Parte III - versão 2
Ela se fora.
Ele mesmo lhe abrira o portão e a deixara simplesmente ir, esvoaçar de volta para sua tão amada liberdade. Num momento de arroubo, de enlevo profundo pelos olhos verdes e falsas promessas de retorno e submissão àquela que controlava sua vida. E como havia errado. Não teria mais volta, ele simplesmente sabia. Houvera um ano inteiro de convivência, e mais, de dependência mútua. Mas agora, nunca mais Lily. Nunca mais seus olhos, sua presença, sua boca, seu corpo o recebendo em noites ardentes e desesperadas. Nunca mais aquela forma que só ela possuía de ver as menores coisas que valiam a pena, nele. Nunca mais se sentir alguém. Ele morreria, definitivamente morreria, agora que sabia o que era viver com ela. Não, não, agora que sabia que "viver" só era possível com ela. De outra forma, era apenas arrastar-se sobre a terra. Gemer alto nas solitárias horas negras da madrugada, da mais pura dor da ausência. Vagar como um inferi pela casa, exatamente da mesma forma como ela havia feito há pouco mais de um ano, repetindo seus passos por sobre o labirinto de folhagens do tapete, sentindo-se tão morto quanto ela havia se sentido então.
Às vezes, no meio dos delírios mais enlouquecedores, via-se indo até ela e arrastando-a contra a vontade de volta para sua vida, mas sabia que jamais seria capaz. Desde o começo tinha havido o orgulho, talvez algum outro sentimento, que sempre o impedira de tomá-la à força, por mais poções e magia negra que conhecesse.
E nada havia mudado.
Estava só, e louco, abrindo e fechando portas atrás dela mas encontrando apenas o vazio.
*
Qual era, afinal, a razão para continuar fingindo?
Para continuar vivendo?
Oscilava entre a raiva mais profunda e a total indiferença. Abaixou o braço que empunhava a varinha quando deveria matar. Sua vítima, um trouxa qualquer cuja importância para os planos do Lord ele sequer fizera questão de descobrir, piscou, por um momento ainda aturdido, sem acreditar na sua sorte. Então ergueu-se e correu, com as pernas ainda trêmulas de dor.
"Simplesmente escapou," Severus disse mais tarde ao Lord, sem demonstrar culpa alguma na voz indiferente.
Petulante. Traidor. Não se arrependendo por um instante de frustrar os desejos de seu mestre. O Comensal favorito, aquele com quem sempre pudera contar, de repente, encontrava outro mestre. Mas não se encerrava assim, de forma tão inconseqüente, toda uma vida de serviço. Torturou o desertor com as próprias mãos. Reduzi-lo-ia a nada, a um farrapo. Acorrentou-o, nu, à parede de uma masmorra, sem água e alimento por quatro dias seguidos, de forma que a simples visão de um pão embolorado deveria despertar súplicas. Mas não, nem aquilo. Pensava, então, ver um sorriso de escárnio nos lábios dele, e Maldições de Dor foram ouvidas durante toda a noite, sem, no entanto, encontrar eco em um único gemido que fosse.
*
Porque nenhuma tortura era maior, ou mais verdadeira, do que a ausência dela.
*
Mas o Lord, no final, era generoso e não mataria, ainda, o traidor. Jamais encontraria outro Comensal tão competente, de forma que, para seus próprios objetivos, haveria uma segunda chance.
"Você se arrepende, Severus Snape", a voz suave sibilou junto a seu ouvido, "se arrepende de ter desobedecido a seu único mestre?"
Mas era claro que ele não havia desobedecido. Havia cumprido os desejos dela, até o fim.
"Faço o que o mestre ordenar", Severus respondeu. "Sempre."
Voldemort afastou os cabelos do rosto mais magro do que nunca e escaneou-o com os olhos. E porque seria uma invasão, e seria macular sua única luz, porque jamais permitiria que mesmo a lembrança dela entrasse em contato com tanta imundície, fechou sua mente, e tudo o que Voldemort viu, no final, foi o grande nada. Não pensar, não desejar, apenas um grande quadro vazio onde ele mesmo pudesse escrever o que deveria ser feito.
Deixou-o ir.
*
Por que o Lord não o matara de uma vez? Não queria outra chance, não queria recordar-se da ausência dela a cada dia infinito, queria apenas arrastar-se até um canto e receber a bênção do esquecimento - porque morto, ele já estava.
Os jardins estavam cobertos por um manto branco que ele mal notou quando os atravessou, em passos apressados. Galhos negros e retorcidos estendiam-se como mãos angustiadas e suplicantes. Subiu mancando a escada, tinha uma perna quebrada mas mal a notava. Instintivamente como um animal buscou o quarto que costumava ser dela, desabou dentro do guarda-roupa, que ainda conservava metade dos vestidos que havia comprado - e absolutamente todo aquele perfume fantástico que ela possuía. Não poderia haver túmulo mais perfeito, cercado por todos os lados de lembranças e da máxima presença de Lily que ele podia obter.
Ainda sentiu algo viscoso escorrendo por sua perna antes da escuridão o engolir, sem que nem percebesse haver fechado os olhos.
*
Ela estava de volta e apenas sua mão estendida era o suficiente para curar suas feridas e colocá-lo de pé outra vez.
*
Ela estava acorrentada, nua, à parede coberta de musgo de uma masmorra. E o Lord a torturava. E o Lord era ele.
*
Potter se erguia do túmulo, a pele ressequida pendendo do esqueleto como bandagens, as órbitas dos olhos, vazias, conhecendo todos os segredos do além-vida e contava toda a verdade a ela. Lily o perseguia até o inferno, vingativa como um anjo da morte, a cabeleira flamejante eram suas asas e os olhos sua espada.
*
Potter jamais havia morrido e tudo não tinha passado de um sonho.
Estava só outra vez, agora e sempre. Só, clamando por ela em seus últimos instantes.
Mas ela não viria, jamais estaria ali, jamais tinha estado ali, havia sido apenas um violento devaneio de um homem tolo, frágil e apaixonado.
*
Ela estava de volta e era o anjo.
*
O anjo segurou seu rosto de forma decidida, deu-lhe um tapa, ele deixou escapar um lamento de dor.
"Severus", a voz ordenou, chamando-o de volta à vida. "Severus", ela repetiu, afastando seus cabelos sujos para trás e forçando suas pálpebras a se abrirem - porque ele mal tinha forças para tal. Então a luz invadiu suas pupilas mas estava longe de ser a do sol - ou antes, era seu sol, era a luz dos olhos verdes o fazendo renascer. Ergueu os braços débeis tentando segurar-se nela, tão frágil, tão dependente...
