Adágio
Parte 3. Adágio
Ginevra Molly Weasley nasceu em 10 de agosto de 1881, na Itália. Mais especificamente em um camarim do Teatro Municipal de Roma. Vir ao mundo durante a temporada de espetáculos mais de um mês antes do previsto seria apenas a primeira surpresa que a caçula daria aos pais. Não demoraria muito a vencer as primeiras barreiras do nascimento prematuro para absorver o ambiente cultural em que vivia a família e tornar-se uma espécie de prodígio. Tinha efetivamente pressa de crescer.
A família Weasley pertencia historicamente ao mundo da arte. Arthur Weasley estreara como músico aos 15 anos. Três anos depois, casou-se com a amiga de infância e colega das aulas de música, Molly Prewett. Molly era cantora e apenas algumas semanas após o casamento recusou um convite para se juntar ao Real Conservatório de Música do Reino Unido. Àquela altura, já esperava o primeiro filho. Passaria os anos posteriores falando sobre como a gravidez alterava terrivelmente seu timbre de voz. “Nunca consegui cantar tantos agudos quanto naquele tempo”, diria.
Nunca chegaram a ficar ricos. Artistas naquela época raramente eram ricos, a não ser que já tivessem nascido numa família abastada. A dificuldade das turnês que duravam anos não fez com que o casal perdesse a paixão e os filhos se sucederam, como numa escadinha: todos meninos de olhos castanhos e cabelos de fogo, que não tardariam a ser o principal cartão de identificação de um Weasley no meio artístico. Molly às vezes brincava dizendo que em pouco tempo seriam uma família grande o bastante para montarem sua própria companhia. Porém, à medida que os meninos cresciam, eles tinham que fazer escolhas. Acabaram abdicando da companhia dos filhos mais velhos nas turnês para mandá-los a um colégio interno londrino.
A pequena Ginny, no entanto, era um problema mais grave. Aos poucos ficou claro que aquele não era um mundo para se criar uma mocinha. Fugia dos cuidados do irmão responsável por ela para passar por debaixo das cortinas de veludo vermelho dos teatros e ficar espiando os ensaios da companhia. Tinha verdadeira fascinação pelas valsas românticas. Gostava de entrar escondida nos camarins, vestir as fantasias do corpo de baile e descer ao fosso da orquestra para ficar batendo nas teclas do piano como uma louca até que alguém viesse descobrir o motivo do barulho intolerável. Claro, era uma criança. E todos os seus irmãos haviam feito aquilo. Mas o fato é que Ginevra era uma menina e não tinha nenhuma noção de como se comportar segundo as conveniências sociais. Vivia com os sapatos sujos, vestia roupas dos irmãos, reclamava que com os vestidos era impossível correr.
Aos oito anos foi convocada para ser dama de honra de Giuseppina Valois, grande amiga de sua mãe que fazia parte de uma companhia de balé italiana. Molly Weasley viu no evento a oportunidade de convencer Ginny da importância de aprender a se comportar como uma dama. Foi um grande fiasco. Ginny nem sequer conseguia andar direito com os sapatos de cetim. O vestido foi refeito três vezes. A energia da menina a impedia de ficar parada durante as provas e invariavelmente tornava-os inúteis para a cerimônia, fosse manchando a manga de renda na graxa da dobradiça de uma porta, fosse pisando na barra da saia rodada, fazendo com que se soltasse do corpete.
A cerimônia aconteceu em Roma, no fim de maio. Ginny esperou a chegada da noiva no alto da escadaria da igreja. Um vento forte ameaçava destruir completamente seu penteado. Nuvens cinzentas no céu ameaçavam desabar a qualquer momento numa forte tempestade. Giuseppina chegou numa carruagem e subiu correndo os degraus de mármore. Ginny ficou encantada com o modo como ela conseguia correr daquela maneira e, ainda assim, parecer que flutuava, como se os pés mal tocassem os degraus. E Giuseppina nem mesmo estava ofegante quando se juntou a ela. Então era assim que uma dama fazia?
