O que aconteceu em Nova York
Mesmo o apartamento sendo pequeno e apertado, ele suportou bravamente a reunião familiar dos Weeds, e todos conseguiram encontrar um lugar para dormir. Mas, mesmo vendo a sua família finalmente reunida novamente depois de tantas dificuldades, Mary não conseguia pregar os olhos. Por isso ela saiu do quarto que dividia com o irmão e foi para a cozinha se sentar no chão frio.
Por que simplesmente não conseguia esquecer o que Doumajyd lhe dissera? Desde que voltara de Nova York tinha decidido que o esqueceria, e quando estava finalmente conseguindo fazer isso, mas... Por que ela simplesmente não conseguia esquecer o que ele dissera?
Mesmo já tendo passado da meia-noite, ela pegou a sua esfera pensando em tentar falar com alguém. Sabia que não poderia contar com a Vicky, pois ela dormia como uma pedra e, mesmo se abrisse os olhos e falasse com a ela, não significaria necessariamente que a amiga estaria acordada. Então pensou em Ryan Hainault, com quem tinha evitado falar nos últimos dias. Porém não podia falar com ele sobre isso. Como falar com alguém que há poucos dias havia se declarado para ela que Doumajyd se declarara novamente para ela?
Mas, antes que terminasse esse raciocínio, a fumaça da esfera começou a girar, e logo a miniatura de Hainault estava lá.
- Mary? – perguntou ele a encarando confuso.
- Ah, desculpa! – disse ela com a reação imediata de jogar a esfera em baixo de uma toalha que estava ao alcance da sua outra mão.
Ela respirou assustada, tomando nota mental de nunca pensar tanto em uma pessoa quando estivesse segurando a esfera, ou isso poderia resultar em outra chamada inesperada como aquela.
Depois de algum tempo ela descobriu a esfera, verificando que ela estava novamente vazia, e pôde voltar a respirar direito, mas não menos aliviada.
Então, decidindo que o melhor a se fazer naquele momento era dormir, ela se levantou para voltar ao seu quarto, e no mesmo instante alguém bateu na porta.
Mary olhou por um tempo o vulto escuro pelo vidro esfumaçado, tentando reconhecer quem era. Quando a pessoa bateu novamente, ela achou melhor atender rápido antes que o barulho acabasse acordando seus pais.
- Boa noite. – cumprimentou a visita fora de hora.
- Por que está aqui? – perguntou Mary surpresa para o secretário da senhora Doumajyd.
- Me perdoe pelo horário, senhorita Weed, mas poderia me emprestar um pouco do seu tempo?
Mary o encarou desconfiada.
- Lhe garanto pela minha honra de bruxo que não vim a mando de qualquer um da família Doumajyd. Estou aqui por minha vontade e meu próprio risco, e quero apenas conversar... Poderia me acompanhar?
***
Depois de ter recebido a chamada de Mary pela esfera, Hainault se apressou em abandonar a sua prática de violino e aparatar perto do prédio onde ela morava. Porém, ao se aproximar da entrada dele, viu o secretário da senhora Doumajyd saindo e sendo seguido por Mary. Sem entender o que poderia ter acontecido, mas imaginando que seria algo relacionado com o líder dos Dragões, ele decidiu esperar. Se Mary precisasse da sua ajuda, ele estaria ali.
***
- Me desculpe por trazê-la nesse lugar. – disse Richardson assim que parou com Mary, um pouco afastado no prédio onde ela morava – Mas o senhor Christopher ainda não voltou para casa e temo que ele possa nos ver conversando.
- O que... o que quer falar comigo? – perguntou Mary, querendo que ele fosse logo direto ao assunto.
- Primeiro, eu preciso lhe perguntar: o senhor Christopher ainda é importante para a senhorita?
- Por que isso agora? – perguntou ela mais desconfiada.
- Porque o que vou lhe contar pode mudar totalmente a sua opinião sobre ele. Mas não pretendo fazer isso sem saber se está disposta a ouvir.
Mary olhou para o chão sem saber o que responder. Se o secretário tivesse feito essa pergunta antes daquela noite, ela poderia responder que ‘não’, sem hesitar... mas agora, ela já não tinha mais certeza.
Vendo a reação confusa dela, ele continuou:
- Aconteceu algo em Nova York. Algo que forçou o senhor Christopher a mudar.