"Lily", ofegou, ainda sem acreditar que era ela, ali, mas tudo, seu cheiro mais real do que nunca, a voz soando fora e não dentro dele, tudo dizia que era real e não mais um dos incontáveis delírios.
"Mas o que é isso, Severus? Que droga é essa?", ela perguntou, e estava à beira das lágrimas, agora, ao mesmo tempo em que a ira em seu tom de voz aumentava.
"Lily", e quanto a ele, decididamente chorava enquanto passava os braços fracos ao redor do pescoço dela e se atirava em sua direção, se aninhando como um bebê junto ao corpo quente e macio.
*
"Mas o que foi que aconteceu?", ela inquiriu, furiosa e assustada, enquanto o despia e curava suas feridas.
"Você me deixou", ele murmurou, de olhos fechados outra vez, mas agora, da mais pura satisfação, entregue às mãos dela e, a mais que isso, à presença que agia como um bálsamo.
"Fico longe por uma semana e você consegue se acabar dessa maneira? Severus!", ela chamou outra vez, porque ele mergulhava mais uma vez rumo à inconsciência. Sentiu então um cálice sendo pressionado contra seus lábios e engoliu uma bebida amarga, extrato de artemísia em seu estado puro e concentrado. A bebida fazia sua parte interiormente, purgando restos de veneno e limpando seu organismo, enquanto Lily cuidava de seu corpo e sua alma, fechando feridas com a varinha e uma poção, enfaixando sua perna, beijando sua boca, por fim.
"Foi ele, não foi?"
Ela não precisava de resposta alguma para saber.
"Vê como não vale a pena, Sev? Vê só? Não vale, digo que não vale!"
Não, não valia, a única coisa que valia apenas tê-la em sua vida, para sempre.
Era uma decisão irrevogável.
*
Abriu os olhos lentamente, e também muito devagar sua visão entrou em foco. Ela estava ali, na cama ao lado dele, o rosto apoiado em uma das mãos, fitando-o muito séria e preocupada. Sorriu quando o viu acordar, estendeu a outra mão, acariciou seu rosto.
"Não posso perder você também, Sev. Não faz isso de novo. Por favor."
Ele se espreguiçou, quase inteiro outra vez. Sorriu preguiçosamente, passou um braço em volta da cintura dela, trazendo-a para junto de si. Como podia existir aquela mágica tão grandiosa, que expulsava as trevas mais impenetráveis, que transformava os pesadelos em sonhos, aparentemente sem fazer esforço algum?
Ela estava de volta. Severus, se soubesse como, seria capaz de cantarolar uma canção naquele exato instante. Mas tudo o que fez foi deixar os lábios pousarem sobre a testa alva, bem na linha exata onde os fios vermelhos brotavam. Beijá-la. Confessar:
"Você não sabe, Lily? Nunca vou deixar você. Nunca."
Ela deixou escapar um pequeno suspiro de satisfação, aconchegou-se junto a ele apenas para se afastar logo em seguida - tão inquieta como ele conseguia se recordar dos velhos tempos. Ele sorriu mais uma vez.
"Eu amo você, Sev. Amo mesmo."
Ele não pôde evitar uma cobrança:
"Por que demorou tanto pra vir?"
Ela sacudiu a cabeça, impaciente, e franziu a testa.
"Tanta coisa pra fazer... uma vida toda pra reconstruir...", e acrescentou, com a voz levemente embargada. "Toda a burocracia da herança pra resolver..."
Ele a abraçou outra vez, para que ela não lesse a culpa em seu rosto.
"Se quiser voltar...", ele sugeriu, agarrando-se a um fiapo de esperança.
Sentiu a cabeça dela se movendo negativamente junto a seu peito e se afastando outra vez.
"Não. Preciso mesmo seguir em frente. Eu... vou ser eternamente grata a você, Sev. Não imagina o quanto... Você me mostrou o caminho... duas vezes."
Ele a imitou e se apoiou sobre um braço, então, beijou-a de leve nos lábios.
"Não foi nada, Lily. Faria de novo, quantas vezes fosse preciso."
"Me sinto tão... ingrata, por ter deixado você."
"Tudo bem", ele sussurrou, baixando a cabeça.
"E eu disse", ela continuou, agora com mais energia, "isso não vai acontecer de novo. Olha", ela pediu, alcançando um pedaço de pergaminho e uma pena no criado mudo, e escrevendo alguma coisa. "Meu endereço. Quero... quero que você vá me ver, Sev."
Ele piscou, tentando compreender tudo o que aquele gesto significava.
"Está... está falando sério?"
Ela riu.
*
Sabia que era idiota mas não podia se sentir de outra forma que não fosse extremamente ansioso. Corpo e mente não paravam quietos, ora conferindo a imagem, ajeitando a roupa pela milésima vez, tentando adivinhar o futuro pela milésima vez. Ajeitando os pensamentos e repassando o que diria a ela. Como se fosse a primeira vez. Como se não já houvessem tido mais de um ano inteiro de convivência estreita. Como se tivesse de conquistá-la - porque era exatamente o que teria de acontecer, agora, Lily não estava mais sob seu poder, possuía outra vez os pensamentos próprios, tudo estaria se desenvolvendo sem o apoio seguro dos artifícios e mentiras e da redoma confortável que havia criado para eles dois. Ajeitou o cachecol de um verde muito escuro em torno do pescoço, alisou a capa nova de lã preta, passou a mão pelos cabelos. Recebeu uma dose extra de adrenalina quando os passos dela se fizeram ouvir por detrás da porta, e ainda outra quando a pesada peça de madeira maciça girou. Então, todo seu corpo se paralisou por um instante.
"Sev", ela disse, e sorria, de forma tranqüila mas absolutamente segura de si.
Ele suspirou e então, seu coração voltou a bater. Ainda meio inseguro quanto ao que fazia ergueu ambas as mãos, apoiando uma nas costas dela e a outra, em sua cabeça, enredando os dedos nos fios vermelhos. Ela ficou na ponta dos pés e lábios se tocaram, colaram-se uns aos outros, demoraram a se separar, sorvendo o gosto tão familiar e necessário como sangue.
Ele se sentia tão inseguro enquanto subia as escadas atrás dela, reparava então que não passava de um jovem imaturo e inexperiente, que fazia, pela primeira vez na vida, uma visita corriqueira à mulher que amava, e ele mal sabia como agir naquelas circunstâncias. Mas Lily, como sempre, tornava tudo tão fácil como se lesse os pensamentos dele e não usasse tal vantagem para se impor ou humilhar, mas para curar, mais uma vez, suas feridas.