“Ginny, pegue esta rosa”, sua mãe lhe estendeu a enorme flor vermelha, com uma fita branca de seda amarrada no galho comprido. Ginny ficou por alguns instantes olhando para as pétalas. Sacudiu a cabeça negativamente e fez um movimento para se afastar, mas Molly a segurou pelo braço. “Pegue, não tem espinhos”.
Ela acabou pegando. Segurou o galho apenas com as pontas dos dedos, por cima da fita branca. Sentia-se segurando uma coisa asquerosa. “Sorria, Ginny”, ela ouviu alguém dizer enquanto a conduzia para a porta principal da igreja. Mas não conseguia sorrir de maneira nenhuma. Parecia ter se esquecido como fazer. Também estava alheia ao que fazia com os pés e todas as recomendações para caminhar com graça e leveza desapareceram de sua mente enquanto avançava pelo tapete vermelho num andar quase sonâmbulo, a flor estendida à sua frente, com o braço esticado para que ficasse o mais longe possível de seu corpo. A cena fez alguns dos convidados esboçarem sorrisos discretos. Já estava próxima do altar quando Ginny não suportou mais e atirou a rosa no chão. Instantaneamente, voltou ao normal e venceu rapidamente o último trecho a fim de ficar perto dos pais.
A história de como Ginevra tinha medo de rosas quando pequena nunca deixou de ser contada pelos Weasley como uma anedota engraçada, embora no momento o fato não tivesse sido menos que profundamente constrangedor. “Não gosto de flor nenhuma, e daí?”, perguntava a menina quando os irmãos riam do relato. Mas não era verdade. Ginny gostava de flores, embora não admitisse o fato. Ela não suportava eram as rosas. Todas as rosas lhe provocavam a sensação de repulsa, principalmente as vermelhas.
Como um pedido de desculpas, os Weasley foram, nas férias escolares de julho daquele mesmo ano, ver Giuseppina Valois dançar uma coreografia criada pelo marido no Real Balé de Londres. E se Ginny ficara encantada com o modo leve como Giuseppina correra pelas escadarias da igreja, a imagem etérea da bailarina subindo nas pontas dos dedos e esvoaçando como uma pluma de um lado a outro do palco deixou a menina encantada. Seus pequenos olhos castanhos não se desviaram um instante do espetáculo, ato após ato, enquanto os irmãos, entediados, saíam do camarim e se ocuparam em conversas no corredor. Naquele dia, a pequena Ginevra descobriu que algumas pessoas podiam, sim, voar.
“Dança? Mas ninguém na família estudou dança”, observou Arthur quando escutou o pedido efusivo da caçula para aprender balé. Ginny fez uma careta de contrariedade e insistiu. Queria dançar sim, não havia nada que quisesse mais. Tinha certeza de que podia, argumentou ainda, pondo-se nas pontas dos pés e tentando girar, mas o tapete ficou preso em seus dedos e ela caiu de costas sobre uma poltrona.
“Não pode dançar”, provocou Rony. “Para dançar é preciso ser delicada, e você é grosseira como um garoto”. Não era bem uma mentira. Mesmo assim, Ginny não pensou duas vezes antes de saltar sobre ele, enfurecida. Claro que podia. Tinha tanta certeza que era como se já dançasse há anos. Não, não era graciosa. Não se sentia nem ao menos feminina. Afinal, rosas eram femininas, não? E ela não suportava rosas.
Foi Molly quem acabou dando o argumento final. O balé faria com que tivesse uma boa postura, a ensinaria a ser mais delicada. “Não sei como não tinha pensado nisso antes”, comentou. E Ginny, então com nove anos, parou de acompanhar os pais nas turnês. Foi deixada na casa de um irmão mais velho, já casado, para poder freqüentar uma conceituada academia de balé da capital inglesa. No natal daquele ano, a menina ganhou de presente seu primeiro par de sapatilhas: cor-de-rosa com uma fita de cetim. Ainda não eram as do tipo usado para se dançar nas pontas dos pés, como vira Giuseppina fazendo, mas isso não impediu Ginny de desfilar pela casa com as sapatilhas, ignorando completamente os avisos de que desse jeito ficariam gastas muito depressa. Ela realmente não conseguia se importar, apenas sentia-se bem fazendo aquilo, como se recuperasse uma parte de si há muito tempo perdida.
