A Faculdade Hogwarts
Capítulo Um
A Faculdade Hogwarts
A noite estava fria. As árvores, espalhadas na grande propriedade, não se moviam: suas folhas pareciam paralisadas. Nenhuma brisa soprava na Faculdade Hogwarts.
Ginny Belacqua andava pelos corredores da Catedral ao lado de seu daemon, Mick. Ao longo das paredes da Faculdade, os retratos dos antigos Reitores estavam na penumbra. Ela estava indo à cozinha. Assim que Ginny chegou ao destino, olhou para dentro das portas duplas; como não viu ninguém, subiu para junto da mesa principal. Os talheres e pratos eram de ouro. Os copos pareciam ser de cristais, por causa de tamanha densidade que brilhavam. As 14 cadeiras ali não eram um banco de carvalho, mas sim, cadeiras de mogno com almofadas de veludo. Ginny parou junto à cadeira do Reitor e deu um peteleco na taça maior; o som percorreu todo o salão.
- Você está de brincadeira! Comporte-se! – cochichou o daemon, em forma de uma mariposa para não se destacar na penumbra do salão.
Ginny achou graça da cara de espanto de Mick, mas seu bom-senso agiu: ela pôs a mão levemente sobre a taça de cristal que vibrava.
- Estão fazendo barulho demais na cozinha, Mi. E de qualquer forma, o Administrador só aparece depois do primeiro sino. Deixe de ser ranzinza.
Mick esvoaçou na frente dela, percorrendo todo o tablado e entrando na Sala Privativa, no outro extremo. Logo depois retornou.
- Está vazia. Mas temos que agir rápido.
Quase agachada, escondida pela mesa, Ginny percorreu toda distância rapidamente e entrou na Sala Privativa, onde tornou a ficar de pé. A única luz vinha da lareira; a pilha de lenha em brasa desabou enquanto ela estava olhando, produzindo faíscas ao longo da chaminé. Passara a maior parte na vida na Faculdade, mas nunca entrara na Sala Privativa. Somente os Catedráticos e seus convidados podiam entrar ali, e nunca uma mulher. Nem as criadas entravam para limpar; isso era serviço do mordomo.
Mick se acomodou no ombro dela.
- Está satisfeita? Podemos ir agora? – cochichou.
- Não seja medroso! Ainda quero dar uma espiada!
Era uma sala ampla, com uma mesa oval de madeira vermelha encerada, e sobre ela várias garrafas e taças de cristal, e uma tabaqueira de prata com uma pequena estante de cachimbos. Num aparador vizinho, havia um pequeno aquecedor de pratos e uma cesta de botões de papoula.
- Eles se tratam bem, hein, Mi? – ela comentou baixinho.
E foi se sentar em uma poltrona, de couro verde, tão funda que ficou quase deitada, mas endireitou-se e encolheu as pernas. Depois se pôs a examinar os retratos nas paredes: mais Catedráticos, com certeza. Barbados e melancólicos, de dentro de suas molduras, eles lançavam olhares de solene desaprovação.
- O que você acha que eles conversam aqui? – a garota perguntou, ou começou a perguntar, mas foi logo interrompida por vozes do lado de fora da porta.
- Pra trás da poltrona, depressa! – sussurrou Mick.
Como um raio, Ginny pulou da poltrona e foi se esconder atrás dela. Não era o melhor esconderijo: ela havia escolhido logo a poltrona que ficava bem no meio da sala, e se não ficasse quietinha...
A porta se abriu, e a iluminação da sala mudou: um dos recém-chegados trazia uma lamparina, que ele colocou sobre o aparador. Ginny via as pernas dele, as calças verde-escuro e os sapatos pretos bem encerados: um criado.
Então, uma voz grossa perguntou:
- Lorde Sirius já chegou?
Era o Reitor. Ginny prendeu a respiração ao ver o daemon do criado (um cão, como os daemons de todos os criados) entrar trotando e sentar-se em silêncio aos pés dele, e então os pés do Reitor ficaram visíveis também, metidos nos sapatos velhos que ele sempre usava.
- Não, Reitor – disse o Mordomo. – Também não chegou notícia das Docas Aéreas.
- Imagino que ele vai chegar com fome. Leve-o direto para o Salão, está bem?
- Está bem, Reitor.
- E já separou um pouco do Tokay especial?
- Já sim, Reitor. O 1898, como o senhor mandou. Lorde Sirius aprecia muito essa safra, se bem me lembro.
