Capítulo 01



18h56.


O silêncio entre a platéia era estático.

— Então a senhora definitivamente terminou o último livro da série? — a entrevistadora lambia a ponta da caneta verde-ácido de uma maneira muito característica.

— Sim, sim. Na verdade, os últimos capítulos já estavam prontos há bastante tempo, veja bem. Agora a versão final está trancada na minha casa a sete chaves.

— A senhora não mandou para editora, ainda? É só a gente invadir a sua casa e ler?

— Se você souber como usar um Alohomorra — Rowling deu uma risada educada, que foi acompanhada por todos os presentes.

— Ha-ha, bem-humorada como sempre! Me diga, Jo, me diga, como a senhora se sente agora com o final de Harry Potter? Triste? Feliz? Aliviada? Preocupada?

— Hum, não posso dizer que tenha sido realmente fácil terminá-lo, porque Harry Potter tem estado do meu lado desde 1995...

— Ooooh, gente, gente, ela está com lágrimas nos olhos!

Um “ooooh” de comoção percorreu a platéia e a autora pareceu ficar levemente irritada.

— Não precisa exagerar, senhora Skeeter —

— Já te disse, pare com essas formalidades! Pode me chamar só de Chica.

— Tudo bem, então, mas eu ainda queria frisar que —

— Ainda temos uma pergunta da platéia, Jo, seria que você poderia matar uma última curiosidade antes de se despedir?

Respirou fundo e procurou ignorar o corte em sua fala. Intimamente, estava contente consigo mesma – eu realmente me inspirei na personagem certa, pensou, ao lembrar da sua jornalista dos livros.

— Claro, claro.

— Ali, ali, a garota morena lá no fundo. O que você quer saber, querida?

Uma jovem de mais ou menos vinte anos se levantou em meio às pessoas, parecendo tímida. Colocou os longos cabelos negros para trás e, ao fazer sua pergunta, sua voz tinha um timbre misto de exaltação e preocupação.

— Eu queria saber se é verdade o que os boatos estão dizendo, se o Harry vai mesmo morrer no sétimo livro.

Chica Skeeter correu os olhos estreitos até a escritora, atenta. Rowling sorriu.

— Me desculpe — disse —, mas esse é o tipo de pergunta que não posso responder. Vocês todos vão saber no fim. Só esperem mais um pouco.

— Ah, esses leitores curiosos... — Skeeter forçou um largo sorriso — Eu fico muito feliz de ter tido a companhia de vocês durante esta entrevista maravilhosa! Obrigada por ter respondido as nossas perguntas, Jo.

— Foi um prazer, Chica.

— Não se esqueça que você será sempre muito bem-vinda no nosso programa — entrevistadora e entrevistada deram as mãos, ainda sentadas —, e boa sorte em sua nova carreira sem Harry Potter.

— Acho que ainda vou ter muito tempo junto desse menino — as palmas do público abafaram seu segundo riso educado. Rowling se levantou sob o show de luzes para se despedir propriamente e logo desapareceu na escuridão dos camarins.





19h32.


As linhas do asfalto passavam quase lentas por baixo do Golf cor-de-vinho. Joanne ‘Kathleen’ Rowling deu um suspiro longo e aumentou um pouco do som do seu CD do The Smiths. Desejava no fundo no seu íntimo chegar logo em casa, dar um beijo nos três filhos, ligar para Neil, deitar e dormir. Estava cansada.

Espero que termine logo, e parou o carro no semáforo fechado.

Ela não falava de Harry Potter, claro que não – era a chuva do lado de fora que a deixava amargurada e cada vez mais sonolenta.

Aquele tempo para um fim de tarde de domingo era perfeito para se estirar em cima do sofá e assistir o noticiário. De fato, não havia ninguém na rua àquela hora. Não fosse uma tímida lâmpada brilhando na cabine do posto de gasolina da esquina – e o carro que acabava de parar atrás do seu –, estaria sozinha. Não gostava disso, nem um pouco. Claro, pois não era falta de espaço em sua casa que a levava a escrever dentro de pubs e cafés.