“A dança precisa ser interpretativa, e não mera ginástica brilhante, deve mostrar o espírito dos bailarinos”, discursou a professora à nova turma no primeiro dia de aula. Ginny mal conseguia andar numa boa postura usando aquele vestido esquisito com um tecido irritante que se recusava a ficar para baixo. Naquele dia, Ginny chegou a duvidar de que realmente tinha feito uma escolha acertada, mas mudou de opinião quando a professora pôs para funcionar o gramofone. A música leve encheu seus ouvidos e a menina mal conseguiu prestar atenção nas instruções para o alongamento, apenas mirou a própria imagem refletida no espelho. Sentiu a garganta ficar apertada. A Ginny do reflexo era exatamente como ela, mas de algum modo sabia que não estava vendo a si mesma ali, ou pelo menos não só a si mesma.
“Mantenha os ombros baixos e encolha a barriga. Deixe o pescoço livre e relaxado”, explicava a professora enquanto andava entre as meninas e corrigia as posições. “Weasley, o que você olha tanto nesse espelho?”, perguntou, segurando o ombro de Ginny de uma maneira delicada.
Ginny não percebeu. Não tomou conhecimento de mais ninguém, via apenas aquela outra menina mirá-la do espelho, olhando dentro de seus olhos como se quisesse dizer alguma coisa. As lágrimas apenas desceram de seus olhos e ela afastou com violência o braço da professora, precipitando-se pela porta da sala, descendo as escadas o mais rápido que pôde e deixando o prédio da academia.
“A professora disse alguma coisa ruim para você?”, perguntou o irmão no dia seguinte. Ginny mexia a xícara de leite com uma colher prateada, os olhos perdidos na paisagem da janela. Sacudiu negativamente a cabeça.
“Quero fazer aulas todos os dias”, disse por fim. “É isso que eu quero”.
“Agora fouette”, ordenava a professora. E, após poucos meses de aulas, Ginny sabia exatamente como elevar o calcanhar e jogar a perna para o lado dando impulso para girar o corpo enquanto mantinha o equilíbrio sobre a outra. “Não inclinem o corpo, lembrem-se da virtuosidade feminina”. Foi difícil da primeira vez. Depois se tornou um gesto natural. Era tudo uma questão de manter os braços no lugar certo. Tinha agora uma boa noção da elasticidade de seu corpo, sabia como manejar o equilíbrio e aos poucos adquirira familiaridade com o ato de girar as pernas para fora, fazendo joelho e coxa acompanharem o movimento.
Ela progredia. Era doloroso, mas Ginny sentia que quanto mais longe fosse, mais perto estaria da “menina do espelho”. Após um ano de aulas, não a via apenas no grande espelho da sala da academia. Era capaz de encontrá-la até mesmo em seu reflexo nas vitrines das lojas. Com a repetição dos exercícios, veio a prova de que Molly estava certa. Tanto que todos ficaram impressionados ao se reunirem para o Natal na casa dos pais de Ginny e verem com que leveza a menina era capaz de andar, o tronco todo erguido como se fosse suspenso por cordas. Seu corpo ainda infantil parecia até mesmo mais esbelto com aquela nova postura.
“Agora só falta resolver o problema das rosas”, troçou um dos irmãos. Mas isso não era bem uma opção para Ginny. Aprender a gostar de rosas não era como aprender a se movimentar com graça.