*
Os dois cálices de vinho jaziam esquecidos sobre a mesa de centro.
"Vamos falar a sério."
"As coisas não são tão simples", ele suspirou, baixando a cabeça e fitando as próprias mãos cruzadas sobre as pernas.
"Quero você, Severus", ela disse, estendendo um pé nu e alcançando a perna dele, acariciando-a por cima da calça.
Ele suspirou outra vez, da mais pura dor da incerteza.
"Você tem... alguma dúvida quanto à minha resposta?"
"Quero ouvir", ela provocou, arrastando-se sobre as almofadas cor de ameixa até estar a poucos centímetros dele. Então, os lábios carnudos sugaram o ar de dentro dele junto com as palavras:
"Preciso de você. Mais de que qualquer outra coisa."
"Então vem comigo?"
Ele baixou a cabeça outra vez.
"Já disse que vou lutar, nem que tenha de fazer isso sozinha."
Olhos negros confusos e suplicantes se ergueram.
"Isso é loucura..."
"Loucura é deixar tudo como está e cruzar os braços. Este simplesmente não é o estado natural das coisas", ela franziu a testa e apontou para a janela. "A tempestade sempre ameaçando despencar. As pessoas andando aterrorizadas pela rua, mesmo quando precisam apenas ir até à esquina comprar um pão. Pais e mães e filhos e irmãos simplesmente desaparecendo e sendo mortos sem explicação, sem justiça..."
"Mas não consigo ver nenhuma forma de vencer, Lily..."
"Sempre há um jeito", ela disse, e parecia tão segura de si mesmo que ele até poderia acreditar nela se não conhecesse tão bem o Lord e sua sede por poder. "Só precisamos encontrá-lo."
Severus sentiu a mão dela em seu rosto, forçando-o a encará-la durante todo um infinito minuto de silêncio. Ergueu a própria mão, acomodando-a sobre a dela, menor, mais delicada, tão suave e feminina. Parecia tão certa sua mão sobre a dela, suas pernas se roçando como agora, olhar para nada mais além dos olhos dela.
"Então. Que lado você escolhe, Severus?"
O dela. Para sempre.
"Mas não sei o que eu poderia fazer..."
"Vamos pensar em alguma coisa, mas por enquanto", ela disse, e se aproximou mais. Beijou-o. "Seja o melhor Comensal que puder."
*
Voldemort sorriu.
Era mesmo muito sábio.
Tudo de que Snape precisava era mesmo de um pequeno lembrete. E ali estava seu Comensal mais competente, agindo exatamente como ele esperava, outra vez.
*
Ele não podia deixar de sorrir e de sentir alguma coisa, velhas convicções, talvez, se partindo dentro dele. Ela estava ali, procurara-o por vontade própria, uma, duas, três vezes. Era o pequeno gesto corriqueiro de passar a mão pela cintura dele, tão calmamente, tão naturalmente, enquanto conversavam assuntos banais sobre o preparo de uma poção, que decidia tudo. Também a forma como ela parecia se deliciar com a mão dele afagando seus cabelos enquanto simplesmente apreciavam o pôr-do-sol por sobre os montes nevados.
Mas era tudo ainda tão incerto, e tão indefinido. Ele se sentia caminhando constantemente sobre gelo fino, que poderia se partir a qualquer momento.
E não havia a menor pista do que poderia haver debaixo daquele gelo.
*
Ele quase podia crer que eram um casal como outro qualquer - quanto a ela, acreditava cegamente naquilo. Que deus abençoasse sua ignorância, ele pensou. Valia a pena, não valia, mantê-la exatamente daquela forma, cega, e vê-la sorrindo daquela forma para ele? Feliz e viva outra vez? A casa estava quente e aconchegante, a lareira acesa, os perfumes da ceia de Natal que assava no forno coroando toda a cena doméstica com perfeição.
Até quando aquilo tudo duraria?
Suspirou. Aquela noite, pelo menos, estava garantida - e quanto ao dia seguinte, seria um novo dia, uma nova luta, um novo agarrar-se ao improvável.
"Foi impossível encontrar um presente, Sev, com o racionamento", ela acabou confessando desolada.
Era piegas demais, de forma que ele não diria que o único presente que gostaria de ter ele já possuía, estava ali em seus braços. Então, ele apenas disse suavemente:
"Você sabe que essas coisas não importam, nunca importaram pra mim."
"Então não posso aceitar isso", ela empurrou de volta a pequena caixa de veludo que ele lhe oferecia.
"Ora, isso não é nada, Lily", ele replicou, colocando as mãos sobre as dela de forma que a caixinha ficasse ali bem presa. "Aceite", ele disse, e seus olhos pareciam tão decepcionados com a possibilidade contrária que ela suspirou, concordando, e abriu a caixa.
Um medalhão, daqueles que se abrem ao meio, permitindo guardar pequenas coisas preciosas em seu interior. Em instantes, a jóia foi preenchida por vermelho e negro, entrelaçados, e dois sorrisos cúmplices foram trocados.
"Verde", ela disse, fechando o medalhão e notando seu exterior.
Ele respondeu com um murmúrio de concordância, então, respirou fundo e pareceu corar levemente ao acrescentar:
"Como... como seus olhos."
"E a cor da sua maldita Casa", ela disse, segurando o riso.
Os cantos da boca dele se curvaram minimamente para cima por um breve instante.
"Sorria", ela pediu.
"Não", ele replicou, e seus cabelos acompanharam o movimento negativo de sua cabeça. "Não sou muito bom nisso, você sabe."
"Ah não, não sei de nada", ela respondeu, estendeu a mão direita e fez cócegas na cintura dele. Ele tentou se esquivar, ela foi mais rápida e jogou-se selvagemente sobre ele, caindo ambos sobre a cama e ela conseguiu o que queria: uma risada dele, ainda que uma risada curta. Ele, então, abraçou-a tenazmente, agarrando-se à vida com a qual sempre sonhara e que, ao contrário de todas as apostas, estava ali, acontecendo. Ela suspirou junto a seu peito quando as mãos dele deslizaram sobre os cabelos dela, ainda tão longos, tão maravilhosamente vermelhos. Tão belos de se olhar, principalmente agora, quando eram o único adorno do corpo que ele despia.
*
"Simplesmente me cansei, Lestrange", ele disse, indiferente. "Ela virou um bagaço - porque a manteria comigo?", Severus respondeu, tentando colocar um fim definitivo às prguntas do Comensal sobre seu prêmio.
