Dívida
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Harry Potter atravessava o longo corredor sem pressa. As diversas pessoas que repousavam em suas macas, atrás das limpíssimas paredes de vidro do hospital, nem percebiam a presença dele. Ele também não prestava atenção nelas... Eram apenas pessoas. Pessoas que logo iriam ser curadas por um médico e voltariam para casa, sãs e salvas, sem nem se lembrar do nome do homem que lhes salvara a vida.
Uma ou duas daquelas pessoas provavelmente iriam morrer, e então a família delas se lembraria, por um ou dois anos, do nome do médico que não se esforçara o suficiente e falhara em salva-la. Era possível ainda que houvesse um daqueles enfermos que entraria num coma profundo ou terminasse em estado vegetativo por longos anos, e a família logo se esqueceria não tão somente do médico, como dele também.
Harry sabia daquilo, sabia que era daquele jeito, e sempre seria. Parou em frente à uma porta lustrosa de mogno, com os dizeres “Direção” gravados em metal polido, logo acima do nome da médica responsável. Entrou sem bater.
— Doutora Catherine Taylor?
— Achei que fosse de seu conhecimento que, em hospitais, as pessoas costumam bater na porta antes de entrar... — Falou uma voz áspera de mulher. Ela era alta, magra, de cabelos loiros pouco abaixo dos ombros. Seus quadris eram avantajados e ela usava um decote meio apertado, o que atraiu a atenção de Harry quando ele se sentou.
— Opa, agora já sentei... Mas se você fizer questão, eu posso me levantar e caminhar até a porta sem nenhum problema... Exceto talvez pelo fato de que meu joelho esteja doendo e você corre o risco de eu ficar ainda mais mal-educado.
— Não há necessidade, doutor Potter.
— Harry, por favor.
Ela o olhou séria.
— Quero esclarecer que não temos nem um mínimo de intimidade, o que nos restringe apenas aos sobrenomes.
— Não me referia à intimidade... Só quero que você me chame de Doutor Harry... Eu a chamo de Doutora Taylor sem problemas... Ou então de “Poderosa Chefona”, talvez até “Garota Traseiro”... Não me faz diferença, atualmente. — Harry brincou, e ela se sentou rapidamente.
— Vamos direto ao ponto, Doutor P... Harry. Você está interessado em trabalhar na parte clínica aqui do Saint Mungus, exato?
— Yep! — Falou ele, distraído, enquanto retirava uma a uma as canetas do porta-lápis da mesa.
— Você completou o curso para ser curandeiro há três anos, certo?
— E fiz seis anos de medicina trouxa, também. — Respondeu, agora empilhando de forma perigosa as canetas sobre um canto da mesa.
— O que me intriga é por que um homem de quarenta e oito anos se interessa por medicina assim, de repente...
— Ah, isso eu não posso dizer... Mas conheço um cara que tinha trinta e sete quando se interessou por medicina... Talvez seja eu, não tenho certeza... Pena que você só se interessa pelos de quarenta e oito... Adoraria que você me pedisse para que eu contasse...
— Então, conte
—Como eu dizia, adoraria que você pedisse para que eu contasse, e então eu poderia te dizer com todas as palavras que não é da sua conta. — Harry riu com sarcasmo.
Taylor lhe olhou séria, novamente.
— Você pode se comportar assim em minha presença, seu chefe é o Ministério, não sou eu. Mas se os pacientes vierem reclamar de você, não sei se gostaria de defendê-lo perante o Ministro.
— Acho que gostaria sim. Você pelo menos leu meu currículo?
— Três anos e meio trabalhando entre trouxas, na área de emergências, enquanto cursava o curandeirismo, e depois mais um ano e meio como o curandeiro da vila onde morava...
— Não isso, a parte escrita à mão.
Taylor folheou a pasta, confusa.
— Não vejo nada aqui...
— Não vê por que não procura direito.
Ele tirou uma lanterna do bolso e acendeu contra o papel. Um brilho roxo iluminou a folha, deixando um texto branco visível.
—Da Vinci — Harry falou de um modo místico — Eu sou o herdeiro de Jesus. Ou isso ou entreguei a caneta errada para o cara do hospital...
— “Em seus sete semestres como médico em nosso hospital, o doutor Harry nunca perdeu um paciente, uma marca que não havíamos visto no Henzy até o presente ano”. É verdade isso?
— Ah, não... Sou apenas descendente de um primo distante de Maria Madalena — Ela riu.
— Você nunca perdeu um paciente?
— Yep! — Confirmou, colocando sua lanterna sobre a torre instável de canetas que se formara sobre a mesa. Houve um catastrófico ruído, e os objetos se espalharam pelo chão e pela mesa. Harry realizou um movimento amplo com a varinha, fazendo as canetas voltarem para dentro do porta-lápis e a lanterna cair lentamente dentro do seu bolso. — Ops.
Ela olhou aquilo como se não acreditasse na situação em que estava.
— E, depois de ler isso, continua achando que não gostaria de me defender?
— Ah, eu não tenho certeza...
— Veremos, então... — Harry falou, ajeitando os cabelos curtos e grisalhos. — Mas, você não vai me mostrar meu escritório?
— Não há escritório algum para o senhor... Você fica com o Consultório Quatro, do térreo... Lá você vai cuidar apenas de pacientes com emergências e de curto-prazo. São Trinta horas semanais de clínica para cobrir.
— Então, sem escritório? Quer dizer que você nunca vai poder me levar no escritório, eu nunca vou poder te convidar para entrar, e meus sonhos eróticos que envolviam você e aquela parede de vidro nunca se realizarão...
Catherine segurou o riso. Harry fingiu não perceber.
— Aliás, doutor Harry, eu só quero lembrar o senhor de que a medicina bruxa é muito mais complexa do que a trouxa, e mesmo que você tenha salvado mil vidas não-bruxas, o leque de diagnósticos possíveis para bruxos é muito maior. Você vai ter de se empenhar ao máximo, sempre visando evitar a má conduta perante os paciente, o que acho que será um desafio em seu caso...
— “Má conduta” — Harry levantou-se para sair, com um sorriso disfarçado no canto da boca — É esse seu decote.
A loira não disse nada, permaneceu, por um instante, inexpressiva, mas depois sorriu, meio envergonhada.
01. DÍVIDA
— Bom dia! — Harry Potter falou num tom irônico, observando a sala de espera apinhada de gente. Eu quero que o senhor... como é que se lê essa coisa? — Perguntou a si mesmo, tentando achar a posição correta do nome ao girar a folha que lia em vários ângulos. — Vamos tentar... Rodneylon?
— Se fala Rod-nee-lon, por favor — Falou uma mulher franzina e feia, que possuía cabelos muito armados e uma boca com poucos dentes.
— Você é o Rodneylon? — Perguntou Harry, espantado. — Se for, o diagnóstico é escorbuto... Onde foi que arranjou essa boca podre?
— Fica difícil cuidar de si mesma quando se tem sete fi...
— Acho que foi uma pergunta retórica. Mas, você tem seios, por mais que escondidos ali, próximos à barriga. Então, quem é o Rodneysson?
— Rodneelon, é meu filho...
O médico viu a mulher pegar uma criança que mais parecia um duende, em seu colo. Sua cabeçorra ovalada se equilibrava assimetricamente sobre o pequeno corpo subnutrido, orelhas enormes e sujas se projetando para os lados de um rosto sardento, em que o nariz largo e arrebitado escorria.
A mulher limpou o nariz do filho e em seguida limpou a sua própria mão na roupa. Harry exagerou na cara de nojo e entrou no consultório.
— Então, seu filho costuma lhe acompanhar nas viagens? — Harry perguntou, pegando um bloco de papel.
— Viagens? — A mulher perguntou confusa.