“Emoção, Ginevra, você precisa de emoção”, dizia a professora. “Você é uma artista, precisa saber rir e chorar”. Ginny tinha medo da emoção. Dançar para ela era algo tão forte que não conseguia exprimir qualquer emoção sem perder a concentração e cometer erros. Não se sentia uma artista. Não dançava apenas por gostar ou porque quisesse ser famosa um dia, mas por sentir em cada partícula de seu corpo as notas da música, não daquela tocada pelo gramofone, mas de uma melodia que surgia dentro dela cada vez que calçava as sapatilhas e alinhava os pés para começar a dançar. Seu corpo ganhava uma vida exuberante, seus pés seguiam sozinhos, como que enfeitiçados pelo ritmo, sua alma gritava, livre, e havia a sensação de ter encontrado algo que procurara incessantemente por anos. Não havia maior emoção do que aquela e não havia qualquer expressão facial que a traduzisse.
Foi quando estava perto de fazer doze anos que ela o viu pela primeira vez. Desceu as escadas de manhã para dar bom dia à mãe antes de se trocar. Abriu apenas uma fresta na porta da cozinha. Foi o suficiente para virar as costas e correr escada acima a toda velocidade. Entrou no quarto e ficou de pé ao lado da cama, as mãos sobre o bordado da camisola, sentindo o coração aos poucos voltar ao ritmo normal. Virou-se na direção da penteadeira e deu com a outra Ginny observando-a. Estava séria, como se não tivesse visto a mesma coisa que a Ginny fora do espelho.
A menina desviou os olhos e abriu o armário. Trocou-se rapidamente e amarrou os cabelos ruivos. Ela não os deixava crescer antes de começar as aulas de balé, mas agora era mais fácil mantê-los presos no coque quando estavam compridos. Antes de deixar o quarto, olhou mais uma vez para o reflexo no espelho, perguntando-se o que poderia haver de errado. Então teve a impressão de ter visto a imagem piscar com ambos os olhos. Ginny deu um salto para trás, caindo sentada numa cadeira.
“Ginny, está se sentido bem?”, indagou sua mãe, quando a viu se juntar à família na mesa. Ainda tinha a respiração descompassada de descer as escadas correndo. “Esse é Harry Potter, colega do seu irmão na escola”.
Ginny mirou o garoto franzino que lhe sorria do outro lado da mesa. O coração ameaçava se agitar de novo, mas de algum modo ela sabia que era um engano. Não, não poderia ser real. Não sabia o porquê, mas tinha absoluta certeza de que era apenas um mal entendido. Queria poder convencer seu coração disso. No entanto, cada vez que os olhos verdes de Harry Potter caíam sobre ela, a menina esquecia de toda a graciosidade recém-adquirida, simplesmente perdia a concentração no que quer que estivesse fazendo.
No terceiro ano de aulas, então com doze anos completos e enfim se esforçando para aprender a dançar nas pontas dos pés, Ginny foi apresentada ao seu primeiro “partenaire”. Nicolas Didelot nascera na França, mas vivia na Inglaterra desde criança. Tinha cabelos dourados e vivos olhos azuis que incomodavam profundamente a garota. Seu novo companheiro de dança era dois anos mais velho e capaz de saltar e executar no ar um giro de 540º, uma excepcionalidade para um bailarino com sua pouca idade.
Porém, logo na primeira vez em que os dedos compridos de Nicolas deslizaram em sua cintura enquanto ela girava sobre uma perna, Ginny soube que não necessariamente apreciaria as aulas em dupla. Nicolas lhe parecera um garoto muito educado à primeira vista, mas agora via que ele não se importava nem um pouco em se aproveitar da fina saia de tule da menina para tocá-la mais do que deveria. Ela nunca abriu a boca sobre isso para a família, mais porque queria continuar a dançar do que por achar que poderia contornar o problema sozinha. Ela sabia que o pas de deux que estavam ensaiando seria apresentado numa audição do Real Balé de Londres e sucesso ali significava uma vaga na companhia. E, ainda que fosse um depravado, Nicolas era um bailarino perfeito, forte o bastante para segurá-la caso perdesse o equilíbrio, simpático o bastante para conquistar os jurados.
