaneceram assim por tempo bastante para a face de Evie, antes corajosa, evaporar como álcool. As palavras que Christine sussurrou aquela noite, Igor nunca soube quais foram, mas calou boas respostas que seriam otimamente empregadas. Quem seria então que supostamente fascinara as donzelas? Simplesmente escondia com unhas afiadas seu ciúme de Christine.


         Detestava esses pensamentos da esposa de Roockwood, mas ela irradiava uma elegância admirável que era impossível não percebê-la como a mulher mais desejada. Talvez, na verdade, não fosse realmente ciúmes de um desconhecido. Talvez fosse admiração fanática. Entretanto, o que fizera seu pulso acelerar não fora nenhuma admiração.


Desprezo deste alguém? – sua pergunta soara como poesia. Era o que o matava agora: a curiosidade de quem seria melhor que ele. Mas ciúmes, certamente não era.”</i>


Instintivamente Karkaroff enrolou a barbicha deslizando o olhar fastidioso pelo véu cinza que desabava a sua volta. Horas a fio a pensar em todos os atos que passaram sem anotações mentais. Em Azkaban, tudo era picado, em migalhas, para se compreender a vida inteira. Ou pelo menos, até ali.


         Agora esperava ansioso por um momento que logo chegaria: sua liberdade. Soubera pela lua, cheia e no mesmo lugar, que fazia exatamente um mês que saíra dos olhos dos juízes do Ministério com o peso da traição nas costas. Delatara seus comparsas para ver-se livre daquele tormento. Ver-se livre das correntes de Azkaban.

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