— De navio! Você sabe: Pilhar, Extorquir, Saquear! Não foi assim que conseguiu assegurar a saúde bucal que mantém até hoje, Pirata?
— Você... — ela apontou o dedo magro e torto para ele.
— Mas o assunto é o seu filho. O que é que esse pequeno... Coiso... Sente?
— Ele sente muito frio, e o nariz escorre muito. E também apareceram algumas bolhas no...
— Pênis. Ele deve ter gripe irlandesa. Você e sua tripulação de patifes desembarcaram em portos irlandeses nas últimas semanas?
— Eu não sô’ pirata! Nem nunca saí do país.
— Nem encontrou com algum pirata, digo, parente ou amigo irlandês, ultimamente?
— Sim! Meu irmão Romylon veio visitar-nos esses dias, no aniversário do Rodneelon.
Ele é padrinho dele, sabe, ent...
— Dê esses comprimidos para seu, hum, filho, a cada três horas durante toda a semana, e avise o R-das-quanta que ele tem gripe irlandesa.
— E vão ter sintomas?
— Hein?— Harry perguntou, confuso. Levantou-se da cadeira, preparando-se para sair, e seu joelho deu uma fisgada dolorosa. — Sintomas?
— Ele vai continuar com alguma coisa quando for curado?
— Seqüelas? Não... Mas acho que ele nunca vai chegar a transar com uma garota...
— Por que, do’tor ?
— Do jeito que esse bicho é feio, as meninas vão querer distância dele... As prostitutas provavelmente chamarão o controle de criaturas mágicas e animais ilegais... Ele se parece muito com um filhote de Rabo-Córneo Húngaro, se você olhar de lado...
A mulher ficou calada e saiu arrastando o filho pelo braço. Harry observou aquilo interessado, antes de pegar novamente a prancheta e voltar para a sala lotada, onde chafurdou a pilha de fichas médicas até encontrar um paciente cuja foto Três por Quatro na folha de rosto lhe agradara. Uma enfermeira o cutucou no braço, mas ele ignorou-a.
— Senhorita Epps Queira me acompanhar até meu consult...— Uma jovem morena se levantou. A enfermeira cutucou Harry novamente, e ele demorou-se a desviar a atenção da garota.
— Doutor Potter...
— Doutor Harry — Ele corrigiu a enfermeira, uma oriental idosa e baixinha, vestida em impecáveis trajes brancos.
— Aquele Homem está na frente, eu tenho certeza que coloquei a ficha dele no topo... — Harry apanhou a pasta que ela oferecia-lhe e sua atenção foi desviada para um homem muito gordo, cujo traseiro ocupava três assentos da sala de espera. Suas mãos se entrelaçavam sobre o peito, que escorria sangue.
— E você ainda não fez nada? — Harry enfureceu-se — A menos que o Mc’Donnalds tenha começado a comercializar catchup daquela cor, ele está sangrando. — A mulher ficou pálida: Aparentemente nem percebera o sangue no homem.
Harry apressou-se: Correu, com grande esforço, até a farmácia hospitalar, (Seu joelho fisgou novamente), apanhou um frasco de poção verde-musgo, sem nem assinar o livro de controle ou dar satisfação ao homem que tomava conta do balcão.
Pegou uma seringa no consultório mais próximo e injetou o líquido no homem, direto no ferimento. O alívio foi instantâneo para o paciente.
— Obriga...
— Não fale, pode piorar. Fique calmo.
— Eu sempre estou calmo. Mas o que foi isso que você me deu?
— Poção cicatrizante, de essência de Ditamno. Mas não fale muito. Só me responda quando eu perguntar... Vou trazer uma cadeira de rodas para levar você até o consultório para fazer um curativo. Como foi que conseguiu isso?
— Tiro, de revolver, sabe.
— Revólver? Andou brigando com um trouxa ou algo assim?
— Assaltado — falou ele, sem estender a frase. Harry trouxe uma cadeira de rodas e tentou puxar o homem para cima dela, mas não conseguiu.
— Deus, como você é gordo!
— Eu sei. — O homem riu. Aquilo incomodou Harry.
— Você gosta disso? Eu não gostaria...
— Eu gosto de comer, ser gordo é uma conseqüência...
— Nada em excesso é bom, nunca. Vou ter que fazer o curativo aqui mesmo — Reclamou, caminhando até o consultório para pegar as bandagens.
O rosto do homem estava inexpressivo, sua boca grande e bem-cuidada parecia flutuar sobre a papada gordurosa, que fazia seu único queixo magicamente parecer quatro.
Os olhos eram de um negro brilhante, que pareciam enfrentar com vigor o verde e penetrante olhar do médico, que agora lhe limpava o tronco com um líquido vermelho-escuro.
— Isso fará com que você não sinta dor. Agora vou retirar a bala...
Harry sorriu com o canto da boca, os olhos vivamente brilhantes sob as sobrancelhas grisalhas... Colocou a pinça com cuidado, calculando cada milímetro do movimento enquanto avançava lentamente até encontrar o projétil.
Preparou uma nova dose de poção cicatrizante e puxou a pinça cautelosamente, depositando então a bala ensangüentada numa pequena bandeja de aço esterilizado, e injetando uma dose exagerada de poção verde-musgo na fenda. O homem soltou um gemido de dor seguido de outro de alívio, o que fez todos os que estavam no saguão ( e que até agora haviam observado a operação cirúrgica em completo silêncio) sussurrarem coisas uns para os outros. Uma garota ali perto não conseguiu se segurar e acabou vomitando no chão branco.
— Injete isso a cada uma hora, durante todo esse dia. Vai ter de se esforçar: Acordar de madrugada e interromper refeições. Não que eu me importe, acho até que se tivesse que cortar o almoço para receber uma picada de agulha no traseiro comeria um pouco menos. — Falou Harry, depois de fechar o curativo e entregar um grande frasco da poção cicatrizante em menor concentração para o paciente obeso.
— Obrigado, doutor Potter.
— Doutor Harry! — Corrigiu, irritado, mesmo com a certeza de que ele não se lembraria daquilo dali a algumas semanas — E agora, vamos ao que interessa... Senhorita Epps? — Ele olhou ao redor, e observou que havido sido a própria paciente quem vomitara no chão do Hall. — Meu consultório, quando puder... — Completou, entrando na sala.
A garota pareceu transtornada. Falava com a enfermeira que limpava o chão, que estava sujo até dois metros à sua frente, de modo estranho, colocando a mão sobre a têmpora e franzindo o cenho. Por vezes — como pareceu a Harry, que já se sentara na cadeira do escritório — ela não tinha certeza de onde a enfermeira estava, exatamente.
Harry rabiscou “Dores de Cabeça” e “Visão Dupla” numa folha de papel em branco. Observou a folha por um tempo antes de pegar a ficha médica dela e anotar “Lutadora de Karatê”, “Dezessete anos” e “NIEM’s para curandeira” no outro canto da folha.
Olhou mais uma vez para a folha, depois para o chão sujo do hall e anotou “Vômitos em Jato” sob a visão dupla. Precisou analisar o papel por mais um minuto inteiro, aproximadamente, antes de escrever algo no centro da folha e caminhar — com dor, pois o joelho esquerdo formigava incomodamente — até ela.
— Você tem câncer no cérebro, como o outro médico suspeitou. — Ele se lembrou da menção feita na ficha — Marque um horário com o nosso oncologista, que seria... Enfermeira! — Falou a última palavra tão alto que todos os que continuavam a comentar sobre o que se passara ali se calaram, mirando os olhares para a garota, com quem Harry conversava e que agora chorava descontroladamente, olhando para o chão. — Enfermeira, qual é o melhor oncologista do Hospital?
A mulher não teve de pensar muito:
— Doutor James Wilson.