- Ótimo. Agora vá, por favor.
- Vai precisar da lamparina, Reitor?
- Sim, pode deixá-la aí. Durante o jantar, venha ajeitar o pavio, está bem?
O Mordomo fez uma mesura leve e virou-se para sair, e seu daemon seguiu-o obedientemente. De seu precário esconderijo, Ginny ficou observando enquanto o Reitor ia até um armário de carvalho a um canto da sala, tirava a sua beca de um cabide e vestia-a com dificuldade – o Reitor tinha sido um homem muito forte, mas agora tinha bem mais de 70 anos e seus movimentos eram rígidos e lentos. O daemon do Reitor era uma fêmea de corvo, e assim que ele terminou de vestir a túnica o daemon saltou de cima do armário e foi se acomodar no seu lugar de costume: o ombro direito dele.
Ginny sentia a aflição de Mick, embora este não emitisse um único som. Ela própria estava achando delicioso aquele friozinho na barriga...
Lorde Sirius, o visitante mencionado pelo Reitor, era tio dela, um homem a quem ela muito admirava... e temia. Diziam que ele estava envolvido em altas políticas, explorações secretas, guerras distantes, e ela nunca sabia quando ele ia aparecer. Ele era muito bravo; se a apanhasse ali, ela seria severamente castigada, mas conseguiria agüentar.
Porém, o que ela viu em seguida mudou completamente as coisas.
O Reitor tirou do bolso um papel dobrado e colocou-o sobre a mesa. Tirou a rolha de uma garrafa que continha um vinho quase dourado, desdobrou o papel e deixou cair lá dentro um jorro fino de pó branco; depois que amassou bem o papel, jogou-o fora na lareira. Então tirou um lápis do bolso e mexeu o vinho até dissolver todo o pó, e depois recolocou a rolha.
Seu daemon soltou um curto grasnido; o Reitor respondeu num murmúrio, e olhou em volta com os olhos semi-serrados e severos, antes de sair pela porta onde tinha entrado.
Ginny cochichou:
- Viu isso, Mick?
- Claro que vi! Agora saia depressa, antes que o Administrador chegue!
Mas, enquanto ele falava, ouviu-se um sino tocando uma badalada na outra ponta do Salão.
- É o sino do Administrador! – Ginny exclamou. – Pensei que teríamos mais tempo...
Mick esvoaçou até a porta do Salão e voltou correndo.
- O Administrador já está lá – avisou. – E você não vai poder sair por aquela outra porta...
A outra porta, aquela por onde o Reitor havia entrado e saído, abria-se para o movimentado corredor entre a Biblioteca e a Sala de Estar dos Catedráticos. A essa hora do dia, esse corredor estava cheio de homens indo vestir suas becas para o jantar, ou correndo para deixar papéis ou pastas na Sala de Estar antes de ir para o Salão; sabendo disso, Ginny tinha planejado sair por onde entrara, contando com mais alguns minutos antes do sino do Administrador.
Se ela não tivesse visto o Reitor colocar aquele pó no vinho, poderia até ter desafiado a cólera do Administrador ou tentado passar despercebida no corredor movimentado. Mas estava confusa, e isso fez com que hesitasse.
Então ouviu passos pesados sobre o tablado: era o Administrador vindo verificar se a Sala Privativa estava pronta, com as papoulas e o vinho que os Catedráticos beberiam depois do jantar. Ginny correu para o armário de carvalho, abriu-o e escondeu-se lá dentro, puxando a porta bem no momento em que o Administrador entrou. Ela não se preocupou com Mick: a sala era toda de cores escuras, e ele podia muito bem entrar debaixo de uma poltrona.
Ela escutou o resfolegar forte do Administrador e, pela fresta da porta, viu-o ajeitar os cachimbos na estantezinha junto à tabaqueira, lançando um olhar de relance para os frascos de bebidas e as taças. Depois alisou os cabelos sobre as orelhas com ambas as mãos e disse algo ao seu daemon. Era um criado, de modo que ele era uma cadela; mas um criado de alta categoria, de modo que o cão também era superior – um setter vermelho. O daemon parecia suspeitar de alguma coisa e ficou olhando em volta como se sentisse uma presença intrusa, mas não foi até o armário, para grande alívio de Ginny. Ele temia muito o Administrador, que duas vezes lhe dera uma sova.
Ginny ouviu um sussurro bem fraquinho: obviamente, Mick tinha se enfiado no armário.
