Prólogo



“A experiência confirma nossa visão de que sonhamos
com maior freqüência com as coisas que centralizam
nossas mais vivas paixões."



Ele havia sonhado mais uma vez com aquela cena. E acordou assustado assim que tudo era engolido por um vazio negro. Respirou fundo e tentou tomar consciência de onde estava, do que estava fazendo.
Grande besteira! Foi apenas um sonho... Mas ele sabia que não era apenas um sonho: era a imagem que vinha lhe perseguindo há noites sem fim, desde uma época em que ele não conseguia recordar.
Ou sim, disse para si mesmo. Ele recordava quando os sonhos começaram a invadir a sua mente, quando aquelas imagens iniciaram seu ciclo de depertares no escuro. Desde que eu o conheci .
Remus Lupin levantou da cama e se dirigiu para sua escrivaninha bem arrumada. Todos os papéis se mantinham em demasiada ordem, como sempre havia sido. Desde muito pequeno, Remus tomou ordem como um cântico de liberdade, que deveria ser seguido e pronunciado em qualquer caso de descontrole. E ordenar seus pensamentos era o que ele mais queria naquele momento...
Passou os olhos sobre aquele livro que estava bem ao centro de sua mesa de estudos, e riu quando se lembrou do motivo que o fizera retirar aquele exemplar da biblioteca: interpretar seus sonhos. Pensou em quão verdadeiras as palavras de Freud eram e tentou se concentrar no último mantra de ajuda que conseguira formar: Sou responsável pelos meus sonhos.
Repetira, como em todo aquele último mês, a frase que tanto se orgulhara em conseguir formular. Mas agora já não tinha mais a mesma convicção inicial - a realidade era responsável pelos fatos dos sonhos, mas infelizmente, Remus não tinha poder nenhum sobre o mundo real.
Deixando Freud de lado, abriu uma daquelas gavetas que se estendiam pela parte inferior da escrivaninha, e tirou de lá um passaporte. Ele sentiu um solavanco e levou sua mão direita até a testa, enquanto brincava com aquele pedaço de papel entre os dedos da mão esquerda.
Aquelas letras que preenchiam seu visto lhe diziam apenas uma coisa: liberdade. Logo ele estaria longe da Inglaterra, longe de sua vida normal, longe dele. Ele sairia do país por causa daquele homem, fugiria do alance de suas garras e de seu olhar.
Largou o passaporte novamente na gaveta e voltou a se postar entre seus cobertores. Ele conseguiria fugir dele. Mas como fugiria de si mesmo?