— Procure o doutor Wilson, ele poderá te dizer se isso ai é fatal ou se é quase fatal... — Harry falou, sem nenhum tato. Ela continuava chorando, mas agora o olhava nos olhos.
—Como... ? — Perguntou ela, vagamente.
Harry entendeu a pergunta como se a ouvisse diariamente.
— Os sintomas nunca mentem... Tudo indicava câncer no cérebro: o vômito, a visão dupla, a dor de cabeça, a desorientação...
— Eu não tenho desorientação.
— Vai ter, assim que tentar se levantar e tentar entrar por aquela porta para marcar sua consulta com o Wilson... Mas era óbvio, como eu ia dizendo, que você não vomitara por causa do sangue e das tripas do gordão. Faz Karatê e vai se formar curandeira, sangue e tripas são a sua área.
A garota sorriu, considerando aquilo um elogio, e Harry sorriu também, se levantando para ir embora ao mesmo tempo que ela, e só voltou a olhar para a paciente quando ouviu um estrondo repentino, e não se surpreendeu nem um pouco ao descobri-la estatelada em frente à porta de vidro.
O Número 122B, da Rua Baker, continuou vazio até o pôr do sol, quando então, com um zunido, um borrão branco e cinza desceu do céu avermelhado e parou em frente à porta branca de madeira.
Harry Potter entrou em casa sem pressa, escorando a Nimbus S300 na parede ao lado da porta e tirando os tênis dos pés. Caminhou até a cozinha para comer algo, seus pensamentos todos voltados à televisão, ele imaginava indeciso o que assistiria aquela noite.
Fritou dois hambúrgueres — comprados há tanto tempo a ponto de ele suspeitar que até o plástico da embalagem já houvesse passado da validade — e alguns ovos, colocou as roupas na máquina e ligou o chuveiro elétrico, que precisava ser ativado muito antes da hora para esquentar, e, naquele frio, nada cairia melhor do que um banho quente.
Engoliu os ovos, os hambúrgueres, por sorte, ainda bons, e algumas fatias de pão com maionese, enquanto lia com interesse um artigo na WM — A mais conceituada revista de medicina bruxa — que tratava da Glândula Polial.
Era espantoso como aquela matéria lhe parecia familiar, e ele achava inclusive que era capaz de prever cada palavra que o doutor Charles Carteganian usaria nas próximas linhas.
O motivo óbvio disso, Harry sabia, era que a colocação de implantes eletrônicos na Glândula Polial havia sido objeto de seu estudo durante os três anos anteriores, quando então resolveu parar para se dedicar inteiramente ao trabalho.
Já Havia lido quatro artigos na WM que tratavam da Polial naquele último ano, e cada vez que o assunto — ignorado por muitos — voltava a aparecer, ele percebia pequenos avanços no processo proposto, de modo que a falha do plano já não vinha com a colocação do chip, mas sim na finalização da cirurgia.
Desta vez, como esperado, Harry detectou o erro do procedimento na última página, que sugeria o uso de um feitiço de dilatação na glândula para facilitar a introdução do implante em uma das camadas principais do tecido adiposo da Polial.
Atirou a revista longe, imaginando de modo cômico um médico com as expressões faciais de um deficiente mental apontando a varinha para a barriga aberta de um paciente e gritando “Engórgio!”. O pensamento o fez rir um pouco, pois já era quase de conhecimento geral que noventa e nove em cada cem Poliais paravam de funcionar de vez à simples aproximação de magia (o que limitava aos bruxos o trabalho mágico no fígado), visto que é a própria glândula que gera a magia do corpo bruxo.
Deixou de lado o assunto e se enfiou no banheiro quente assim que terminou de lavar a louça e estender as roupas escuras, recentemente lavadas, na secadora elétrica que comprara há poucos dias.
O espelho do banheiro, sabiamente enfeitiçado com um “Impervius”, mostrou-lhe um rosto cansado, mas mesmo assim bonito. Seus olhos verdes, tão penetrantes e analíticos quanto o par de azuis sob oclinhos de meia-lua que conhecera no passado, o observavam com notável interesse. Sua boca estreita e o nariz levemente pontudo tinham um talhe perfeito, absolutamente simétrico. O cabelo, grisalho e cortado num estilo quase militar, não apresentava falhas ou sinais de calvície, e as costeletas curtas se transformavam suavemente na barba por fazer. Seu porte não era atlético, mas até meses atrás poderia correr quilômetros com tranqüilidade, quando então seu joelho esquerdo começara a doer sem motivo algum.
Espalhou a espuma de barbear pelo rosto e passou a lâmina afiada devagar e com força, tirando todos os pelos que lhe cobriam seu queixo, bochechas e parte superior da boca. Depois de se enxaguar, olhou mais uma vez para o rosto no espelho, não gostando muito da ausência da barba, quando reparou na fraca cicatriz em forma de raio em sua testa, que já não podia ser percebida a menos que quem olhasse soubesse que ela existia. As lembranças da infância não vieram — como antes acontecia — e tão agradável fenômeno ele só tinha a agradecer ao Tempo.
Tomou um banho longo e vestiu uma roupa qualquer, para dormir depois. Folheou então a revista da TV a cabo até encontrar a programação para aquele dia. Optou pelo campeonato estadual de skate downhill, que começava às dez hora.
Ainda faltava uma hora e meia para começar o programa, tempo que usou para tocar um pouco de seu antigo violino. Os dedos e braços ainda respondiam perfeitamente às ordens, e ele tocava o instrumento com tamanha destreza que a música suave só se silenciou às cinco para as dez, quando ele estourou pipocas e se deitou no habitual sofá de couro para assistir os skatistas correrem rua abaixo. As partes mais interessantes do programa eram as quedas em manobra, que provocavam risos em Harry.
Quem venceu foi algo que Harry nunca ficou sabendo, pois pegou no sono logo depois da meia-noite, quando então passou a sonhar algo sem-sentido envolvendo um navio em alto mar, alguns piratas amotinados e vingativos e uma mãe com uma perna-de-pau segurando seu filho deformado enquanto era forçada a caminhar de costas na prancha. O celular da mulher tocou, ou fora do outro lado. Harry alarmou-se, olhos ainda fechados, mas ouvidos atentos. Tocou novamente.
Harry ignorou. Tocou de novo, ele cobriu a cabeça com uma das almofadas do sofá, para abafar o barulho. O aparelho soltou um bip e a voz alterada de Catherine Taylor falou do outro lado da linha.
— Doutor Potter, você precisa vir aqui no hospital... Dorlan Drey, aquele que você tratou hoje de manhã, com um tiro... Ele está morto... — Harry gemeu — Da cintura para baixo.
O médico se levantou depressa, pensando na veracidade da semi-morte do homem e no por que aquelas pessoas insistiam em chama-lo pelo sobrenome.
— Ah, não! Saunière está morto! Vá Sophie, ache o Criptex! O Priorado está em suas mãos! — Um Harry com cara de sono entrou no CTI do hospital St. Mungus para Doenças e Acidentes Mágicos. Catherine Taylor, que vestia ainda a roupa da manhã, aparentemente estivera trabalhando até agora.
Ao lado dela estava um médico elegante, vestido em um jaleco branco largo, que o fazia parecer um pouco gordo. Seus cabelos eram castanhos como os olhos, e seu corte fazia o rosto parecer muito mais arredondado do que de fato era. Ele, por sua vez, aparentava ter acabado de Chegar, tirado da cama como Harry.
— Doutor Pot...
— HARRY!!! — Ele gritou, e percebeu que dentro de uma das portas uma voz grave e rouca gritava também, mas por sua vez não dizia palavras inteiras.
— Doutor Harry, Doutor Wilson, nosso oncologista; Wilson, esse é o doutor Harry, nosso mais novo funcionário.