- Agora vamos ter que ficar aqui! Por que você nunca escuta o que eu digo?
Ginny só respondeu depois que o Administrador saiu. Cabia a ele supervisionar os que serviam a mesa principal; ela ouviu os Catedráticos entrando no Salão, o murmúrio de vozes, o arrastar de pés.
- Ainda bem que não escutei – ela cochichou em resposta. - Senão não teríamos visto o Reitor colocar veneno no vinho. Mi, era o Tokay que ele tinha pedido ao Mordomo! Vão assassinar Lorde Sirius!
- Você não sabe se aquilo é veneno.
- Claro que é! Você não lembra? Ele esperou o Mordomo sair da sala; se fosse inocente, não se importaria que o Mordomo visse. E eu [i]sei[/i] que está acontecendo alguma coisa. Alguma coisa política. Mi, nós podíamos impedir um assassinato!
- Nunca ouvi tamanha bobagem – cortou ele. – Como acha que vai conseguir ficar quatro horas imóvel neste armário apertado? Deixe que eu vá vigiar o corredor; quando estiver deserto, eu aviso.
Ele voou do ombro dela, e ela viu a minúscula sombra aparecer na fresta da luz.
- Não adianta, Mi. Vou ficar aqui – declarou. – Há outra túnica ou sei lá o que aqui dentro; vou colocar isso no chão e me acomodar. Tenho que ver o que eles fazem!
Até então ela estava agachada; ficou em pé com cuidado, tateando a procura dos cabides para não fazer barulho, e descobriu que o armário era maior do que pensara. Havia várias becas acadêmicas e capuzes, alguns orlados de pele, a maioria com forros de seda.
- Será que são todos do Reitor? – ela sussurrou. – Quando ele recebe diplomas honorários de outros lugares, talvez eles lhe dêem becas que ele guarda aqui para usar... Mi, você acha mesmo que aquilo no vinho não é veneno?
- Não; assim como você, eu acho que é veneno. E acho que isso não é da nossa conta. E acho que interferir seria a coisa mais idiota de todas as coisas idiotas que você já fez na sua vida. Não temos nada a ver com isso.
- Não seja estúpido! – Ginny exclamou. – Não posso ficar aqui sentada vendo darem veneno a ele!
- Então vá para outro lugar.
- Você é um covarde, Mi.
- Claro que sou. Posso perguntar o que você pretende fazer? Vai dar um salto e arrancar a taça dos dedos trêmulos dele? Qual é a sua idéia?
- Não tenho idéia, e você sabe muito bem – ela respondeu em voz baixa. – Mas agora que vi o que o Reitor fez, não tenho escolha. Pensei que você conhecesse a existência da consciência . Sabendo o que vai acontecer, como é que eu posso ir me sentar na Biblioteca ou em qualquer lugar e ficar tamborilando os dedos? Isso eu não pretendo fazer, juro!
- Era isso que você queria o tempo todo – ele disse depois de um momento. – Queria se esconder aqui e assistir a tudo. Por que eu não percebi antes?
- Está certo, eu quero mesmo – ela confessou. – Todo mundo sabe que eles vêm fazer uma coisa secreta. Têm um ritual, ou alguma coisa assim. E eu só quero saber o que é.
- Não é da nossa conta! Se eles querem ter seus segredinhos, você devia apenas se sentir superior e deixá-los em paz. Esconder-se, espiar, é coisa de criança boba.
- Sabia que você ia dizer isso. Agora pare de resmungar.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, Ginny desconfortável no chão duro do armário e Mick pousado num cabide com ar contrariado, vibrando suas antenas temporárias. Ginny sentia vários pensamentos brigando dentro de sua cabeça e adoraria poder compartilhá-los com o seu daemon, mas era também orgulhosa e achou melhor tentar clarear os pensamentos sem a ajuda dele.
O que predominava era a aflição, e não por si própria – de tanto passar por situações difíceis, já estava acostumada. Dessa vez, estava aflita por causa de Lorde Sirius, e do que aquilo tudo queria dizer. Ele não costumava visitar a Faculdade, e o fato de estarem numa época de alta tensão política significava que ele não estava vindo apenas para comer, beber e fumar com um punhado de velhos amigos. Ela sabia que tanto Lorde Sirius quanto o Reitor eram membros do Conselho do Gabinete, que era o órgão especial de assessoria ao Primeiro-ministro, de modo que a visita podia ter alguma coisa a ver com isso; mas as reuniões do Conselho do Gabinete eram feitas no Palácio, não na Sala Privativa da Faculdade Hogwarts.