Com isso, Mary já não poderia mais falar que não queria ouvir. Independente do fato de Doumajyd ainda ser importante para ela ou não, ela queria saber o que havia acontecido. Era isso que a atormentara por tanto tempo, desde que o dragão deixara de lhe contatar pela esfera quando estava em Nova York. Por isso, ela acentiu com a cabeça, para que ele começasse a falar.
- Em uma festa, – continuou o secretário – onde estavam reunidos grandes bruxos de negócios do mundo inteiro, o senhor Christopher falou algo impensado.
Mary quase soltou uma risada. Doumajyd falando algo impensado? Isso era praticamente normal.
- Sei que ele faz isso normalmente, – comentou o secretário, como se tivesse lido os pensamentos dela – mas naquela festa eram poucas as pessoas que o conheciam. Ele disse que nunca gostou da forma como a sua mãe insiste em fazer as coisas do seu próprio jeito. Pode parecer uma frase inocente, mas ela foi o primeiro passo para que alguns bruxos poderosos, que tinham aliança com os negócios da família Doumajyd, passassem a desconfiar da senhora Kheterin e rompessem contratos e acordos. E, quando essa notícia acabou vazando para a imprensa, tornou-se um escândalo irremediável. O próprio herdeiro Doumajyd não tinha confiança nos negócios da sua família. Por isso, esses negócios começaram a perder o seu prestígio.
- Tudo isso por causa de uma palavra do Doumajyd. – repetiu Mary, mais para ela mesma, pensando em como isso era típico dele, fazer tudo virar de ponta cabeça apenas com algo que dizia.
- Assim, a família Doumajyd entrou em crise, a primeira em gerações. Como uma medida emergencial, a primeira decisão da senhora Kheterin foi demitir os empregados das suas pequenas lojas, e logo uma das nossas produtoras de esferas na América, a de Nova York, teve que ser fechada também. O responsável dessa produtora era um antigo amigo do pai do senhor Christopher, Ken Cleanwater. Por isso ele sempre tratou o senhor Christopher como se fosse um filho. Desde que fora para Nova York, todos os domingos e várias noites da semana, o senhor Christopher era convidado para ir até a casa do senhor Cleanwater. Ele tinha uma esposa adorável e dois filhos, um menino e uma menina ainda bebê. O senhor Christopher era capaz de suportar a distância da senhorita e os seus problemas com a mãe por sempre poder contar com essa família para animá-lo. Porém, com a demissão, os Cleanwater não conseguiram se reerguer, e a situação deles começou a piorar. Por estar sobre a pressão da senhora Kheterin e pelas conseqüências do que havia feito, o senhor Christopher foi proibido de ajudá-los. Então, depois de ter se separado da esposa e dos filhos, e de começar a viver como um mendigo em Nova York, o senhor Cleanwater veio até o escritório da senhora, pedir qualquer emprego que fosse, mas novamente foi recusado... E, em desespero, ele acabou com sua vida diante do senhor Christopher.
- O quê? – perguntou Mary surpresa.
- O senhor Christopher não conseguiu chegar a tempo no terraço do prédio e o senhor Cleanwater pulou... culpando o senhor Christopher pelo que lhe acontecera.
Mary começou a se sentir inquieta, mas sabia que ainda havia mais coisas para serem contadas, então esperou impaciente que o secretário continuasse:
- Depois disso, o senhor Christopher mudou. Acredito que ele percebeu que ser o herdeiro Doumajyd não é apenas ter as regalias de estar no topo da sociedade bruxa, mas sim de ter a responsabilidade por milhares de vidas que dependem dos negócios da sua família. Como a senhora Ketherin disse, ele finalmente havia tomado consciência da sua posição e do que ele deveria ser no futuro. Assim, o senhor Christopher tentou mudar e se tornar mais sério e responsável. Por isso ele tentou ao máximo se esquecer de você, senhorita Weed, e pensar somente nos negócios da família. Mas... você foi até ele em Nova York, e isso abalou a determinação dele em esquecê-la. Ele não conseguiu mais enganar a si mesmo e mentir para seus próprios sentimentos.
- Mas... mas vocês não são completamente contrários a nossa relação? – perguntou Mary confusa.
Depois de ouvir tudo aquilo, ela entendeu que o secretário estava de alguma forma a ajudando. Ao contar algo que ela não ouviria do próprio Doumajyd, e a esclarecendo sobre o que acontecera em Nova York para que o dragão esquecesse da promessa que fizera para ela antes de partir, ele tinha definitivamente a intenção de ajudá-los a se reconciliarem.