—Prefiro “Médico”. — Murmurou — E o que um oncologista sabe de meio-mortos?
Ela ignorou a pergunta.
— Você não é lá bem um médico, já que em um dia já matou um paciente... O que foi que deu em sua cabeça quando o liberou para ir embora?
— Primeiro: Não matei um paciente... Meio, no máximo. Segundo: Eu o liberei por que só o Hall e o CTI têm portas duplas... Ele só poderia ir embora ou ser internado de vez, eu não queria assustá-lo se ele tinha tudo para ir embora... Ah, aliás, ouço a metade de cima gritar. — Falou, prestando atenção aos gritos que tornavam a sair de uma porta fechada do enorme salão.
— Ele está com dor... — Falou a Doutora Taylor.
— E por isso você me chamou aqui? — Perguntou irônico. — Só para eu injetar morfina nele e sair, morrendo de peninha?
— Chamei por que o paciente é seu, e por um acaso ele não está curado, não é “Doutor Nunca-Perdi-Um-Paciente” ?
— Sabia que logo iríamos aderir aos apelidos carinhosos, “Doutora Traseiro” — Wilson, que até aquele momento estava calado, riu.
— Mas, — Catherine olhou para a porta com uma expressão indecifrável. — Ele não sente nada do início do abdômen para baixo. O coração ainda bate, por mais que a barriga e as pernas estejam congelando...
—Ele levou um tiro, lembra? Injeta Morfina pra parar a dor.
— Já tentei, mas não adianta, se aumentar a dose ele morre.
Harry fixou seus olhos na porta, os gritos altos não o ajudavam a se concentrar, mas ,mesmo assim, suas pálpebras estreitavam levemente seus olhos enquanto ele franzia a testa de modo quase imperceptível. O verde penetrante acentuava a expressão de concentração dos olhos, e quem olhasse de relance poderia ter a severa impressão de que ele tentava olhar através da porta.
— Injete morfina na cava inferior, e depois uma dose de Revigorante.
— Mas... — Catherine hesitou perante o procedimento nada convencional
— Faça isso, se não eu faço.
Catherine obedeceu, pegando uma seringa e correndo para a enfermaria, os gritos do homem ecoando por todo o lugar. Harry seguiu-a, Wilson no seu encalço.
A enfermaria estava clara, e as luzes brancas quase cegavam os olhos de Harry, que ainda não acordara totalmente. Catherine tremia muito enquanto se aproximava do paciente, a seringa com o líquido transparente balançando no ar...
— Você tem medo... Se importa com a vida dele... — Harry falou, como se pensasse alto. — Você o conhece? Ou é sentimental assim com todos os pacientes?
—Você pode calar a boca, ao menos por um minuto? — Catherine reclamou, enfiando a agulha na barriga do homem sem mais tremer. Pegou a outra seringa, que Wilson preparara, e injetou também.
Harry ficou quieto, mas parecia sorrir por dentro. Wilson suspirou aliviado quando os gritos do homem cessaram.
— Graças a Deus, ele não está mais sentindo dor, a morfina funcionou. A Poção Revigorante vai fazer a doença ou o que for parar de agir por três horas, e depois disso... — O oncologista falou, caminhando até a máquina que monitorava a freqüência cardíaca.
— Depois disso ele vai voltar a morrer... Eu mereço um “Obrigado”? — Harry falou, sarcástico.
— Só quando ele estiver andando, falando e comendo normalmente. — ela devolveu com a mesma intensidade. — Você pode ajudá-lo a monitorar o Sr. Drey, James?
— Ele confirmou com a cabeça.
—Obrigada, e boa sorte. — Ela sorriu para ambos e saiu do consultório. Harry ficou prestando atenção às pernas dela enquanto ela andava.
—Então... —Wilson puxou assunto — Você é mesmo o Harry Potter? Ouvi falar muito de você quando criança... Não acredito que virou médico...
— Quer que eu prove? — Perguntou, ácido.
— Não, não... Foi só um modo de dizer que você escolheu um caminho bem pouco provável para alguém que teve um passado de luta contra as trevas... Posso saber o por que dessa escolha?
— Não
— OK — Wilson ficou rosado e olhou para o paciente — O que acha que ele tem?
— Não sei ainda, mas eu tenho sono. Se você trouxer dois cafés da máquina do terceiro andar, cadeiras para sentarmos e uma folha de papel grande o suficiente para fazermos um quadro de sintomas bem detalhado, talvez minha cabeça funcione um pouco melhor... Mas, espere aí.
Se mover até o leito da enfermaria deu um pouco de trabalho para Harry, cujo joelho doía ainda mais por que acordara repentinamente. Mas algo despertara em sua cabeça e ele precisava testar a idéia.
—Antes de sair para pegar nossos cafés, observe algo interessante... — Ele arrancou dois dos adesivos com fios ligados ao peito do homem e colou-os na barriga, alguns centímetros abaixo do buraco em cicatrização do tiro — Observe o milagre das pernas não mortas! — Falou a Wilson, e apontou para o monitor, que indicava uma pulsação muito inferior à da parte de cima.
— O quê...?
— Para mim, as pernas têm vida própria, implantada por um alienígena, mas a taylor provavelmente não vai aprovar essa teoria... Mas traga os cafés, Wilson, vamos bancar os detetives.
Os primeiros galos deveriam estar cantando em algum lugar muito distante das enfermarias de tratamento intensivo do Saint Mungus. Dentro de uma delas, porém, uma grande quantidade da parafernália médica estava entulhada nos cantos para dar lugar a dois médicos cansados, que se acomodavam em algo que se parecia muito com uma pequena sala de aula com duas poltronas de chintz — que Wilson sabiamente conjurara depois de muito inutilmente tentar arrastar as de seu escritório até lá — E uma lousa branca improvisada, que nada mais era senão o quadro de avisos do Hospital com uma cartolina branca colada por cima. Harry observava aquilo com interesse, lendo várias vezes todos os sintomas escritos com a caneta permanente que sempre carregava no bolso.
—“Baixa circulação nas pernas”, “Obesidade”, “Tiro”... — Repetia ele várias vezes, a testa levemente enrugada e os olhos fixos. Wilson cuidava do paciente, que agora era monitorado por duas telas separadas, uma contando os batimentos do peito, outra medindo os da barriga e pernas. A circulação da parte inferior continuava muito mais baixa. Faltava uma hora para o efeito da Poção Revigorante acabar, e o diagnóstico ainda era desconhecido.
— Eu acho que você pode acrescentar falência nos rins como sintoma... Ele não urina desde que chegou, e já cheguei ao nível máximo de diurético que se pode administrar...
Harry concordou, e escreveu “Falência Renal” logo abaixo de “Tiro”.
— O que você acha que é Wilson? Dê um palpite...
— Bem sem pensar eu diria que é trauma... Ele deve ter batido a cabeça quando levou o tiro, uma coronhada, talvez... O cérebro pensa que ele não tem pernas, mas isso é completamente impossível, além de ir contra os sintomas... Não podemos descartar doenças mágicas também, talvez alguma rara e desconhecida...
— Sim, ele sente dor, não faria sentido... E acho que não é nada mágico, os sintomas são bem comuns. E, além disso, a menos que o cérebro tenha super-poderes, reduzir a circulação das pernas é impossível. Teria de fechar um círculo para a circulação e impedir que o sangue circulasse para as pernas... O cérebro pode mandar no corpo, mas não fazer milagres...
“A menos, é claro...” continuou ele, em pensamento “que houvesse algo como um estreitamento...” E tudo de repente ficou claro para Harry
— Ele deve ser a coisa gorda mais azarada que existe... — Murmurou.
Wilson ficou calado, e Harry desatou a falar.