"Bem, ela era um pedaço de mulher."
"Era", Snape concordou, secamente.
Havia acontecido uma pequena reunião em sua casa naquela tarde. Era algo que ele detestava, certo, mas um pequeno mal necessário para manter as aparências. Lily nunca fora vista em nenhum dos encontros, mas a visão do quarto que costumava ser dela, vazio, levantou suspeitas.
"A ruivinha não agüentou o fogo do velho Snape!", alguém exclamou, dando-lhe um tapa nas costas.
Severus sorriu, nauseado. As risadas selvagens ecoaram, até que a voz suave do Lord ordenou que se calassem, e chamou a si seu Comensal favorito, para incubi-lo de uma tarefa precisa e detalhada da qual apenas ele seria capaz.
*
"É uma surpresa", ela disse, ansiosa e feliz, assim que abriu a porta de um lugar misterioso, perdido entre as mais altas montanhas da fronteira com a Escócia, para o qual ele fora intimado a ir, via coruja, apenas meia hora atrás.
"O que é, Lily?", ele perguntou, franzindo a testa e se contaminando com a felicidade dela, de forma que acabou sorrindo, também.
"A melhor coisa que poderia ter acontecido, Sev", ela continuou, depois de beijá-lo, seguindo pela casa estranha escura e cheia de corredores como um labirinto, com Severus em seus calcanhares. "Mas não vou dizer, tem de ver por si mesmo para acreditar."
Ele passou vagamente algumas hipóteses, mas nada poderia ser muito significativo... Lily era uma pessoa animada por natureza, não era mesmo? Não devia ser nada que o afetasse tanto, apenas alguma loucura qualquer que ela devia ter inventado.
Mas não era. Era realmente a coisa mais inacreditável, a última que ele poderia esperar e deixou-o paralisado por um instante enquanto toda a história de um com o outro acontecia outra vez em sua mente.
"Severus", disse a voz fraca da figura deitada sobre a cama. A iluminação era pouca. Ele estava magro, a barba e o cabelo prateados mais compridos do que nunca. Mas é, era mesmo Albus Dumbledore.
*
"Não me mate!"
"Não era a minha intenção", Dumbledore replicou, tão calmo que soava quase indiferente, as vestes drapejando contra o corpo, arrastadas pelo vento intenso daquela noite.
Severus torcia as mãos, parecia meio demente, com os cabelos negros desgrenhados voando em torno da cabeça.
"Venho... venho com um pedido", cuspiu as palavras com dificuldade através da garganta seca.
"Que pedido poderia um Comensal da Morte fazer a mim?", o velho perguntou, parecendo tão senhor de si como sempre.
"A... a profecia. O vaticínio. Trelawney."
"Ah, sim. Aquilo. Quando daquilo relatou a Lord Voldemort?"
"Tudo... tudo que ouvi", respondeu Snape, o desespero crescente visível em cada mínimo gesto angustiado, olhos, mãos, palavras atropeladas. "É por isto... é por esta razão... ele acha... Dumbledore, ele acha que se refere a.. Lily... Lily Evans. O filho dela, ele vai matá-la... matar a todos...!"
"Se ela significa tanto para você", Dumbledore disse, "certamente Lod Voldemort irá poupá-la, não? Você não poderia pedir a ele misericórdia para a mãe em troca do filho?"
"Pedi... pedi a ele...", Severus ofegou.
"Você me dá nojo", o velho disse, com a voz carregada de desprezo.
Severus se encolheu.
"Você não se importa, então, com as mortes do marido e do filho dela? Eles podem morrer, desde que você tenha o que deseja?"
Severus sacudiu a cabeça, impaciente, desesperado a ponto de enlouquecer.
"Esconda a todos,então", suplicou, com a voz rouca. "Mantenha ela... eles... em segurança. Por favor!", ele se ajoelhou aos pés de Dumbledore, agarrando a barra de sua capa.
"E o que me dará em troca, Severus?", Dumbeldore perguntou, tão calmo quanto o outro se encontrava desesperado.
Snape boquiabriu-se.
"Em... troca?", pensou por um longo tempo. Então disse: "O que quiser."
*
"Dumbledore", Snape disse, calmamente, curvando a cabeça em um cumprimento e se aproximando, parecendo muito seguro de si mas escaneando o velho com os olhos o tempo todo, tentando descobrir o que queria, do que se lembrava, e então, olhando de esguelha para Lily, o quanto havia dito a ela. Permitiu-se relaxar um mínimo; à parte toda sua excitação, ela parecia exatamente a mesma da última vez em que haviam estado juntos.
"Dumbledore", Snape repetiu. "É, ah... uma surpresa e tanto ver o senhor outra vez", ele disse, tentando dar uma entonação mais viva à voz.
"Digo o mesmo, Severus", o velho replicou, tentando acomodar-se melhor sobre o colchão macio, gemeu e Lily correu a ajudá-lo. "Depois do que passei... nesse último ano..."
Snape parou a alguns passos da cama e olhou para Lily, erguendo uma sobrancelha. Ela pareceu brava quando respondeu:
"Voldemort."
"Voldemort?", Severus perguntou, atônito. "Mas eu nem fazia idéia..."
Dumbledore tentou dizer alguma coisa, se engasgou, tossiu. Lily bateu gentilmente em suas costas, deu a ele um copo de água, então, o velho disse:
"Não se culpe. Era para ser um segredo... me torturou... atrás de qualquer mísera pista", interrompeu-se, tossiu outra vez, "Forjou minha própria fuga para me desacreditar perante a comunidade bruxa e a própria Ordem. Mas", tossiu mais uma vez, "consegui escapar. Fawkes. Estou de volta. E sei... sei...", e tornou a tossir sem parar.
Lily disse a ele que tivesse calma, tinham agora todo o tempo do mundo para ouvir o que ele tinha para contar e que devia, antes de qualquer coisa, dormir um pouco. Severus apenas ouvia, calado, o cérebro funcionando velozmente em busca de rotas de fuga. O velho, extremamente abatido, acabou por seguir os conselhos de Lily. Adormeceu.
Ela então se aproximou, radiante.
"Viu só, Sev? Sempre há um jeito", ela disse, envolvendo a cintura dele com os braços e apoiando o rosto em seu peito.
"Sempre, meu amor", ele concordou, com a boca colada aos cabelos dela, abraçando-a, mais possessivamente do que nunca, enquanto, por sobre o ombro dela, fitava sombriamente a figura esquálida adormecida na penumbra.