Fechou os olhos e afundou a cabeça no encosto do banco. Naqueles últimos dias, sentia-se profundamente só. Neil tinha viajado há uma semana para um congresso de medicina em Chicago, e Jessica passava quase o dia todo na escola. David e Mackenzie eram ainda pequenos demais. Normalmente ela era chamada para dar entrevistas e encontrava diversos fãs pelo caminho, mas ainda assim não era o mesmo que uma boa conversa...

E Harry... ah, Harry, sua mais presente companhia há mais de dez anos. Lá estava seu fim, dolorido fim, escrito justamente por ela.

Muito digno, de qualquer modo, convenceu seus próprios botões, e resolveu abrir os olhos. O sinal estava verde, talvez há muito tempo já, e ela se apressou a pisar no acelerador – e nada aconteceu.

O automóvel tinha desligado sozinho e ela nem percebera. Distraída, pensou balançando a cabeça e girando a chave da ignição. Barulho, barulho, nada. Giro novamente. Barulho, barulho, nada. Terceiro giro. Barulho, barulho.

Nada.

Segurando um grande repertório de palavrões ingleses, Jo abriu a porta e saiu em direção ao capô do carro. Não soube ao certo o que impulsionara tal ação, olhar todas aquelas engrenagens e tubos era o mesmo que ler grego – ou não, porque ainda achava o segundo muito mais fácil do que o primeiro. Desejou terrivelmente ter instruções em grego naquele momento. Tirou o cabelo molhado do rosto e pegou o celular do bolso para –

— Tá tudo bem, ma’am?

A voz vinda do nada a assustou até a morte, a fez pular, gritar, perder o controle e deixar o celular cair. Teve ainda a oportunidade de acompanhar o objeto em câmara lenta, perfeitamente alinhado à poça d’água mais cheia e próxima.

Por um momento, não deu muita atenção a isso. A figura estranha a sua frente era ligeiramente mais preocupante.

— Quem é você?!

— Desculpe, ma’am, eu sinto muito, não quis te assustar...

— Você – você — a silhueta se delineou sob a luz da janelinha do posto — Você é a menina do show.

Sem dúvidas, o timbre exaltado e preocupado que queria saber da morte de Harry Potter era o mesmo.

— Sim, ma’am. Meu nome é Beatriz. Beatriz Lestrange. Desculpe se te assustei, não era minha intenção...

— Não se preocupe — mexeu a mão para lá e lembrou-se então do paradeiro molhado do seu novo Nokia. Dessa vez o palavrão foi inevitável. — Era só o que me faltava — acrescentou ao apertar o botão e ver que a luz não acendia. Talvez carregasse alguma maldição que quebrasse as coisas ou –

— O que tem de errado com seu carro? — Beatriz achou melhor abrigar a escritora debaixo de seu guarda-chuva.

— Não sei, ele simplesmente não liga.

— Eu posso te ajudar?

— Você entende de mecânica?

— Eu não, mas meu namorado trabalha naquele posto ali — apontou para o da esquina — Eu estava vindo buscar ele, posso ir chamar ele pra você!

Não precisou pedir nem negar, pois no segundo seguinte a menina já fugia em direção à luz. Com o qüinquagésimo sexto suspiro do dia, a seguiu.

Ainda chovia.





20h02


O namorado da menina – que assustadoramente se chamava Tony Riddle (talvez o problema realmente fosse mau agouro) – fora muito simpático e prestativo. Ao ver que se tratava da madame Rowling, não precisou nem pestanejar para tirar o automóvel da chuva. Encostou-o a um canto coberto do posto e analisou seus interiores por alguns longos instantes.

— É, ma’am — ele finalmente disse — É problema do motor. Seu carro é novo, não é?

— Pra falar verdade, é...

— Então provavelmente veio assim de fábrica. Não posso fazer muito pela madame aqui no posto, estou praticamente sozinho... — com cara de desgosto apontou para a cabine dona da luz da rua, onde se podia ver uma cabeça apoiada na cadeira, de costas — Snape sempre dorme a essa hora.

— Snape..? — Jo achou que tivesse ouvido errado.

— Severino Snape, é — Tony explicou casualmente, mas mesmo assim o coração de Rowling pareceu de funcionar um pouco. Maldição, sim, maldição de algum fã louco...