— As veias e artérias deste cara são como mangueiras entupidas de sujeira... Essa — O médico desenhou uma faixa na lousa e a pintou de azul, com a língua entre os dentes. — seria a veia cava inferior, enquanto essa — desenhou uma faixa vermelha ao lado — seria a artéria cava inferior.
“O problema dele...” Ele desenhou pequenos pontinhos pretos nas bordas de cada faixa, que de tão próximos faziam a veia a e a artéria se estreitarem, começando largas, afinando no ponto onde os pontinhos se acumulavam, e depois se alargando novamente, como ampulhetas. “É que a gordura dificulta muito a circulação, pois as veias estão entupidas de colesterol, gorduras e todas aquelas porcarias que você viu no Supersize Me
“Quando ele levou o tiro, o projétil, para seu enorme azar, passou exatamente entre essas duas veias, mas precisamente acima deste estreitamento... E, por um milagre se alojou em um lugar que não oferecia perigo momentâneo.
“Porém quando a cicatrização começou, o corpo, ajudado pela essência de ditamno, formou uma espécie de ponte, uma fístula entre a veia e a artéria, que haviam sido pegas de raspão pelo tiro” Desenhou então uma faixa verde ligando as duas faixas pintadas, acima dos estreitamentos. “O sangue então encontrou um caminho muito mais fácil do que as veias entupidas que levavam às pernas e também aos rins.
“A parcela do sangue que ‘escolhe’ os rins é muito pequena, de forma que toda a transmissão de calor, sais e até o próprio trabalho dos rins acaba sendo retardado, e por isso, tudo lá circula com tamanha lentidão que ele parece estar morto naquela região... Esse é o motivo do frio e da dor. E é por isso que parece que os ris estão podres...”
— Precisamos fazer um alargamento e liberar o fluxo de sangue para os rins... Mas como vamos tratar a fístula?
—Não podemos fazer nenhum dos dois. Quando fossemos inflar o cateter ou qualquer outro dispositivo que fosse alargar a veia ela poderia explodir, ainda mais do jeito que está fragilizada... E como não podemos desentupir o cano, não dá para tirar o caminho mais fácil... Senão ele podia piorar, ou morrer por inteiro.
—Então, o que você...
—Vamos ter que mantê-lo vivo até que perca uns bons quilos... Estou prevendo que a Taylor vai adorar essa idéia.
—Como é que é? — Catherine Taylor levantou-se da elegante cadeira almofadada em sua sala. Seu rosto sério adquiria um quê de superioridade graças à organizada mesa à sua frente.
Harry também estava sério.
—Ele vai morrer logo... Os efeitos da Revigorante e da Morfina vão começar a passar, e ele vai voltar a gritar... E o mais legal de tudo é que se eu injetar mais uma gota sequer de Poção Revigorante nele nas próximas quarenta e oito horas... O segredo do Priorado de Sião vai ser perdido para sempre — Harry enfatizou aquela última parte com uma voz falsamente dramática — Resumindo, ele morre. Por inteiro desta vez... Não que ele tivesse morrido antes, não é?
—E sua sugestão é que, ao invés de usarmos esse tempo para bloquear a fistula e abrir os estreitamentos, o que qualquer médico sensato faria, façamos outra ligação artério-venosa, mas agora em outro lugar?
—Isso, abaixo do tiro. Então eu o coloco em uma daquelas maravilhosas máquinas que substituem o coração na parte de baixo e em hemodiálise na parte de cima...
Catherine demorou a falar, e quando o fez, parecia prestes a chorar, o que Harry estranhou.
—Por que não pode simplesmente fazer do jeito normal?
—Pergunte ao Wilson, ele pode repetir toda a minha explicação em termos técnicos e difíceis... eu acho.
—Por que você não o faz?
—Por que você não me diz por que está chorando à custa da vida de um gordo moribundo? Por que você se importa? — Harry desafiou.
—Você primeiro. — Falou ela, olhando-o com firmeza. — Por quê você tem que usar todas essas extravagâncias para cuidar do Sr. Drey?
—Quem é esse?
—Seu paciente — Ela se irritou
—Para mim ele se chamava “Cara Gordo”, mas tudo bem... O que importa é que o estreitamento foi causado por um acúmulo de gordura nas veias. Quando inflarmos o cateter para alargar a veia ela explode.
—Só isso?— Ela parecia assustada com a simplicidade da resposta.
—Yep!— Respondeu ele, sorrindo com o canto da boca — Por que o cara gordo é importante para você?
Ela o olhou com um pouco de receio, como se a resposta fosse algo de ruim.
—Ele é meu tio... Tio Diddy, era como eu o chamava quando era criança... Há uns vinte anos que não o via... Desde que ele se mudou para o interior...
—Ahá! Foi por isso que me chamou aqui? — Harry sorriu — Diga que sim e logo o seu “Te chamei aqui para consertar o seu erro” vira “Te chamei aqui por que confio na sua capacidade como médico”. Diga não e... Você não vai dizer não. Mas há ainda uma terceira opção, em que você me beija e o seu “Te cham...”
—Sim.
Harry continuou sorrindo, virou as costas e mancou até a porta, o joelho esquerdo doendo como sempre.
Precisava ir rápido, tinha vinte minutos para salvar aquele homem. Pegou três frascos de ditamno na farmácia do hospital e arrastou as duas máquinas das quais precisava — O coração e os rins — até o centro cirúrgico, onde um Wilson incrédulo aguardava a cirurgia que, para sua surpresa iria mesmo acontecer. Ao seu lado permanecia o paciente, adormecido.
—Ela aceitou?—Perguntou o mais baixo dos dois médicos, agora ajudando o outro a levar tudo até uma das salas de cirurgia.
—Claro! Tio Diddy não pode morrer...
—Tio?— Wilson perguntou, com uma expressão disfarçada de quem apenas fingia não saber. Harry não percebeu.
—É tio dela, vamos, me ajude aqui. — Os dois empurraram a cama até a sala. Harry sentiu o joelho arder muito enquanto empurrava a cama pesada. — Temos quinze minutos, e logo o efeito da morfina e da revigorante acaba de vez.
Wilson cobriu o corpo, deixando a mostra apenas a área que Harry precisaria cortar. Este fez um quadrado de quinze por quinze centímetros de caneta no local em que cortaria, pouco abaixo de onde havia a cicatriz do tiro. O local estava um tanto pálido, graças à falta de circulação do sangue, o que facilitava a visão dos traços.
Riscou o quadrado com a ponta da varinha, desta vez fazendo um corte bem profundo na pele do homem. Retirou com dificuldade o grosso e pesado quadrado de pele.
—Está aberto — Falou Wilson, e Harry considerou a frase potencialmente desnecessária — E temos doze minutos.
Harry observou o local aberto. Logo abaixo de onde o paciente levara o tiro, as veias estavam inchadas, graças ao excesso de gordura no local. Mas as continuações dos vasos sangüíneos passavam do inchaço para o exato oposto daquilo, de modo que, uns três centímetros abaixo, a veia e a artéria estavam murchas e ressecadas.
—Preciso de uma pinça emborrachada — falou, e Wilson o entregou sem falar nada. Harry então apertou veia e artéria, logo abaixo do estreitamento inchado, uma contra a outra, e realizou então um pequeno corte coma varinha entre as duas.
—Nove minutos. — Wilson avisou. Harry derramou uma medida de poção cicatrizante de ditamno sobre o local, que não sangrava muito. Lentamente foi soltando a pinsa e jogando mais da poção sobre o local. Cerca de dois minutos depois, já era visível uma ligação entre aqueles dois vasos sangüíneos.
—Faltam sete minutos... Não vai dar tempo de você...
—Vai. — Harry o interrompeu, agora já abrindo um buraco acima do tiro, sem passar pelo procedimento da caneta. — Passa os tubos da diálise.