*
Tentou parecer normal mas falhou, algo devia pesar em seu semblante.
"Severus?"
"Não é nada, Lily", ele murmurou, com o olhar perdido no nada.
"Aconteceu alguma coisa", ela insistiu, franzindo a testa. "Você está preocupado, não mente pra mim, conheço você..."
Ele suspirou. E ao contrário do que ela acabara de pedir, contou uma mentira ainda maior.
"Estou. Mas são assuntos... do Lord. Ele... suspeita de que há um espião entre os Comensais."
Ela arregalou os olhos e tapou a boca com as mãos.
"Mas isso é terrível, Severus!"
"Demais", ele suspirou, franzindo a testa. E estava ficando tão bom em mentir, que deixou transparecer toda sua preocupação com o inesperado retorno de Dumbledore. Foi tão fácil fazê-la acreditar.
Mas aquela havia sido apenas a primeira pequena batalha de uma enorme guerra; da mais difícil missão de sua vida: não deixá-la desconfiar, jamais. Não deixar toda a confiança reconquistada, o amor, simplesmente se perderem.
Não agora que havia decidido que era apenas a ela quem importava, quem queria, a quem dedicaria sua vida.
*
"Ele errou", Dumbledore disse, e jogou a cabeça para trás, gargalhando. Sua risada era fraca mas sincera, originada da mais pura alegria.
Lily se acomodou melhor em sua cadeira, inclinando-se para a frente, extremamente interessada. Severus permaneceu exatamente como estava, imóvel, apenas observando. Duas semanas haviam sido o suficiente para recuperar quase que totalmente o velho líder. Apenas um leve manquejar, contornado com o auxílio de uma bengala, denunciava todo o horror que havia passado. E os olhos azuis brilhavam exatamente como sempre haviam feito enquanto contava-lhes a grande falha, afinal, que Lord Voldemort cometera: em sua ânsia pela imortalidade, tentara arrancar do velho tudo o que este sabia sobre o assunto. E no afã de demonstrar a própria genialidade, acabou contando-lhe seu mais precioso segredo, a forma mais ardilosa que havia encontrado de prender, à força, sua existência a este plano: partir a própria alma em pedaços, escondendo cada um deles em um objeto, um horcrux.
*
Os olhos azuis brilharam ainda mais, de forma perspicaz, ao notar as mãos dadas sobre a mesa.
*
Era impossível desviar os olhos das mãos unidas. E impossível deixar de notar aquele olhar fixo. Lily acabou por confirmar as suspeitas:
"É, estamos mesmo juntos", ela disse, apertando a mão de Severus sobre a mesa.
Dumbledore estreitou os olhos por um instante, mas então trocou a expressão desconfiada por um sorriso, e disse:
"Ora, bastante inesperado, devo dizer. Mas desejo... felicidades aos dois."
"Obrigada", Lily sorriu. "Ele está sendo tão maravilhoso, Dumbledore", ela disse, olhando para Severus e sorrindo. "Me salvou..." Este desviou os olhos, ocultando seu constrangimento com os cabelos que lhe cobriram o rosto.
"Severus realmente possui características louváveis. Fico feliz que esteja trilhando o caminho certo... achei que estivesse perdido há muitos anos, mas sua sábia troca de lados mostra o quanto me enganei..."
"Todos nós", ela se apressou a acrescentar. "Simplesmente não acreditei quando Severus me contou, ele pediu mesmo ao senhor para salvar... você sabe, James. E Harry", ela disse, com um pequeno tremor na voz, ao que Snape prontamente a abraçou.
"É, ele realmente pediu", Dumbledore disse, com expressão neutra, e olhos negros e azuis se cruzaram por sobre a cabeça ruiva, que descansava sobre o ombro do namorado.
Olhos desafiadores e constrangidos. Olhos acusadores e levemente chocados.
Alguém sairia perdendo, era a única certeza.
*
Se havia algo de que ela precisava para amá-lo mais, era aquilo.
*
Então finalmente aconteceu.
"O que é que ela sabe, Severus?", Dumbledore perguntou, fitando-o intensamente por cima dos oclinhos de meia-lua.
"Como assim o que ela sabe?", Snape fechou o cenho. "Não há nada para saber."
Dumbledore suspirou, parecendo desapontado.
"Claro. Claro que você não ia contar, não é mesmo?"
"Não sei do que está falando", Snape replicou, colocando-se de pé e se apresando a recolher suas anotações espalhadas sobre a mesa, onde haviam passado as últimas duas horas esboçando frentes de ataque para destruir os horcruxes.
"Você a ama?", o velho insistiu.
Que pergunta. Mas não dizia respeito a ele. Não dizia respeito a ninguém. Então, Snape nada respondeu, fechando uma pesada pasta de couro.
"Pensei que tivesse realmente aberto os olhos, Severus", o outro suspirou, "para o que é certo. Será que me enganei outra vez?"
"Estou indo", Severus anunciou, como se simplesmente não houvesse escutado uma única palavra. "Semana que vem, no mesmo horário."
Dumbledore também o ignorou por completo.
"Acha certo um relacionamento baseado na mentira? Na ocultação dos fatos?"
"Adeus."
*
O fato era que ele realmente gostaria de não ter ouvido ou prestado atenção e muito menos se deixado afetar por aquelas palavras. Por que o velho não podia simplesmente esquecer tudo? Já estava acabado, há tanto tempo... não havia mais nada o que ser feito... e o velho, também, podia ser considerado o quarto culpado, não podia? Se ambos os Potter haviam morrido, fora culpa do velho, que não os conseguira salvar.
Diabos.
Mas conhecia o ex-diretor, com toda aquela conversa inútil de "fácil e certo", sabia que não o deixaria em paz... enquanto ele não fizesse qualquer coisa. E não faria. Deus. Como poderia fazer? Agora, que tudo caminhava tão perfeitamente, que ela estava ali, adormecida em seus braços, como se fossem seu lugar no mundo? Sentia-se arrepiar, acuado, só de pensar em quem quer que fosse ameaçando a realização de seu sonho mais desejado.
Contar estava fora de cogitação, sempre estivera. Lily jamais o perdoaria, como havia dito a si mesmo tantas vezes. E viver sem ela, agora que havia admitido para si mesmo que ela era a única coisa essencial em sua vida...
Não, definitivamente não. Aquela terrível semana de morte outra vez não. Se aquilo acontecesse outra vez, pensou com um arrepio, enlouqueceria de dor.
E o pior: não se sentia nem um décimo tão calmo quanto gostava de aparentar. Não sabia o que fazer. Começava a se preocupar e, se pensasse demais, uma pontinha de desespero ameaçava surgir.