Além disso, havia o boato que estava provocando cochichos entre os criados da Faculdade: dizia-se que os tártaros tinham invadido Moscóvia e estavam avançando rumo ao Norte, para São Petersburgo, de onde poderiam dominar o Mar Báltico e acabar conquistando todo o oeste da Europa. E Lorde Sirius estivera no Extremo Norte: na última vez em que ela o vira, ele estava preparando uma expedição para a Lapônia...
- Mi... – ela cochichou.
- Que é?
- Você acha que vai haver guerra?
- Ainda não. Lorde Sirius não estaria jantando aqui se a guerra fosse explodir na semana que vem.
- É o que eu acho. Mas depois?
- Psiu. Vem vindo alguém.
Ela sentou-se ereta e encostou o olho na fresta da porta. Era o Mordomo, entrando para verificar o pavio da lamparina, como o Reitor ordenara. A Sala de Estar e a Biblioteca eram iluminadas por luz anbárica, mas, na Sala Privativa, os Catedráticos preferiam as lâmpadas de nafta, mais antigas e mais suaves. Isso são mudaria enquanto o Reitor estivesse vivo.
O Mordomo aparou o pavio e colocou outra acha de lenha na lareira, depois escutou cautelosamente junto à porta antes de surrupiar um punhado de folhas da tabaqueira.
Mal tinha recolocado a tampa quando a maçaneta da outra porta girou, e ele deu um pulo, sobressaltado. Ginny tentou não rir. O Mordomo enfiou às pressas as folhas de fumo no bolso e virou-se para o recém-chegado.
- Lorde Sirius! – exclamou.
Um arrepio de surpresa gelou as costas de Ginny. Ela não conseguia vê-lo e tentou dominar a vontade de mudar de posição para avistá-lo.
- Boa-noite, Tom. – disse Lorde Sirius, naquela voz áspera que Ginny sempre escutara com uma mistura de prazer e apreensão. – Cheguei atrasado para o jantar. Vou esperar aqui.
O Mordomo parecia constrangido; só se entrava na Sala Privativa a convite do Reitor, e Lorde Sirius sabia disso. Mas o Mordomo viu também o olhar de Lorde Sirius fixo em seu bolso estufado e resolveu não protestar.
- Devo avisar ao Reitor que o senhor chegou?
- Não seria mau. Pode me trazer café.
- Muito bem, senhor.
O Mordomo saiu apressado, seu daemon trotando obediente atrás. O tio de Ginny foi até a lareira e estendeu os braços por cima da cabeça, espreguiçando-se e bocejando como um leão. Estava usando roupas de viagem. Como sempre acontecia quando tornava a vê-lo, Ginny lembrou-se de quanto ele a assustava. Agora estava fora de questão sair despercebida: ela teria que esperar e torcer.
O daemon de Lorde Sirius, uma pantera branca, postou-se logo atrás dele.
- Vai mostrar as projeções aqui? – ele perguntou em voz baixa.
- Vou. Vai ser menos confuso do que irmos para o Auditório. Vão querer ver todos os espécimes também. Daqui a pouco vou mandar chamar o Porteiro. São tempos ruins, Stelmaria.
- Você devia descansar.
Ele esticou-se numa das poltronas, de modo que seu rosto ficou escondido de Ginny.
- É, sim. E também mudar de roupa; com certeza, existe alguma regra de etiqueta que permite que eles me dêem uma multa de uma dúzia de garrafas por entrar aqui sem estar vestido adequadamente. Eu precisava dormir uns três dias. Mas o caso é que...
Houve uma batida na porta, e o Mordomo entrou, trazendo um bule de café e uma xícara numa bandeja de prata.
- Obrigado, Tom – disse Lorde Sirius. – Aquilo ali sobre a mesa é Tokay?
- O Reitor mandou separá-lo especialmente para o senhor – informou o Mordomo. – Há somente três dúzias de garrafas do '98.
- Não há bem que sempre dure. Deixe a bandeja aqui ao meu lado. Ah, peça ao porteiro para mandar as duas caixas que deixei na Portaria.
- Para cá, senhor?
- Sim, para cá, ora. E vou precisar de uma tela e uma lanterna de projeção, também aqui, também agora.