Wilson lhe entregou dois tubos finos de borracha, que Harry inseriu nos locais corretos, e passou a poção cicatrizante, encaixando a seguir a pele novamente no local, derramando muita poção sobre os ferimentos, que iam se fechando como se pontos invisíveis os costurassem.
—Liga a Máquina — falou, e Wilson obedeceu novamente, por mais que, em seu íntimo, achasse cada vez mais que Harry estava louco. — Quanto tempo?
—Um minuto. O que você vai fazer? — Wilson perguntou, já em um tom de desespero.
—Passa o coração — ordenou Harry.
Já com o tubo na mão — um cano transparente e fino em forma de “T” invertido — Ele abriu um buraco na fístula que acabara de criar, centímetros acima dos rins. Mas quando inseriu o primeiro pedaço do “T” pela fenda que abrira, ouviu um gemido.
— Acabou o tempo, o efeito está passando... — Wilson falou — Tira isso e fecha ele, ele vai sentir muita dor...
Mas ele nem precisou terminar a frase, pois o homem começou a gritar, muito mais forte do que horas antes.
—Silencio! — Harry gritou, a varinha apontada para a cabeça do homem. Ele continuou com a boca escancarada e com os olhos cheios de lágrimas, mas agora não emitia som algum.
—Não, isso é cruel demais... — Wilson falou, indignado, enquanto Harry terminava de inserir o tubo em T na fístula — Você é desumano, como pode...
—Vamos, para de falar e me ajuda a fechar aqui em baixo... pega a cicatrizante que eu encaixo a pele.
A dor foi diminuindo à medida que os médicos fechavam a barriga de Dorlan, e logo seus batimentos se normalizaram e seus gritos mudos diminuíram para gemidos chorados.
Harry executou um contra-feitiço e ele recuperou a voz.
—Você está bem... Assim que conseguirmos desentupir suas veias e artérias, você vai poder sair daqui. — O médico falou, enquanto o homem, que derramava lágrimas, o olhava com receio e dor. — A propósito, você ficou literalmente “com os pés na cova” graças à sua compulsão alimentar...
—Não importa — Ele respondeu, fraco e choroso — Quando eu tiver que morrer, eu vou morrer. Não vou abrir mão daquilo que gosto de fazer apenas para ganhar mais alguns anos de vida...
—Você é quem sabe. Mas já parou para pensar que quem mais pode passar mais tempo comendo as comidas terrenas? No paraíso só tem pão asmo e leite desnatado.
—Vamos te levar para um quarto, e lá você ficará em observação por alguns dias, antes de receber alta — Wilson interrompeu a discussão, empurrando a maca em que o homem estava deitado com muita dificuldade. — O horário de visitas começa às oito
—Acho que não vou ter visitas... Não tenho parentes ou amigos...
—Eu não teria tanta certeza assim... — Respondeu o oncologista, olhando para o lado e sorrindo disfarçadamente. Mas Harry já não estava mais ali. Wilson procurou e encontrou o colega alguns metros atrás, sentado no chão.
—Tropecei— Adiantou-se a mentir, seu joelho ardendo de dor. Esperou o outro médico virar de costas antes de se levantar, com auxílio da parede ao seu lado.
—Tio Diddy? — A voz da doutora Taylor veio de um canto distante do apartamento do hospital, e o homem, ainda ligado à diverso fios, tubos e quatro máquinas, olhou para a porta, satisfeito e surpreso.
Já era escuro, passava das dez, e ele, como previra, não havia recebido visita alguma, exceto a da enfermeira que viera periodicamente fazer a manutenção da sonda urinária que ele usava.
— C- Catherine! — Ele gritou, feliz e assustado. — faz tanto tempo...!
Ela caminhou até a cama e sentou ao seu lado.
—Quem diria, tio... Que nos encontraríamos desse jeito, depois de tantos anos... E, se não fosse Harry...
—Ele salvou minha vida... Onde será que ele está agora?— sorriu o homem, e aqueles outros três queixos surgiram em seu rosto.
—Pelo pouco que o conheço, não duvidaria que ele estivesse nos espionando atrás da persiana... Ou para olhar meu decote quando eu me abaixasse, ou para ouvir as histórias de família, o que eu certamente não irei contar...
Ela caminhou distraidamente até o cordão de contas das persianas que cobriam todas as paredes de vidro e puxou.
—Ele não está aqui, certo? — Falou Diddy, rindo gostosamente — pelo jeito ele não é tão mau assim... se bem que lançar aquele feitiço silenciador em mim foi cruel... Eu estava com dor!
—Ele fez isso? — Catherine olhou para o tio, que há muito não via, com compaixão e pena.
—Não tenha pena de mim... Eu acho até que merecia sofrer um pouco... mas será que o Doutor Potter volta a tempo de eu agradecer? Quando eu fiquei bom, lá na sala de cirurgia, fiquei muito nervoso, e depois ele sumiu de repente... Não consegui agradece-lo.
—Acho que você ainda vai vê-lo algumas vezes, ele é o seu médico, e vai ter que acompanhar seu caso até que o estreitamento seja curado e as fístulas interrompidas. Ele deve estar em casa descansando... Ele, Wilson e eu viramos a noite aqui no hospital... Ele acabou se dando mal, por que já tinha trabalhado o dia inteiro... Eu e o Wilson já havíamos descansado, por que tínhamos plantão a partir das quatro... mesmo assim tive de tirar o James da cama no meio da noite, coitado...
—Dorlan Drey seu verme inútil!
A voz áspera veio da porta. Dorlan olhou para lá, quase tão rápido quanto Catherine, que ao mesmo tempo se levantou, a varinha em punho dentro do bolso. Um homem mal-arrumado entrou mancando no quarto. Sua perna de pau estalava no chão limpo, e um de seus olhos era coberto por um tampão preto. Seus cabelos eram longos e embaraçados.
—Tira esse cara daqui, Cathy! — Didy falou, assustado. O monitor mostrou seu coração verdadeiro acelerando, e logo em seguida, como estava programado para fazer, o coração mecânico o imitou, acelerando também.
—Você me deve uma grana, Dorlan, e vai me pagar...
—Mentira! Tira esse cara daqui, chama o segurança, alguém... Ele choramingou com desespero, O invasor apenas riu, colocando a mão no bolso do casaco surrado que vestia.
—Lembra da última vez, Did-dy ?— falou, ainda rindo. Foi quando ele então tirou a mão do bolso, segurando firmemente o cabo do revólver que apontou para a cabeça de Dorlan.
A doutora Taylor não esperou mais, e um jato vermelho atingiu o caolho no peito. Ele disparou a arma, mas já estava caindo quando o fez, de modo que os danos causados foram todos ao teto.
Ela virou-se então para o tio, seu coração quase tão acelerado quanto o dele.
—O que ele queria? Que história louca é essa? Ele falou de dinheiro, e...
Mas o homem estava calado, apenas emitindo o som acelerado de sua respiração ofegante. Catherine se sentou ao pé da cama.
—Pode confiar em mim, tio. Não vou fazer nada que não seja para lhe ajudar... É como quando eu era criança, lembra? É verdade o que esse homem falou? Você deve dinheiro para ele?
Diddy ofegava, respirando muito rápido e fundo, seu coração continuava acelerado e ele parecia não conseguir elaborar as frases que queria proferir.
—Cathy...Você está sentada nas minhas pernas? Cathy está queimando! Faça alguma coisa... Ahg, Cathy!
Ele começou a gritar. Catherine viu que a bolsa de urina da sonda estava cheia, o que a fez ficar ainda com mais raiva quando chamou por assistência.
—Enfermeira! — Repetia ela, ao ver que ninguém se aproximava do quarto. — Calma, tio... Vai ficar tudo bem... ENFERMEIRA! Precisamos levar um paciente para a UTI agora, Rápido!
