Julie ao telefone.
Quando tudo isso começou, não era minha intenção. Não era nem um tipo de plano meu. Nada em que eu tivesse pensado o bastante. Eu não arquitetei tudo isso. Eu nem sabia o que estava fazendo quando aceite ir aquela festa, então não me culpe.
Não ouse!
Eu simplesmente aceitei.
Quem nunca fez algo por impulso que atire a primeira pedra.
Ninguém?
Ótimo!
Você não deve estar entendendo do que estou falando. Vou explicar melhor...
Eu tinha onze anos quando ganhei a coisa mais importante de toda minha vida: uma bolsa de estudos. Pelo menos foi isso que meus pais pensaram. Não que eu vá muito contra o que passa pela cabeça deles, mas, bem, nós estamos falando de Hogwarts. Essa não é uma escola qualquer! É a melhor, mais nobre, antiga e CARA escola de toda Londres. Lá eles têm todos os tipos de pessoas ricas. Melhor, podres de ricas. Em todos os sentidos, se é que me entende. Não é como se eu fosse ser a garota mais desejada lá, foi o que pensei. E não estava completamente errada sobre isso.
Eu moro no subúrbio. No lugar onde os EMPREGADOS dos alunos moram. Não os alunos. Jamais os alunos.
De onde venho ter uma linha telefônica é luxo. Imagina duas ou mais então!
Os alunos de Hogwarts têm piscina aquecida no inverno enquanto tenho que me contentar com um banho quente de chuveiro por dia. Eles andam de limusine e bebem champagne enquanto meu pai tenta fazer um Ford Mercure, mais velho que minha irmã Petúnia, pegar. Quando ele finalmente desiste e me dá uns trocados pra pegar o metrô e, se der, comprar um refrigerante eu provavelmente já estou tão atrasada que nem vale mais a pena. É sempre assim... Por isso nunca vou pra escola de carro.
Não estou reclamando. Eu nunca reclamo. E isso já é quase um lema.
É o que dizem: “Você tem aquilo que deve ter!”.
Às vezes acho até que tenho mais do que realmente preciso. Conheço pessoas que tem bem menos e não reclamam. Por que eu o faria então?
No começo foi difícil. Extremamente difícil. Terrivelmente difícil! Ainda é um pouco...
Mas, no final, arrumei uma amiga. Pelo menos é o que acho.
O nome dela é Julie Maronne. Ela é muito bonita com seus traços levemente orientais. É uma das garotas mais ricas e populares da escola. Bem, ela não era tão popular no começo. Não como é hoje.
Como ficamos amigas? Isso é simples.
Ela me defendeu. Uns garotos estavam me perturbando por morar da rua Madson, uma de fama não tão boa. Ela os mandou parar, eles obedeceram... pronto. Isso foi o bastante pra eu ter uma dívida de gratidão eterna para com ela.
Não diria que somos como melhores amigas. Ela é legal comigo e isso é mais do que eu poderia querer. A maior parte dos alunos simplesmente finge que não existo. Que sou um fantasma ou algo parecido. O que não é de todo ruim.
As pessoas me ignorarem nunca foi o problema. Não mesmo! O problema é quando elas tentam me atingir de alguma forma. Quando tentam me fazer sentir menor por não ser exatamente como eles: idiotas ricaços. Mas enquanto eu ficar fora do caminho deles não tenho que me preocupar. Não que eu vá aceitar eles me pisarem, ou algo assim.
Só preciso me manter fora campo de visão deles e fico bem. Escondendo-me na biblioteca, no parquinho, no banheiro ou em outras partes remotas da escola sempre que for preciso. Falando apenas quando alguém pergunta. Não me metendo em nada que diz respeito a eles, pra concluir.
Eles não reclamam se eu não o fizer antes. Não me enchem se eu não estiver por perto.
Simples assim.
Ora vamos! Isso é ou não uma guerra INÚTIL de classes?!
É claro que é... e estou em desvantagem.
Quando se está no território inimigo você tem que seguir as regras que te dão, por mais cruéis que sejam. Convenhamos, eu nunca disse que era uma guerra justa. Guerras não são justas em sua essência. Nenhuma. Mesmo que os ideais sejam nobres a principio; se tornam tolos e desumanos numa certa altura do campeonato.
Mas, colocando essa coisa toda de volta aos trilhos.
Ser “amiga” da Julie tem suas vantagens. Como, por exemplo, você sempre é convidada para as festas.