Abraçou-a com força.
Passou a noite inteira acordado.
*
"Qual é o problema?", Severus perguntou, franzindo a testa, ao notar a expressão preocupada dela.
"Nenhum problema, Sev. Mas estava pensando... e se eu colocasse umas folhas de heléboro aqui?", ela perguntou, apontando para o caldeirão onde uma poção de textura muito fina fervia.
Ele considerou a questão por um instante.
"Bem, não está no livro."
"Não."
"Nem nunca ouvi dizer de alguém que tenha utilizado heléboro em qualquer tipo de Soro de Verdade."
"Nem eu. Mas vou tentar", ela disse, depois de morder o lábio, em dúvida.
"Vá em frente", ele disse, e um pequeno sorriso curvou os cantos de seus lábios.
Se ia funcionar ou não pouco importava, embora quase não houvessem chances de falha, com ela. O que realmente o satisfazia era estar ali, vendo a história deles se desenrolar diante de seus olhos. Acontecendo, realmente acontecendo, provando que podia, sim, ser real.
Era, também, estar ali, com ela, discutindo novas formas de preparar velhas receitas. Era a troca de idéias, de pontos de vista, com alguém tão inteligente quanto ele mesmo.
Eram outra vez os melhores. Juntos.
*
"Como consegue conviver com a lembrança? Como é capaz de olhar nos olhos dela?"
Snape suspirou, impaciente, concentrando-se no grosso livro que estudava.
"Não pode mantê-la na ignorância, Severus. Não é justo."
Então, Snape ergueu os olhos de súbito, controlando a fúria que ardia por trás da calma superfície:
"Pensei que estivéssemos aqui para tratar de assuntos mais importantes? A destruição de um horcrux, talvez?"
"É, é, estamos", o outro acabou por concordar, e, ajeitando os óculos sobre o nariz torto, puxou para si um livro tão grosso e antigo quanto o que Severus lia. Lily, felizmente naquele instante, estava fora, espionando, atrás de pistas dos antigos membros da Ordem.
Mas o velho não teria coragem de abrir o jogo na frente dela.
Teria?
*
"Diga alguma coisa, Severus!", Dumbledore exigiu, em meio ao vento cortante que corria pelas ravinas da região onde se escondia.
"Não há nada o que ser dito", Snape resmungou.
"Não pode continuar fingindo que não se lembra... daquela noite, em que me procurou. Do que me prometeu. E, principalmente, do quanto reconheceu ter errado. Não se arrepende mais?"
Severus apenas continuou caminhando à frente do velho.
"Seja homem! Encare os fatos."
'Seja homem'? Snape, então, finalmente estacou. Lentamente virou-se para trás.
"Já me arrependi o suficiente, Dumbledore. Mas não há mais o que ser feito agora, há?"
"Não é apenas o que há para ser feito, mas o que foi feito. Ela o amava, Severus. James. E você sabe disso."
Snape não respondeu, recomeçando a caminhar.
"Qual a razão para deixá-la saber quando ela está tão feliz, Dumbledore? Tudo aconteceu há tanto tempo."
O velho deu uma pequena risada.
"Faz isso por ela?"
Silêncio.
"Lily é minha amiga e gosto muito dela. Não posso permitir que continue sendo enganada dessa forma."
Snape parou, e virou-se outra vez.
"Não ousaria...", mas a expressão calma e o meio-sorriso de Dumbledore confessaram: sim, ele ousaria.
Severus sentiu-se paralisado por um instante. A sensação da ausência dela em sua vida ainda era muito clara, o delírio, o buraco profundo e insuportável em seu ser. Não, não havia chance daquilo se repetir... Lily podia ter amado Potter, sim, mas o amava, agora. Era um fato. Ele a libertara e ainda assim ela havia retornado, estava lá, com ele, todos os dias.
"Ela é uma pessoa maravilhosa, Severus. Tente contar a ela."
"Isto está fora de cogitação", o outro respondeu, cruzando os braços. "Ela jamais vai me perdoar, será que não entende?"
"E recusa a ela o livre-arbítrio? Que espécie de relacionamento é esse? Não posso fechar os olhos para o que está acontecendo."
"Não vai tirar ela de mim, não vou deixar."
"Compreenda, Severus. Não guardo rancor nenhum de sua pessoa, por que o faria?", o velho perguntou, erguendo a sobrancelha. "É apenas uma questão de certo ou errado."
"Não", Snape murmurou, sacudindo a cabeça, e recomeçou a andar.
"Realmente", Dumbledore suspirou. "Acho difícil ela continuar com um covarde."
Snape parou, atônito. Era outra guerra, sendo abertamente declarada. E ele ia apenas ficar ali, passivamente assistindo ao fim de tudo? Não podia simplesmente desaparecer dali, fingir que não ouvia as palavras do outro. Por que Dumbledore passaria a agir, muito em breve. Era uma certeza.
Estava encurralado.
"Ouça a voz da consciência, Severus! O amor cega, e alguém precisa abrir seus olhos."
Snape virou as costas e apoiou-se em um tronco grosso e desfolhado, os olhos na direção das montanhas mas sem vê-las realmente. Não, claro que não ia. Havia feito tanto, aberto mão de si mesmo, traído ao Lord, às próprias crenças por ela. Ela retribuía seu amor. Jamais tinha sido tão feliz. E agora, aquele velho metido a sábio chegava ali e sugeria... não, mais que isso, o forçava a simplesmente dizer adeus a tudo? Não, jamais. Aquilo jamais aconteceria, percebia o quanto estivera simplesmente esperando a tempestade desabar mas podia, e faria, seu melhor para impedi-lo. Compreendeu, de súbito, que o fim da história dele com Lily dependia, em última instância, dele mesmo. Do que faria para evitá-lo.
Escolher entre o que era fácil e o que era certo? Quase jogou a cabeça para trás e gargalhou. Faria o que era certo, era lógico. Sempre. Era uma promessa. Virou-se outra vez para o velho, que o aguardava com uma expressão de calma ansiedade no olhar.
"Diga... diga que não vai contar."
Dumbledore o desafiou com o olhar:
"Não posso mentir, nem vou."
"Então, não me deixa nenhum outra alternativa", Snape disse, a voz controlada e fria, retirando rápida e graciosamente a varinha de dentro das vestes.
Os olhos de Dumbledore se arregalaram por trás dos óculos, tentou alcançar a própria arma, mas a mão direita ainda se encontrava sobre a bengala. E ali permaneceu enquanto seu dono tombava, e o clarão verde se desfazia tão rapidamente como se não houvesse passado de uma brevíssima ilusão de ótica.