— Madame Rowling — a voz distante de Beatriz a acordou dos seus pensamentos conspiratórios —, a senhora não pode ficar fora de casa sozinha à noite!

— Não, não, vou deixar o carro aqui e amanhã passar num mecânico. Agora eu vou — vou coisa nenhuma!, xingou a Rowling da sua cabeça ao tirar o celular imprestável do bolso da calça — Eu ia ligar para um táxi... De qualquer modo, minha casa nem é tão longe assim, posso ir andando —

— De modo algum! Nós te levamos pra casa, meu carro está aqui do lado!

— Eu não quero atrapalhar mais vocês, vocês já foram tão gentis comigo...

— Não foi nada, madame Rowling, de coração. A carona será um prazer.

— Nós fazemos questão.

Coçou a cabeça para ajudar um pouco a pensar. Eles eram um casal simpático, de qualquer modo, e uma gentileza naquela noite detestável não cairia tão mal...

— Se não for incômodo, eu aceito...

— Nunca! Nunca! Por favor, entre, fique à vontade...

A escritora pegou sua bolsa e ligou o alarme do Golf, para em seguida sentar no banco do passageiro do automóvel da moça. Soltou seu qüinquagésimo sétimo suspiro quando Tony deu a partida e engatou a primeira marcha.

— O caminho mais rápido é você virar à direi —

— À direita na rua Arlington, sim, sim, ma’am — Tony riu — Nós sabemos onde a senhora mora.

— Sabem..? — aquilo era meio constrangedor.

Sentiu Beatriz roçar o braço em seu cabelo quando ela se apoiou no encosto do banco do motorista a sua frente, abrindo um largo sorriso:

— Nós somos seus maiores fãs, madame Rowling. Nós lemos Harry Potter pela primeira vez em 1997, nós amamos a série, amamos a história, amamos você mais do que qualquer coisa no universo.

— Ahn... obrigada — não; aquilo era constrangedor.





20h17

O Ford estacionou silenciosamente na garagem aberta da mansão. Os três passageiros – dois deles mal respirando – desceram em direção à porta da frente logo depois que sua dona, muito educadamente, tinha oferecido um convite para dentro como retribuição de gentileza.

Infelizmente, ela não poderia ter se dado conta do grande erro que cometia.

Ou talvez fosse felizmente – mas esta é uma outra questão.

De qualquer forma, quando entraram, a primeira coisa que se podia ver era um grande lance de escadas de madeira muito bem encerada, que certamente levava ao piso superior. Depois disso, dava-se conta de se estar num pequeno cômodo inicial, composto por mancebos, armários, cabides e casacos pendurados vindos da rua, e que tinha cinco passagens principais: a da escada, obviamente; a de trás das escadas, que levava até a cozinha; a da primeira porta à esquerda, que levava a uma sala de visitas e à copa; a da segunda à esquerda, que levava um discreto banheiro no corredor; e à única à direita, que guiava a uma sala de estar e um escritório.

Jo sorriu fino para seus dois acompanhantes afobados e foi em direção à sala de estar, somente iluminada pelo perceptível brilho da televisão. Na frente do aparelho, afundada no sofá gigantesco, estava uma senhora.

— Ana, querida! Obrigada por ter ficado até essa hora me esperando.

Com o que pareceu ser um grande esforço, Ana Bela Figg desgrudou os olhos da tela de plasma. Levantou-se e deu um abraço apertado na vizinha.

— Não há de quê, meu bem. Você sabe que eu amo as suas crianças.

— Eles estão dormindo?

— Acabaram de pegar no sono. E até que não foi tão difícil não, viu? A Jessica me ajudou, muito boazinha ela, um amor de menina. Aliás, acabou de sair pro aniversário do —

— Aniversário? Que aniversário, Ana?

— Como “que aniversário”? Ela está te falando disso há dias, Jo!

Deu-se um tempo para fechar os olhos e balançar a cabeça doída. Não era a primeira vez que esquecia dos compromissos da filha. Da família. Muitas coisas a fazer, muito a escrever, muitos personagens a matar, afinal de contas.

— É verdade. A festa de Derick Diggory.