Primeiro: porque a Julie é quem organiza todas as festas por aqui.
Segundo: porque sou amiga dela. Amiga capacho, mas amiga de qualquer forma.
Terceiro: porque aqui tem muito disso, é festa de montão.
Quarto: porque... bem, essa é uma boa vantagem. A melhor que se pode ter! Não acha?! Er... estou sendo sarcástica.
Não sou muito fã de festas. Nunca gostei e passei a gostar menos ainda depois que descobri o que elas realmente significam.
“Pessoas tentando parecer mais e melhores do que realmente são e fazendo coisas que não fariam normalmente pra isso.”
Aqui é assim. Digo, para os alunos de Hogwarts festas não significam simplesmente, er, festas. Se é que me entende.
E, pra começo de conversa, isso ia totalmente contra meu plano de se manter fora de alcance. Eu não queria me enfiar no covil do inimigo. Tudo bem que eu já estava dentro de boa parte do mundo deles, mas o covil era demais pra mim.
Não no covil. Nunca no covil.
Eu não iria.
Não mesmo.
A nenhuma festa.
Pelo menos era o que achava...
Mas quando o telefone tocou naquela maldita tarde de sábado e minha mãe me chamou dizendo que era uma garota muito educada dizendo ser minha amiga, nem imaginei o que vinha pela frente. Não tinha como ter imaginado. Eu não sou nenhuma vidente, sabe?
Era a Julie. Me convidando para uma festa, que organizara, na casa de um dos seus vários amigos milionários.
Eu já havia recusado tantos convites dela pra festas quanto se pode contar. E estava preparada pra recusar mais um quando ela me disse que aquilo era uma ordem, não um pedido. Não estranhei. Ela sempre parece estar dando uma ordem quando fala. Pena que as coisas não funcionem assim comigo.
Estava preparada pra dizer isso a ela quando:
“Lily Evans. Nós somos ou não amigas?” – disse, exasperada, do outro lado da linha.
Pensei em dizer: “Hun... não sei? Somos? Porque às vezes parece que sou apenas alguém que você usa quando precisa.”
Mas eu não disse. Eu queria, mas não o fiz.
Anos de experiências me mostraram que não devo contrariar alguém que está muito acima de mim, no topo da cadeia social. E vou te contar, não foram experiências nada boas.
“Er... somos.” – murmurei, contrariada.
“É claro que somos, Evans.” – falou num tom doce. Doce demais para meu gosto. Ficou parecendo que estava me bajulando.
“Eu sei.” - mas eu não sabia. Não tinha certeza.
“Eu não posso tentar fazer as pessoas falarem com você se não ajudar.” - falou mudando pra um tom hábil. “Como quer que as pessoas saibam quem você é se vive se escondendo? Fica difícil chamar atenção dessa forma.”
“Eu não quero.” – de onde será que ela tirou essa idéia absurda que preciso de atenção. Acho que já deixei mais claro que clara de ovo que anseio exatamente o contrario.
Ela nunca foi muito inteligente mesmo. A Julie, digo. Não para certos tipos de assunto. Na verdade, ela é bem esperta para assuntos como moda, festas, jóias, garotos, entres outras coisas. Mas ultimamente acho que ela anda meio com a cabeça no lugar dos pés. Totalmente perdida, a pobrezinha. Eu querendo chamar atenção?! Isso é praticamente tão estúpido quanto cuspir na xícara de chá da rainha! A coitada precisa urgentemente de um analista. Não que ela não tenha um. Na verdade, tem um montão deles.
“O que você não quer?” – a voz parecia um tanto confusa. Não falei! Completamente perdida.
“Não quero que você faça as pessoas falarem comigo, nem que ninguém saiba que existo. Não preciso de mais atenção que já tenho. E não quero ir a nenhuma festa também.” – respondi, perdendo um pouco da minha não tão limitada paciência.
“Você não pode se esconder pra sempre, sabe?” – ela meio cantarolou do outro lado da linha.
“Mas posso tentar.” – revidei.
“Ora vamos, Lily querida! Não é como se você tivesse algo melhor pra fazer.” – reclamou.
Como se não tivesse algo melhor pra fazer! Como se não tivesse algo melhor pra fazer!
Upf.
Não tenho mesmo... e daí?!
“Tenho sim. Várias coisas” – mentira deslavada.