*
"Severus! O que é isso, Severus?"
"Amo você. Amo tanto", ele sussurrou, rouco, em seu ouvido, enquanto as mãos abriam febrilmente a camisola.
"Também amo você", ela respondeu com voz sonolenta. "Mas precisa ser agora?"
A forma como ele a beijou, com a língua penetrando sem sutileza alguma em sua boca, respondeu que sim. Precisava ser naquele exato instante. A mesma coisa disseram as mãos que percorriam avidamente seu corpo.
O corpo que aquecia as mãos gélidas de morte.
*
As lágrimas escorriam ininterruptamente pelo rosto pálido. Severus passou um braço em volta dos ombros dela, cobertos por seda negra, e acariciou ternamente os cabelos ruivos.
O Novo Ministério da Magia havia anunciado, naquela manhã, a morte de Albus Dumbledore, o desertor, pelos Comensais da Morte, ao tentar invadir a residência do supremo líder bruxo, Lord Voldemort. Seu corpo, agora, balançava ao sabor dos ventos pendurado em um poste, em frente à imponente mansão.
"Por quê?", ela sussurrava. "Por que ele fez isso?"
"Não faço a menor idéia", Severus respondeu suavemente. "Nosso trabalho sobre as horcruxes estava indo tão bem... e ele sequer comentou qualquer coisa comigo antes que eu fosse embora."
*
A presença de Dumbledore, ainda que brevíssima, foi o incentivo de que a resistência precisava para retomar a luta. E Lily não deixaria aquela vontade perecer:
"Que nenhuma morte tenha sido em vão", ela começou. "Agora nós sabemos, temos o conhecimento. Dumbledore se foi, mas deixou sua herança", ela sacudiu o grande maço de pergaminhos no qual Snape e Dumbledore tinham estado trabalhando.
Possuíam um novo líder, o experiente ex-auror Alastor Moody. A voz de Lily Evans, sempre tão eloqüente e decidida. Os conhecimentos e a inteligência de Severus Snape.
A chama inicial se espalhou de vela em vela. Não seria fácil, todos ali sabiam. Mas estavam dispostos a dar a vida, se assim fosse preciso.
*
"Ah, meu deus", ela disse, tapando a boca com as mãos, e deixando cair sobre a mesa o exemplar do Profeta Diário que estava lendo naquela manhã.
"O que foi?", ele perguntou calmamente, sem parar de mexer o chá.
"Outro Dumbledore morto, Severus", ela disse, fitando muito séria, quase com raiva, até, a fotografia no jornal. "Aberforth."
Ainda olhando para a xícara, Severus franziu a testa, como quem tentava se recordar de alguma coisa. Por fim, disse:
"Acho que me lembro. Era o dono daquele bar em Hogsmeade, não era?"
"O Hog's Head", ela confirmou com um aceno de cabeça. "É tão triste, Sev. Simplesmente invadiram o lugar e o mataram. Sem motivo nenhum!"
Ele arrastou a cadeira para bem perto dela, estendeu um dedo e pousou-o sobre os lábios vermelhos:
"Shh. Não pensa muito nisso, Lily. Estamos em guerra, é como as coisas são..."
"Mas não serão por muito tempo mais. Você vai ver só", ela o interrompeu, decidida.
Severus deu um pequeno sorriso, e a abraçou. O sorriso, então, ficou maior. E ele suspirou da mais pura satisfação.
Ninguém se intrometeria no mundo dos dois.
Jamais.
*
A guerra que se desenrolou durante os dois anos seguintes não foi especialmente notável ou marcante para Severus Snape. Se as coisas continuassem como estavam, seu posto de Comensal favorito estaria garantido. Uma provável vitória da resistência apenas tornaria a vida menos arriscada. Qualquer uma das alternativas lhe era indiferente, desde que Lily estivesse consigo. E aquela era sua própria guerra pessoal, aquela onde fazia mais que o possível para sair vencedor. Destruir horcruxes ou o próprio Lord a quem costumava servir, por exemplo. Eram apenas pequenas exigências enfadonhas e indiferentes, que ele realizava sem emoção ou culpa alguma, visando apenas seu objetivo maior: Lily em sua vida. Para sempre.
Até mesmo quando a guerra finalmente terminou ele permaneceu relativamente impassível. Compartilhou aparentemente da alegria de todos, e claro que não era ruim vê-la radiante daquela forma, ser enchido de beijos e vislumbrar um futuro menos sombrio.
Mas sua vida tinha sido, e sempre seria, dedicada primordialmente a uma outra causa.
*
A hora da verdade tinha chegado.
"Vender, Severus? Essa casa?", ela perguntou, franzindo a testa. Aprendera a achá-la bonita, por mais austera que fosse. E havia mais: fora exatamente ali que tinha nascido pela segunda vez; e se as primeiras memórias do lugar não eram exatamente agradáveis, as que vinham em seguida eram simplesmente as melhores.
"Foi o que disse", Severus respondeu. Por que era o último, o penúltimo, que fosse, elo que ainda o prendia ao que havia feito - e era algo em que, ultimamente, ele nem se atrevia a pensar. O incomodava, por algum motivo que não conseguia descobrir. Queria um novo começo, completamente limpo de qualquer mancha. De qualquer forma, ele continuou:
"Encontrei uma maior, mais próxima a Londres e...", ele se interrompeu. Tomou fôlego. Encarou os próprios sapatos negros e bem-polidos. Então disse bem depressa: "... e gostaria de ouvir sua opinião."
"Minha opinião?", ela perguntou, estreitando os olhos.
"É, acho que seria interessante. Não, importante", ele disse, procurando manter um tom casual enquanto fitava a paisagem ao redor.
"Desde quando precisa da minha opinião para fazer qualquer coisa? O que isso quer dizer, Sr. Severus Snape?"
"Desde quando?", ele repetiu a pergunta, inspirando fundo outra vez. "Desde que... desde que, talvez, quem sabe...", arriscou uma olhada de lado para ela, por sob o cabelo que lhe cobria os olhos.
Ela ergueu uma sobrancelha, e esperou.
"... a escolha... possa, você sabe... interessar a você também?"
"É um pedido formal?", ela interrompeu.
"O que você diria se fosse?", ele perguntou por fim, depois de um longo silêncio.
*
"... e eu os declaro unidos para toda a vida."