~oOo~

- Senhores passageiros, o vôo A154 com destino à Paris irá decolar dentro de trinta minutos. Tenham uma boa viagem.
Terei, afrmou Remus para si mesmo.
Os ponteiros do relógio de Remus marcavam cinco e quinze. A escuridão da noite ainda não havia se dissipado, e Remus sentiu um calafrio quando olhou para o saguão de espera do aeroporto de Heathrow. Desejou ter escolhido um lugar menos movimentado para poder viajar, mas lembrou-se que estava fazendo uma viagem de passeio, e que as pessoas desconfiariam se ele simplesmente sumisse. Era melhor todos acharem que o jovem cirurgião Remus Lupin queria dar um tempo na sua tão ocupada vida, respirando os ares da Cidade Luz.
Segurou o carrinho de bagagens com mais força, e tentou se acalmar. Ele não precisava se preocupar, afinal. Não fizera nada de errado. Pelo menos nada que alguém soubesse. Fechou os olhos por alguns instantes, enquanto sua mente tentava dispersar aquele sentimento de que algo não estava saindo como ele planejara.
Deixe de idiotices, Remus Lupin! O que poderia sair do planejado? Tentou não imaginar o que estava acontecendo no Queen's Hospital, nas prováveis fofocas e nos cochichos solenes sobre sua pessoa. Remus sabia que seus colegas de trabalho o achavam extremamente estranho, para não dizer coisa pior. Ele nunca se importara em ser calado, calmo e um tanto taciturno. Na verdade, o jovem nunca gostou muito de popularidade e manifestações públicas. Era um dos melhores neuro-cirurgiões desta nova geração, mas nem por isso abondanara seu ar humilde e sua casa simples no subúrbio de Londres. Lupin sempre desejou ter uma vida calma, voltada ao propósito de ajudar os outros.
Passou a mão pelos cabelos castanhos e olhou mais uma vez ao seu redor. Queria, por tudo o quanto era sagrado, que sua vida se mantivesse naquele ritmo, que sua solidão não fosse assim tão comentada, nem tão especulada. Desejava nunca ter conhecido aquele sujeito. Desejou que as coisas nunca tivessem chegado àquele nível. Remus não queria ter se envolvido com ele. E, quem sabe, ele poderia ter poupado sua alma imaculada, sua tão nobre vontade de ajudar.
Fora a sua solidão que o tornara frágil ao ponto de se deixar conduzir por aquela vontade insaciável de seguir o que o outro dizia, de ser seu cúmplice. Ele se sentiu nojento, e se odiou por não conseguir afastar este sentimento. Sabia que tinha sido usado. Pior que isso: aquele homem havia brincado com seus sentimentos. Seu tolo sonhador!, repreendeu-se. Que seja a primeira e última vez que você acredita no que os outros dizem! Não existem boas pessoas neste mundo. Ele foi a prova disso...
- Passageiros do vôo A154 com destino à Paris, queiram se apresentar no portão de embarque número 5.
Remus olhou novamente no relógio e seguiu pelo saguão movimentado até o portão que era anunciado pela voz afetada daquela mulher, enquanto relaxava diante da perspectiva de deixar tudo para trás. Avistou seu destino e apressou o passo, empurrando com mais força sua bagagem. Não que o carrinho estivesse pesado, mas Remus sentia que suas forças estavam lhe abandonando.
Sempre fora um homem correto. Sempre pagara seus impostos, respeitava todos e dava dinheiro aos mendigos. Nunca partiu o coração de nenhuma moça - talvez apenas o da dra. Tonks -, nunca se metera em brigas. Por que fugia, então? Por que um erro manchava uma vida sempre muito dedicada? Remus achava que tinha uma chance de concertar o que fizera de errado, mas ele não tinha a capacidade de trazer ninguém de volta à vida...
Seu estômago revirou e ele se sentiu muito desconfortável. Ele matara. Isso não tinha perdão. E estava fugindo para conseguir livrar a sua pele antes que alguém descobrisse alguma relação entre a sua pessoa e a morte daquela mulher. Remus sabia que a descoberta seria uma questão de tempo, e sabia também que a culpa cairia muito mais sobre si do que sobre o outro. Afinal de contas, Remus era um médico, enquanto o outro era apenas um homem comum...
Um grupo de jovens atravessou seu caminho, bloqueando momentaneamente sua passagem e sua visão. Remus Lupin tentou desviar, mas logo estava no meio daquele fervilhão de adolescentes com carrinhos de bagagens, rindo e conversando alto. Com uma lamúria baixa, ele conseguiu se virar e sair daquela muvuca. Enquanto tentava se recuperar daquele lance de azar, Remus sentiu uma mão lhe prender o braço, apertando com força, estancando a circulação. Voltou o corpo de forma a encarar quem lhe impedia de continuar seu caminho com uma careta de grande insatisfação, preparando-se para reclamar. Sua expresão se desfez na hora em que seu olhar caiu sobre um par de olhos azuis acinzentados. Seu semblante mudou de irritado para apavorado quando reconheceu o homem de cabelos negros que estava lhe segurando. Sentiu as pernas ficarem bambas quando um sorriso se esgueirou bela beira dos lábio de seu opressor.
Mecanicamente seu queixo caiu quando o cheiro do outro invadiu sua narinas, indicando proximidade corporal. Remus fechou os olhos quando a voz rouca e afiada saiu dos lábios daquele homem alto.
- Ia fugir de mim, Remmie?
Remus sentiu uma onda de choque enquanto seu maior pesadelo virava realidade.


~oOo~

Uma pequena notinha sobre o nome da fic...
Lá estava eu, como toda pessoa dedicada, lendo A interpretação dos sonhos para complementar um estudo por curiosidade sobre sonhos, quando encontrei a palavra somnium, que se referia à uma classificação antiga feita para os sonhos que precisavam ser interpretados e que supostamente determinavam o futuro.

O trecho citado no início é de J. G. E. Maass, escrito no livro A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud.

Obrigada.

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