Eu sei. Eu sei. O máximo que eu faria seria assistir um filme repetido no TV, fazer uns cookies pro lanche, dar uma geral no meu armário ou ler algum romance trágico. Isso está no topo da minha lista de “Coisas pra se fazer em sábados terrivelmente monótonos”. Bem, elas não prometem nenhuma diversão apenas evitam que você morra... de tédio.
Sair pra dar uma de volta Routemaster, aqueles ônibus vermelhos de dois andares, é o número na minha lista. E eu faria isso sem pestanejar se não estivesse completamente dura. Sem grana. Falida! Passagens são baratas, mas nem tanto.
Não sei que me atrai tanto neles. Nesses ônibus, digo. Talvez eu simplesmente goste de olhar a cidade pela janela e sentir o balanço. Eles também são bem acessíveis, tem linhas rodoviárias cortando toda a Londres. Além de ser um verdadeiro símbolo. Eles são tradicionais por aqui, assim como as cabines vermelhas de telefone e aqueles táxis pretos que chamam de Cabs.
Voltando a conversa desinteressante:
“O que vai fazer?” – insistiu Julie em tom impaciente. Posso até imaginá-la revirando os olhos.
“Muitas coisas.” – respondi séria.
“Como o quê?” – quis saber. Sei muito bem o que ela pretende e não vou cair nessa. Ela não vai me pegar no pulo. Não vou deixar.
“Você não iria querer saber.”
“Iria sim.” – teimou.
“É coisa de família. Nada pelo que você se interesse.” – menti sabiamente.
Ela pode não ser muito chegada a “coisas de família”, que eu saiba a mãe dela só se preocupa em estar bem vestida e fazer uma plástica por mês e o pai vive viajando a trabalho, mas ela respeita isso. Ela nunca me diria para eu mandar todos pro espaço, como costuma dizer, se estivéssemos falando de família.
“Como o que? Ir à igreja ou coisa parecida?! Pelo amor de Deus Evans, o que há com você?! Quer ser canonizada, seja lá como chamam quando tornam alguém em santo?” – gritou, aparentemente perdendo a paciência.
“Não, eu não quero. Dá pra se acalmar? Ainda não sou surda, sabe?” – respondi, calmamente. Bem, o mais calma que consegui.
Eu podia muito bem estar irritada com ela, não? Brava mesmo. Por ela ter gritado comigo e ter insinuado que quero ser uma santinha do pau oco. Mas não estou. Com raiva, quero dizer. Na verdade, estou bem surpresa e... desconfiada. Com pulga atrás da orelha e tudo mais.
Isso tudo é extremamente estranho. Sim, estranho. Uma coisa é a Julie me convidar pra uma festa e eu recusar. Ela aceita isso e pronto. Sem discussões, gritos ao telefone ou insinuação a minha não existente aspiração à santificação. Nada mesmo. Bem, não é como se eu fosse fazer tanta falta assim. Ela já tem amigas o suficiente e candidatas a amigas também. Por que ela iria insistir? Por que? Não dá pra entender.
Estranho... muito estranho.
“Desculpa.” – suspirou do outro lado da linha. “Mas não adianta tentar me enganar. Sei que está mentindo.” - completou. Droga! Ela me pegou. Isso não podia ter acontecido. Não mesmo.
“Não estou, não.” – tentei enrolar, em tom ofendido, enquanto forçava minha mente a trabalhar em outra desculpa. Não posso ir, minha mãe não deixa porque é dia de ação de graças, Páscoa, Natal, virada de ano, aniversário do Papa... Onde estão todos os feriados quando se precisa deles?! Eu definitivamente não funciono bem sobre pressão.
“Está sim.” – insistiu.
As pessoas podem ser bem insistentes às vezes.
E burras também.
Sério.
Se eu convidasse alguém para uma festa e ela se recusasse tão intensamente a ir, como estou fazendo, não teria outra coisa a fazer a não ser tentar me conformar. Afinal, temos de ter um pouco de senso. Não temos? É claro que temos.
A não ser que eu tivesse alguma outra coisa em mente. Aí eu insistiria.... É isso! A Julie está armando alguma e precisa de mim pra tudo dar certo. Só pode ser.
Você perguntaria que espécie de amiga eu sou, mas não me sinto nem um pouco culpada por pensar isso dela. Julie Maronne é bem o tipo de pessoa que usa os outros para conseguir o que quer. Não me surpreenderia nada se fosse exatamente isso que ela quer comigo, me fazendo ir a essa festa.
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