—Então... —Harry Potter entrou bruscamente na UTI do Hospital St. Mungus, exatamente como fizera menos de 24 horas atrás. — Espero que já tenha administrado algo para a dor dessa vez, nas duas metades dele...
—Sim — A doutora Taylor respondeu —E já fizemos ele dormir de novo.
—Ah, olá Wilson. —Ele apertou a mão do outro médico, que aguardava ao lado de Catherine.
—E o paciente já foi coberto com os cobertores frios? — Harry indagou. Taylor e Wilson se entreolharam. —Vocês pelo menos já tiraram a temperatura das pernas? — Houve uma nova troca de olhares antes de Wilson se dirigir à porta. Harry entrou logo atrás dele. Seu joelho ainda doía.
—Você está mancando —Taylor disse, um pouco preocupada.
—Sério?—Harry riu
—Desde quando isso?
—Há meses isso dói... Mas ontem piorou a dor... Não tinha mancado até hoje de manhã.
—Por que não toma remédio para dor?
—Você se importa... — Harry sorriu, mas ela permaneceu sem expressão facial.
—Você fica menos eficiente quando manca... — Respondeu, observando Wilson tentar cobrir pernas e barriga do homem com um só cobertor, o que era evidentemente impossível.
—Da última vez em que mentiu e usou o trabalho como desculpa terminamos sozinhos em uma sala, com trinta e três por cento de chances de acabarmos nos beijando...
—As chances eram menores que um por cento, na verdade...
—Wilson—Harry mudou o assunto, e Taylor sorriu triunfante – Coloque uns quatro cobertores ou vamos ficar aqui até amanhã...
—Aliás, Harry... —Taylor falou quando Wilson pegou mais duas cobertas do armário — Ele não tinha dito que havia sido baleado em um assalto?
—Sim, mas...
—Por que ele mentiu?
Harry correu os olhos pelo homem adormecido, como se lesse sua mente, mesmo que não pudesse fazê-lo.
—Todo mundo mente, Catherine... Não importa se é para parente, amigo, filho, namorado ou médico... Todos mentem, e muito.
Ela abriu a boca para responder, mas logo depois a fechou, não podendo encontrar argumentos.
—Então, Catherine, vai se unir ao nosso time? — Wilson perguntou, agora se sentando numa das poltronas que conjurara na madrugada anterior.
—Acho que, com tudo o que aconteceu, não vou conseguir dormir mesmo... — Então Harry reparou como as olheiras estragavam a aparência do rosto dela... O nariz, que era completamente simétrico e reto, parecia ter o dobro do tamanho quando posicionado entre as marcas escuras. Os olhos verde-acinzentados aparentavam agora estar cravados no fundo do rosto, como se afundados em seus orifícios.
—Acho que vamos ter que conjurar mais uma poltrona, e vários cafés... — Wilson falou, e Harry viu que o rosto cheio e liso dele também estava cansado, mas ele não possuía olheiras.
—Vocês dois usaram a tarde para quê? — Harry perguntou, com o rosto limpo e sem sinais de cansaço.— Trabalho?
—Sim... Antes trabalhar hoje e folgar domingo do que ter que passar o fim-de-semana trabalhando... —Taylor riu, e Harry a acompanhou.
—As horas que eu iria dever hoje já paguei segunda-feira, lembra? Mas vamos ao nosso amigo gordo — Ele pegou a lousa improvisada e deu um toque de varinha para ela voltar a ficar branca. Começou então a montar um novo quadro de sintomas.
—Primeiro: Ele é gordo — Escreveu a última palavra nos cantos direito e esquerdo da lousa. — Era antes de colocarmos as máquinas, e continua sendo agora.
“Segundo: Ele levou o tiro, o que levou a fistula entre veia e artéria”.— Ele escreveu “Fístula” em ambos os lados, abaixo de “Gordo”.
—E agora ele tem uma nova fístula, abaixo do tiro, aquela que criamos e que anteriormente ele não tinha. — Wilson opinou, e Harry escreveu “Fistula 2” à direita.
—Antes ele não tinha circulação abaixo dos estreitamentos, e nem tinha os rins funcionando, certo? — Harry concordou e anotou aquilo que Catherine falara à esquerda.
—Agora ele sente muito calor — Falou, pensativo — E antes ele tinha era muito frio... — E anotou “Frio” e “Calor” no quadro.
Ninguém mais deu opiniões, e ele também achou que nada de mais significativo havia ocorrido. Sentou-se na poltrona e apenas observou o quadro por longos minutos antes de falar.
—Tomografia, para procurar tumor no cérebro... Perto do hipotálamo.
—A região que controla o frio e o calor do cérebro... Mas nasceria justamente ali? São coincidências e tanto! —Wilson perguntou, surpreso — Isso é uma jogada de risco... Você sabe o tamanho do hipotálamo, sabe as possibilidades de nascer qualquer coisa ali...
—Não sei, na verdade... Você é o oncologista, entende de tumores melhor do que eu... Melhor que todos do hospital, conforme ouvi falar.
—Acho que é impossível... O câncer teria manifestado outras coisas antes... Ele só passou a ter calor depois que o curamos... Além disso, por que o hipotálamo só enviaria informações para a parte de baixo?
—O câncer pode ter causado uma disfunção... — Harry tentou sustentar,e em seguida apelou — O que é que custa tentar fazer o exame?
—Fora trezentos mil euros para consertar a máquina se ele porventura acabar entalando ou quebrando a cama móvel. — Taylor se manifestou — Talvez percamos um tempo precioso para salvá-lo... Vamos desistir disso.
—Façam um raio-X então... Pelo menos isso.
—Mas...
—Faça isso. Queria que eu cuidasse desse caso, então deve pelo menos ouvir as minhas opiniões. Quer ver seu tio vivo, não é? Todos nós queremos. Façam a radiografia. — Ele respondeu sério, seus olhos fixos nos dela, que vacilavam em várias direções ao invés de olhar os dele. O joelho de Harry estremeceu, ele se desequilibrou e quase caiu.
—Deveria comprar muletas —Taylor falou, mas sem rir. Ajudou então Wilson a empurrar a cama pesada para fora do quarto.
“Talvez eu deva” Harry pensou, seguindo então os outros três, olhando por vezes para o chão, por outras para a cintura da doutora Taylor.
O centro de radiografias do St. Mungus foi a primeira coisa que impressionou Harry naquele hospital. “Ou talvez a segunda” disse mentalmente, lembrando-se da primeira vez que viu a diretor Taylor, no dia anterior.
Diversas camas muito largas de ferro eram separadas por paredes divisórias de um material que impedia a propagação do som, o que tornava o local estranhamente silencioso. Dentro de cada “quarto”, havia, além da cama, a aparelhagem de radiografia mais moderna que Harry já vira.
—Onde o St Mungus arranjou esses brinquedinhos maneiros? — Perguntou, ainda fascinado pelos equipamentos. Além de visivelmente eficientes, as peças e acessórios eram de uma majestade incrível, fazendo aquela máquina ser também a mais bonita que existia.
—Trouxas. Vai lançar no mundo deles ano que vem, mas, você sabe... O ministério sempre consegue o que quer... Mas isso custou muito mais do que os olhos da cara do ministro... Custou os olhos da cara de todos os bruxos pagantes de impostos...
—Eles pagam, nós ganhamos... — Harry sorriu —Vamos, coloquem-no na cama... Acho que agüenta... Se não agüentar é melhor evacuar o prédio, por que quase três mil newtons no chão causariam um tremor do cão.
—Ela suporta a te meia tonelada, e possui uma superfície especial feita com uma liga de paládio e ferro... —Wilson falou, e Harry ficou maravilhado com aquelas palavras — Vamos, ajude aqui...