— Hum, e ele veio buscar ela de carro e tudo o mais, uma graça aquele menino, uma graça! — Ana Bela deu uns tapinhas divertidos no ombro da amiga e riu, como sempre — Agora eu preciso ir, querida. Tenho que alimentar os gatos.

— Claro, e eu te segurando, desculpe...

Acompanhou a senhora até a porta sem se dar conta de estar sozinha ao fechá-la. O casalzinho simpático estava com ela até há pouco, e agora..? Vasculhou a sala de estar com o olhar e engoliu a má impressão que surgiu em sua garganta. Eles eram estranhos, afinal, quem sabe – mas e se só estivessem perdidos? Dirigiu-se até as portas de correr do escritório com o passo firme e tentando manter o sorriso demasiado forçado no rosto. Será —?

— Madame Rowling! — Beatriz Lestrange saltou para fora do chão quando as portas se abriram de súbito — Que susto!

— Oh, eu não queria assustar vocês, desculpem — o sorriso surpreendentemente conseguiu se alargar mais.

— Não, não, nós que temos que pedir desculpas — começou Tony —, nós entramos assim sem pedir permissão nem nada... Sinto muito. Mas a curiosidade... veja bem, ma’am, veja bem, estar aqui para nós é como se – como se fosse um sonho! Você – você realmente escreve suas histórias aqui?

O jovem, aparentemente mais pálido do que o normal – ou talvez do que ela pudesse ter percebido –, apontou com o indicador para uma escrivaninha de mogno, centrada na sala. Às suas costas havia uma estante de livros, a sua direita um divã, e a sua frente mais algumas poltronas.

— Não seja tolo, Tony! — a rudeza da garota foi assustadora — Há quanto tempo você lê os livros dela? Ela-não-escreve-em-casa!

— Pra dizer a verdade — o assunto resolveu se intrometer antes que a briga do casal fosse longe demais —, às vezes eu escrevo, sim. Eu prefiro reler o que eu escrevi aqui. O último livro, por exemplo.

Joanne se adiantou para a parte de trás da mesa, ao mesmo tempo em que tirava um cordão do pescoço – ali estava pendurado um leve molho de chaves estranhas, das quais uma ela cuidadosamente pegou para sumir entre o monte de gavetas lustrosas. Não se deteve muito e logo apareceu, um bolo de folhas A4 recicladas pesando sobre seus braços.

— Isso – isso é —

— Sim — não podia contentar-se de orgulho — É Harry Potter and the Deathly Hallows.
Seria verdade ou apenas impressão de que aqueles dois pares de olhos fanáticos acabavam de se encher de lágrimas? Jo abraçou-se ainda mais os papéis como se quisesse escondê-los entre os braços. Tinha medo que eles os vissem demais. Poderiam sofrer um ataque cardíaco.

— Será que a gente poderia —?

— Só – só por um instante —

— Um minutinho ou dois —

— O suficiente pra saber —

— Só o final, o final, o finaaaal —

— Sinto muito — ela era realmente boa em dar sorrisos educados —, mas não posso. Vocês vão saber de tudo em —

— NÃO! — o rosto de Beatriz se contorceu de fúria, e por pouco ela teria chegado à mesa não fosse o namorado tê-la segurado.

— Acalme-se, Bea — a voz dele era firme e resoluta.

— Eu – eu só – me perdoe — ela baixou a cabeça — Me perdoe, madame Rowling...

Claro, sua maluca, eu sei que você só quis me matar. Nada de mais.
— Eu só perdôo com uma condição — sumiu por baixo da mesa novamente, lacrando seu bebê antes que fosse tarde demais —, que vocês parem de me chamar por “madame”. É só Jo.

Aquilo que não a compelira a arrastar as duas figuras para fora de sua casa fora resultado de anos e anos de convivência com entrevistadores mal-intencionados e fãs aficionados demais. Escrever Dumbledore também tinha feito parte de sua terapia.

— Claro, Jo — suas bocas amarelas falaram em uníssono.

No fim, viu-se apenas respirando fundo e oferecendo uma xícara de chá – e depois não viu mais nada, porque quando chegou à porta sentiu o abajur afundando forte em sua cabeça, e tudo mais desapareceu.

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