Com a pergunta dela, o bruxo deu um pequeno sorriso e disse:
- Creio que já deve ter ouvido isso antes, senhorita Weed: somente quando está com você, o senhor Christopher se torna mais humano. Falando como alguém que acompanhou o seu crescimento e sempre esteve ligado aos negócios da família Doumajyd, acredito que esse lado bom do senhor Christopher pode influenciar a comunidade mágica e torná-la mais justa. É assim que eu gostaria que aquele que irá reger os rumos da Comunidade Mágica agisse... Pode me entender?
Ela o entendia perfeitamente. Se o próprio secretário da toda poderosa senhora Doumajyd não aprovava a maneira como ela agia e queria que o filho fosse alguém melhor que a mãe, quem era ela, uma simples nascida trouxa, para julgar?
- No momento, a senhora Doumajyd está de volta à Nova York. Eu também irei partir amanhã. Mas o senhor Christopher ainda irá permanecer na Inglaterra por tempo indeterminado, justamente por causa da crise. Então... espero que a senhorita agora possa tomar uma decisão em relação ao quão importante o senhor Christopher é para você, pois ele já se decidiu... Porém, tomem cuidado, a senhora Kheterin está sempre alerta, e não irá descansar enquanto ainda puder interferir na vida do filho... Obrigado por me ouvir, senhorita Weed, e me desculpe novamente por importuná-la nesse horário.
- Não... não foi incomodo. – respondeu Mary baixinho, não conseguindo pensar em mais nada para dizer diante de todas as informações que ouvira e que ainda tentavam se organizar em sua mente.
***
- Christy! – exclamou Doumajyd assim que a miniatura da irmã, um tanto sonolenta, apareceu na fumaça da sua esfera.
Depois de andar por muito tempo pelas ruas de Londres, já não tão certo se deveria voltar para casa e enfrentar a fúria da mãe, ele decidiu que deveria falar com Christinne.
- Chris! É sério que você saiu de casa?! – perguntou ela aproveitando a oportunidade.
- Sai! – respondeu ele orgulhoso – Na verdade eu estou morando no apartamento ao lado da Weed... E é sobre isso que eu quero falar... Você poderia me dar uma força?
Quando terminou de contar tudo que havia feito, Christy o encarou e disse:
- E você agora vai sair de lá? Negativo! Volte para perto dela! Não se atreva a voltar para a mansão! A mãe voltou para Nova York, mas ela deve ter deixado ordens bem claras com a Nana a respeito do seu herdeiro fujão. Então não volte ainda!... Amanhã eu entro em contato com você novamente depois de pensar em alguma coisa... Agora eu posso voltar a dormir, irmãozinho?
Doumajyd deu um grande sorriso e se despediu dizendo:
- Você é genial, Christy!
***
Mary estava voltando para o seu prédio, totalmente perdida em pensamentos, quando uma voz chamando quase fez com que sua alma saísse pela boca.
- Ma-ry-Ann!
Ela procurou em volta e avistou Ryan Hainault escorado em um murro com as mãos nos bolsos no casaco, em uma típica pose de quem esperava pacientemente.
- O-o que acontece? Por que está aqui? – perguntou ela surpresa por vê-lo.
- Você me chamou pela esfera, não foi? – respondeu ele deixando o muro e vindo até ela.
- Ma-mas foi sem que-
- Aquele era o Richardson, não era?
Mary limitou-se a confirmar com um aceno de cabeça. Não havia como inventar uma desculpa sobre o fato de ela ter falado com o secretário se o próprio dragão o vira. E também não havia como mentir sobre o assunto da conversa, já que havia somente uma coisa em comum entre os dois: Christopher Doumajyd.
- Aconteceu algo? – perguntou Hainault parecendo preocupado.
Novamente ela apenas balançou a cabeça em negação, procurando ao máximo não olhar diretamente para ele. Percebendo essa atitude disfarçada dela, Ryan deu um sorriso e a convidou:
- Quer ir passear?
- ...Mas é de madrugada! – exclamou ela depois de processar o convite dele.
- Então não quer... – disse ele desapontado.
- Me desculpe, Ryan. – falou ela com um grande suspiro – Me desculpe por não poder falar com você agora, mas eu estou muito confusa. Eu realmente-
Ela não pôde terminar de falar, porque ele a abraçara forte.
- Será que você vai ficar mais confusa se eu fizer isso? – perguntou ele e logo em seguida avançou para beijá-la.
Assustada, Mary se encolheu. Diante dessa reação, ele desistiu e a largou, dizendo:
- Então, por favor, volte a falar comigo quando não estiver mais confusa, Mary. – e desaparatou.
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