O Mordomo mal conseguia segurar o queixo de surpresa, mas conseguiu engolir a pergunta ou o protesto.
- Tom, você está esquecendo o seu lugar – disse Lorde Sirius. – Não me questione; apenas faça o que eu lhe ordeno.
- Muito bem, senhor – replicou o Mordomo. – Se posso dar uma sugestão, senhor, talvez seja melhor avisar o Sr. Cawson do que o senhor está planejando, senhor, senão ele ficará um tanto perplexo, se é que me entende.
- Está bem. Avise a ele, então.
O Sr. Cawson era o Administrador. Havia uma rivalidade antiga e bem-estabelecida entre ele e o Mordomo; o Administrador era mais graduado, porém, o Mordomo tinha mais oportunidades de insinuar-se com os Catedráticos, e aproveitava cada uma delas. Ele ia adorar a oportunidade de mostrar ao Administrador que sabia mais do que ele sobre o que acontecia na Sala Privativa.
Fez uma mesura e saiu. Ginny observou o tio servir-se uma xícara de café, bebê-la de uma vez e servir-se outra, que passou a beber mais devagar. Ela estava perplexa: caixas de espécimes? Uma lanterna de projeção? Que teria ele de tão urgente e importante para mostrar aos Catedráticos?
Então Lorde Sirius levantou-se e virou as costas ao fogo. Ela o viu de corpo inteiro, e maravilhou-se com o contraste que ele fazia com o Mordomo gorducho, os Catedráticos curvados e lânguidos: Lorde Sirius era um homem alto, de ombros largos, fisionomia soturna e feroz, olhos que pareciam cintilar com um humor selvagem. Tinha o rosto de uma pessoa a quem se obedecia ou combatia – nunca poderia ser tratada como inferior ou digna de compaixão. Todos os seus movimentos eram largos e possuíam um equilíbrio perfeito, como os de um animal selvagem; dentro de um aposento como aquele, ele parecia uma fera presa numa jaula pequena demais.
No momento, sua expressão era distante e preocupada. O daemon aproximou-se e encostou a cabeça na cintura dele, e ele baixou os olhos para a pantera com um olhar enigmático, antes de voltar-lhe as costas e encaminhar-se para a mesa. Ginny de repente sentiu o estômago dar um nó, pois Lorde Sirius havia tirado a tampa do frasco de Tokay e estava enchendo uma taça.
- Não!
O grito abafado saiu antes que ela pudesse contê-lo. Lorde Sirius ouviu-o e virou-se imediatamente.
- Quem está aí?
Ela não conseguiu controlar-se: saltou para fora do armário e correu para arrancar a taça das mãos dele. O vinho voou, molhando a borda da mesa e o tapete, e a taça caiu e despedaçou-se. Ele agarrou a menina pelo pulso, torcendo-o com força.
- Ginny! Que diabos está fazendo aqui?
- Me solte e eu lhe conto!
- Primeiro vou quebrar-lhe o braço. Como ousa entrar aqui?
- Acabei de salvar a sua vida!
Por um segundo os dois ficaram imóveis, ela a se retorcer de dor e fazendo uma careta para reprimir os gemidos, ele inclinado sobre ela, de testa franzida, como um trovão anunciando tempestade.
- Que foi que disse? – ele perguntou, em voz baixa.
- O vinho está envenenado – ela resmungou, quase sem abrir a boca. – Vi o Reitor colocar um pó branco dentro dele.
Lorde Sirius soltou-a e ela caiu no chão; nervoso, Mick esvoaçou para o ombro dela. O tio baixou os olhos com uma raiva controlada, e ela não ousou encará-lo nos olhos.
- Entrei só para ver como era esta sala – ela contou. – Sei que não devia ter feito isso. Ia sair antes que alguém entrasse, mas o Reitor apareceu e fiquei encurralada. O armário era o único esconderijo. E vi quando ele colocou o pó no vinho. Se eu não tivesse...
Bateram na porta.
- Deve ser o Porteiro – disse Lorde Sirius. – Volte para o armário. Se eu ouvir o menor barulho, vou fazer você ter vontade de morrer.
Ela correu a se esconder, e mal fechara a porta do armário quando Lorde Sirius falou em voz alta:
- Pode entrar!
Como ele tinha dito, era o Porteiro.
- Coloco aqui, senhor?
Ginny viu o velho parado à porta com ar indeciso, e atrás dele a ponta de um grande caixote de madeira.