*
Era, ainda, um pouco estranho e difícil se acostumar: a casa cheia de flores nas janelas (exceto naquela que pertencia a seu escritório), detalhes em cores vivas aqui e ali, as luzes cálidas de velas escapando pelas vidraças. Simplesmente voltar para lá depois de um dia de trabalho. Um trabalho normal, estável e bem-remunerado no Ministério da Magia. Voltar para Lily.
Mas ele havia dado duro para conseguir aquilo. Naquele dia Severus Snape podia dizer, com noventa e nove por cento de certeza, que havia chegado lá. Suspirou. Abriu a porta. Música no andar de cima lhe indicou o caminho. Ela estava de costas para a porta quando ele entrou, e não havia ouvido seus passos, de forma que ele teve um minuto ou dois para apenas observá-la com calma, sentir seu coração explodir e pensar outra vez: por que era tão difícil? Estava mesmo acontecendo. Já deveria ter se acostumado à idéia. Então ela sentiu que estava sendo observada e se virou, sorriu e o beijou - os beijos agora não eram sempre tão ardentes quanto no começo, mas a cumplicidade adquirida depois de anos de convivência mais que compensava. Ela apoiou a cabeça em seu peito por um instante e ele afagou seus cabelos, estavam molhados nas extremidades, ela havia acabado de sair do banho e todo seu corpo contra o dele ainda estava agradavelmente morno.
"Ah!", ela ergueu a cabeça de repente, lembrando-se de qualquer coisa. "Ficou sabendo, Sev? Acabei de ouvir no rádio", ele franziu a testa e perguntou o que era. "Encontraram ela morta. Sibila Trelawney."
Trelawney fora quem havia feito a profecia que tinha dado início a tudo. Desapareceu logo após o fim da guerra...
"... e aparece de novo, apenas pra morrer. Suicídio. Tinha um frasco vazio de pílulas para dormir ao lado da cama", Lily informou, enquanto um arrepio sacudia seus ombros. "Pobre louca."
"Uhum", Severus murmurou apenas, abraçando-a novamente. Mas ela estava meio inquieta naquele dia em especial e escapuliu dos braços dele.
"Simplesmente não agüento mais, preciso voltar a trabalhar logo, Sev."
Um pequeno sorriso curvou para cima os cantos da boca dele.
"Posso apostar que sim", Severus disse, sentando-se no sofá junto à janela.
Com o fim da guerra, Lily havia se tornado, como não podia deixar de ser, auror. Ele sabia o porquê, sabia que tinha a ver com as mortes do primeiro marido e do garoto, e aceitava aquilo. Ele suspirava e pensava que tudo bem. Ela era uma excelente auror, e aquilo lhe dava um certo orgulho. Uma pequena questão de saúde, no entanto, a mantivera em casa nas últimas semanas. Uma pequena questão que logo se pôs a chorar.
"Aah não, bebê", ela disse, aproximando-se do berço. "A mamãe não quis dizer que não gosta de estar aqui com você", ela curvou-se sobre o berço e retirou de lá uma figura embrulhada em uma manta verde-água. A pequena Morgana.
Severus, particularmente, nunca tinha sido muito inclinado à idéia de ter filhos. Mas não hesitou por um instante sequer quando ela disse que andava pensando seriamente em tentar um segundo (até porque seria, de certa forma secreta, restituir o que ele havia lhe tirado).
Ela abriu o roupão e começou a alimentar a filha. Severus se acomodou melhor, esticando as pernas e prendendo o olhar nela, de forma que não perdesse um único detalhe que fosse. Não pôde evitar sorrir. Estava tão, mas tão linda. Feliz. Simplesmente dava para ver a felicidade irradiando dela. Os cabelos vermelhos escorriam pelos ombros e caíam por cima dos seios nus, agora maiores e mais cheios. Mas ele não sentiu a menor vontade de levá-la para a cama naquele instante. Apenas um amor calmo e definitivo.
Lily, por fim, terminou de amamentar a criança e, o tempo todo conversando com ela, trouxe-a até o pai. Ele esticou um dedo e acariciou suavemente a bochecha muito pequena. Ela era toda tão pequena, as mãozinhas, a boca rosada... mas havia alguma coisa de muito decidida e intensa nela, talvez os cabelos, tão poucos e já tão negros como os dele. Lily colocou-a no berço, cantarolando a canção que tocava no rádio, alguma coisa que o locutor anunciou como sendo o último sucesso da banda The Gargoyles. Ele esticou um braço, convidando-a a se sentar ali com ele. Ela se aproximou, sentou-se, acomodou a cabeça no ombro dele, e ele passou um braço em volta da cintura dela. Sob protestos, desligou o rádio. Então, ficaram apenas ali, em silêncio, ouvindo os grilos na noite fresca de primavera.
"Sabe", ela começou, depois de um longo tempo. "Houve uma época em que... jamais achei que fosse me sentir assim tão... viva outra vez. Tão feliz."
"Mesmo?", ele perguntou, suavemente.
"Mesmo. E é... é tudo por sua causa, Sev. Você sabe disso? Tem consciência de tudo o que fez? Voltei a ser o que sempre fui."
Ele suspirou. Frequentemente se perguntava como ela se sentia, afinal, em relação a tudo. Nunca ousara perguntar. Ela parecia muito bem, era verdade, mas temia possíveis comparações e, principalmente, ficar em segundo lugar. Um medo infundado, ele suspirou, os cantos da boca se curvando para cima. Voltei a ser o que sempre fui. Havia valido a pena. Ao contrário do que o velho tinha dito, muito do que fizera tinha sido, sim, por ela. Ele a libertou quando ela pediu. Tentou salvar o filho e o marido, fazendo o que lhe havia sido possível. Não conseguiu. Agora, era outro marido, e lhe dera outro filho.
As mortes? Não havia sido nada. Não havia sentido nada, para ser sincero. Nem a mínima dose de remorsou ou culpa. Havia apenas eliminado três pequenos obstáculos. Para um bem maior. Por ela e por ele. Pelo que tinham ali naquele exato instante: ela estava feliz outra vez. Ele estava feliz, finalmente. Tinham toda uma vida perfeita e uma bela família.
Pela primeira vez, conseguiu encará-la nos olhos quando pensava sobre os últimos anos.
Tudo, absolutamente, havia valido a pena.
Por que deveria se sentir culpado?
Todo mundo cometia erros.
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agoooooora sim fiquei satisfeita =)
o outro final é bom. mas eu queria algo à altura da loucura e obsessão do snape.
espero que gostem, tanto quanto eu =)
(e eu amei cada um dos comentários, MUITO obrigada =*)
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