—Por favor? Sim — O grisalho falou e caminhou até a maca onde o homem permanecia. Seu joelho doía.
—Um, dois... — Os dois empurraram o homem com força, de uma cama para a outra. Ele rolou e ficou deitado de bruços na fria maca de ferro, e eles tiveram de retirar os cobertores frios e arrumar todos os fios aos quais ele estava ligado, para que eles não enleassem. Somando os da diálise, do coração mecânico, mais os fios do monitoramento cardíaco já davam sete, sem contar ainda o soro e a sonda...Sonda.
—Não liga a máquina.
—Quê?—Catherine e Wilson olharam incrédulos — Não estava nos obrigando a tirar essa radiografia a todo o custo? — Completou ela.
—Não é tumor no hipotálamo... A menos que um tumor cause aquilo... —Ele apontou para a bolsa da sonda. Onde deveria haver urina, havia sangue escuro. Abaixo da bolsa, havia mais uma pequena poça de sangue, onde o líquido pingava sem parar. Em toda a extensão do caminho pelo qual Dorlan Drey fora levado, o rastro de sangue e urina se espalhava, e Harry pôde observar que a concentração de sangue diminuía com a distância.
—Se meu prognóstico for correto. Harry olhou para Taylor com um pouco de desdém — Você vai ter que demitir alguém amanhã... mas por enquanto só precisamos esperar...
—Esperar até a morfina e o remédio para dormir perderem o efeito... Hum, e isso já está acontecendo... —Comentou, caminhando até o homem, que soltara um grunhido audível.
—Mas isso o fará sentir o calor insuportável novamente!
—E é isso que eu quero. Ele precisa responder a algumas perguntas, a dor é o maior dos incentivos para se falar a verdade... Hei, gordão, está me ouvindo?
—Ahg! — Grunhiu Dorlan, confirmando com a cabeça. — Harry cobriu as pernas dele com uma das cobertas frias e úmidas. O alívio foi imediato, porém apenas momentâneo.
—Eu tenho mais três desses aqui. Mas só vou cobrir você se cooperar... Responda com a boca, se conseguir... — Harry tentou negociar —O que o homem que lhe deu o tiro era?
—Do...Dono... —Tentou falar, mas logo a dor o calou.
—Dono de um bar?
Dorlan confirmou. Harry lhe jogou por sobre a barriga outro cobertor gelado.
—Ele falou que devia dinheiro para ele... É verdade? Foi por isso que ele atirou em você? —Harry perguntava sério, o que tornava a cena muito tensa, visto que Diddy recomeçara a gritar.
—Não...ahg. — Falou, entre gemidos. A expressão de Harry adquiriu então um tom meio maldoso, ele não soube se era pela dor que sentia na perna esquerda, pela visível mentira do homem ou por ambas as coisas. Apostou nesta última.
—Você não contou bebida deste homem? Nunca?
—Não... Não... Ah! —Gemeu. Harry perdeu a paciência, e Taylor, mesmo percebendo isso, não teve coragem de intervir.
—Olha, vamos deixar as coisas bem claras: Você está urinando tanto que não me surpreenderia nem um pouco se visse seu rim aparecer ali naquele saquinho da sonda... E olha que isso vai doer, por que a sonda está ligada na sua uretra... Então, é melhor você falar, por que não vou injetar um pingo de morfina em você... a falta do antidiurético é a única alternativa que me restou... Você bebeu? — Harry tentou arrancar aquela confissão dele, jogando os outros dois cobertores frios sobre dorlan — Fale a verdade.
O silêncio que se seguiu preocupou a todos. Wilson parecia impressionado com a energia que Harry emanava, que o tornava mais intimidador do que já parecia.
—Eu bebi. Assim que saí do hospital fui ao bar da vila onde moro... Não ao do Jack Caolho... Não... Ele iria me matar se eu voltasse lá... Exatamente como tentou fazer... — Ele vomitava as palavras com uma velocidade tão grande que até Harry sentia dificuldade para assimilar tudo.
—Como ele tentou fazer com você quando te deu aquele tiro... E como ameaçou fazer algumas horas atrás...
—Sim... Então eu fui até aquele bar ao lado de casa e bebi. Bebi até sentir que eu já não podia mais... Sempre gostei de beber...
—E isso está te matando... Exatamente como a comida em excesso fazia antes... E do mesmo jeito os cigarros matam os que fumam, as drogas aqueles que as usam em excesso, as mulheres acabam levando os homens ao óbito também... Seja de desgosto, de amor, ou usando decotes juntos dentro de hospitais... No final, todos morremos... Oh, o significado da vida!— Falou, satírico, injetando uma seringa medida de morfina no soro de Dorlan.
—Mas como o corpo permaneceu tanto tempo sob a inibição do ADH causado pela bebida? —Wilson questionou, interessado.
—É aí que a doutora Taylor demite alguém... Como eu gosto de demissões! E o sorteado é... O farmacêutico, que fez a Poção Revigorante que demos para ele ontem... Pelos meus cálculos, ele colocou mais losna do que deveria, o que acabou fazendo a hipófise, que controla a liberação do hormônio anti-diurético, congelar em seu estado atual, que no caso era sob forte efeito de bebida...
“Com a falta de sais para serem filtrados pelos rins e as constantes ordens do cérebro para que os eles filtrassem o sangue, o corpo aos poucos foi liberando toda a água da parte de baixo na urina, o que gerou uma desidratação intensa nas pernas, que aos poucos foram secando por dentro... Então, o sangue começando a ser liberado ao invés da água pura...
“Por sorte, o problema de Hipófise pode ser resolvido com um simples feitiço, e então volta a funcionar normalmente...”
Harry apontou a varinha para um ponto entre a têmpora e o ouvido de Dorlan e murmurou “confundo” agitando a varinha levemente no sentido horário.
—Pronto... Agora basta colocarem tudo o que falta no corpo dele dentro do soro, incluindo muita água, e logo a metade inferior vai se normalizar...
“Depois, ele vai precisar ser tratado por um nutricionista para conseguir um regime balanceado e que limpe toda a sua ‘tubulação’... E seria bom ele freqüentar uma reabilitação para o alcoolismo... Quando ele começar a ter sopro no coração, desliguem as máquinas e fechem as pontes entre as veias, mas isso ainda vai levar semanas...”
—Obrig... —Dorlan Drey começou, mas Harry já havia saído da sala, mancando. Devia estar na metade do corredor quando Taylor o alcançou.
—Ele ia dizer “obrigado” a você!
—Não faz diferença.
—Para qualquer médico faria...
—Não para mim... E eu sou um médico... Para quase qualquer médico faria diferença... Acho que ele nem de fato agradeceria se não fosse isso que os outros fazem... é Educação, não gratidão.
—Acho que você está errado...
—Quem se importa? Ninguém muda de idéia, só muda de ângulo, de argumentos e de exceções. No final, ele vai voltar a comer, você vai emprestar dinheiro para ele pagar o Jack Caolho, e ele vai voltar a beber... Ninguém mudou, afinal... E é isso o que torna tudo melhor... Talvez isso seja ser humano.
—Obrigada — Taylor olho nos olhos dele, o seu acinzentado se chocando com o verde de Harry —Você salvou meu tio... Acho que te devo essa...
—Assim como ele devia para o dono do bar, você quer dizer? — Ele sorriu — Estaria disposta a fazer uma dívida com um cara que conhece há dois dias por um que não vê há vinte anos?
—Acho que sim... Se você não viesse me dar um tiro depois... — Ela riu — pode ser que sim...
—Pague com um escritório —Falou, desafiante.
—Vou entender isso como um “De nada” —Ela respondeu, virando as costas e saindo, com a estranha impressão de que ele ainda a olhava.
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