- Isso mesmo, Denis. Traga duas para dentro e coloque no chão perto da mesa.
Ginny acalmou-se um pouquinho e permitiu-se sentir a dor no ombro e no pulso. Ela teria chorado de dor se fosse outro tipo de menina; mas só o que fez foi cerrar os dentes e movimentar de leve o braço até senti-lo mais leve.
Então ouviu o ruído de vidro quebrado e o borbulhar de um liquido que se derramava.
- Maldição! Denis, seu velho descuidado! Veja o que você fez!
Ginny conseguiu ver mal e mal. O tio dera um jeito derrubar a garrafa de Tokay, fazendo parecer que tinha sido o Porteiro. O velho pousou com cuidado o caixote no chão e começou a se desculpar.
- Sinto muito, esmo, senhor. A mesa estava mais perto do que eu pensava...
- Arrume alguma coisa para limpar essa sujeira. Vá depressa, antes que o tapete fique impregnado!
O Porteiro e seu jovem ajudante saíram apressados. Lorde Sirius aproximou-se do armário e falou num cochicho.
- Já que está aí, pode fazer alguma coisa útil. Vigie atentamente o Reitor. Se me contar alguma coisa interessante a respeito dele, vou impedir que você tenha mais problemas do que os que já vai ter. Entendeu?
- Sim, titio.
- Se fizer um barulho sequer aí dentro, não vou ajudá-la. Você está por sua conta.
Ele afastou-se, e estava novamente parado de costas para a lareira quando o Porteiro voltou com uma vassoura e uma pá para os cacos de vidro, além de um pano e uma tigela para o líquido.
- Só posso pedir desculpas mais uma vez, senhor; juro que não sei o que me...
- Limpe isto aí e pronto.
Enquanto o Porteiro enxugava o vinho do tapete, o Mordomo bateu e entrou com o criado de Lorde Sirius – um homem chamado Lúcio. Os dois carregavam um caixote pesado, de madeira encerada e alças de bronze. Viram o que o porteiro estava fazendo e se estacaram.
- Era o Tokay, sim – disse Lorde Sirius. – Uma pena. A lanterna está aí? Coloque-a perto do armário, Lúcio, por favor. A tela vai ficar no outro lado.
Ginny percebeu que pela fresta da porta conseguiria ver a tela e o que fosse projetado nela, e ficou curiosa em saber se o tio tinha feito de propósito. Protegida pelo barulho que o criado fazia ao desenrolar o linho rígido e montar a tela e sua armação, ela cochichou:
- Está vendo? Não valeu a pena?
- Pode ser que sim... – disse Mick em tom severo com sua vozinha de mariposa. - .... e pode ser que não – completou.
Lorde Sirius ficou parado perto da lareira bebericando o resto do café e observando com ar sisudo enquanto Lúcio abria a caixa da lanterna de projeção e desencapava as lentes antes de verificar o tanque de óleo.
- Há bastante óleo, senhor – disse. – Quer que eu mande chamar um técnico para fazer a projeção?
- Não, eu mesmo farei isso. Obrigado, Lúcio. Eles já terminaram o jantar, Tom?
- Creio que estão quase terminando, senhor – respondeu o Mordomo. – Se entendi direito o que o Sr. Cawson disse, o Reitor e seus convidados vão se apressar quando souberem que o senhor está aqui. Posso levar a bandeja do café?
- Pode levar.
- Muito bem, senhor.
Com uma mesura leve, o Mordomo pegou a bandeja e saiu, e Lúcio foi com ele. Assim que a porta se fechou, Lorde Sirius olhou diretamente para o armário do outro lado da sala, e Ginny sentiu a força daquele olhar quase como se ele tivesse uma forma física, como se uma flecha ou uma lança. Então ele desviou os olhos e falou baixinho com seu daemon.
A pantera veio sentar-se calmamente ao lado dele, alerta, elegante e perigosa, os olhos verdes examinando o aposento entes de se voltarem, como os olhos negros dele, para a porta que dava para o Salão, no momento em que a maçaneta girou. Ginny não conseguia ver a porta, mas escutou uma exclamação profunda quando o primeiro homem entrou.
- Estou de volta, Reitor – disse Lorde Sirius. – Por favor, traga os seus convidados; tenho algo de muito interessante para mostrar.
Peço que deixem comentários para que possa ter continuidade. Não vou postar para o nada. Espero que tenha gostado! ;)
Beijos, Mih Peverell.
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