“Nicolas, se afundar mais uma vez essa mão na minha saia, juro que estraçalho seu dedão com a ponta da sapatilha”, ameaçou certo dia, quando a paciência finalmente se esgotou. O rapaz não acreditou que ela fosse mesmo ter coragem, mas não tinha idéia de que estava lidando com uma menina acostumada a revidar as provocações de seis irmãos mais velhos. Ginny não hesitou em usar toda a habilidade de que dispunha para jogar todo o peso do corpo na ponta rígida da sapatilha esquerda quando esta “acidentalmente” pisou no pé de Nicolas. Ela não pôde evitar um riso contido ao vê-lo cair no chão, lívido de dor, segurando o pé.
Depois disso, Nicolas não se atreveu mais a tocá-la descaradamente, embora continuasse a deslizar os dedos em sua cintura quando não havia a menor necessidade. Ginny pediu desculpas na aula seguinte, na frente da professora, colocando no rosto a expressão mais arrependida que conseguiu simular. Quando Nícolas a segurou pela cintura nesse dia e ergueu seu corpo no ar, Ginny distinguiu claramente a garota do espelho sorrindo de satisfação. Foi colocada no chão de olhos fechados, como se estivesse sonhando, e Nicolas pôde ouvir claramente quando seus lábios se mexeram involuntariamente para murmurar um nome. “Tom”.
“Uma flor para uma flor”, falou Nicolas, lhe estendendo uma rosa vermelha. Ginny piscou algumas vezes antes de passar pela moldura da porta, quase se esgueirando para não roçar as roupas nas pétalas. Acabara de chegar à academia e carregava um cabide com o vestido numa mão e o par de sapatilhas na outra. “É o meu pedido de desculpas”, insistiu o rapaz, colocando a flor bem embaixo de seu nariz. Mas, se aquela era a idéia que ele fazia de uma gentileza, se decepcionou terrivelmente quando Ginny perdeu a paciência, arrancou a rosa de sua mão e a atirou pela janela, fechando a vidraça em seguida como se temesse que a flor pudesse tentar voltar. “Eu sei o que você tem, é aquele ‘Tom’ que você mencionou na última aula”. Ginny apenas encolheu os ombros e andou em direção ao vestiário sem conseguir entender por que se sentia ofendida em ouvir aquele nome proferido por Nicolas.
“Esqueça isso, está bem? Não conheço nenhum Tom, não sei o que deu em mim naquele dia”, pediu Ginny antes de um ensaio algumas semanas depois do episódio da rosa. Nicolas passara as últimas semanas fazendo perguntas sobre um suposto namorado de Ginny chamado Tom.
“Aposto que conhece sim”, provocou o rapaz. “Não quer que ninguém saiba que fica imaginando que dança com ele...”
Ginny ficou vermelha e fingiu estar ocupada com as fitas da sapatilha. Ela imaginava dançar com alguém? Nunca tinha parado para pensar nisso, mas agora tinha certeza de que sim. Desde o início, sabia por que a garota do espelho parecia sempre tão feliz quando dançava. O motivo era que, nesses momentos, ela se encontrava com esse alguém perdido. E agora percebera que esse encontro não era meramente do reflexo, ela também reencontrava alguém quando fechava os olhos e simplesmente se deixava levar pela música.
“É bom pensar em alguém quando dançamos, mas isso pode te desconcentrar”, ponderou Nicolas, interrompendo os devaneios da menina. “É claro que prefiro que pense em mim”, ele sorriu e lhe estendeu a mão para que se levantasse. Ainda desnorteada com a nova constatação, Ginny aceitou a ajuda, sem perceber que assim permitia que o rapaz se aproximasse demais dela sem a presença da professora na sala. Nicolas aproveitou muito bem esse momento de distração, puxando a cintura da garota para si e surpreendendo-a com um gesto rápido para trazer seu rosto para perto do seu.
“Sua boca se encaixa perfeitamente na minha”, murmurou Nicolas baixinho quando seus lábios se desgrudaram. Ginny continuava de olhos fechados, a respiração pesada, os braços jogados dos dois lados do corpo completamente sem ação. O rapaz então correu os dedos pelas suas maçãs do rosto, descendo-os em direção ao pescoço e ao decote do vestido. “Você tem marcas no pescoço. São de nascença?”, perguntou, os dedos passeando preguiçosamente entre os dois pontos rosados que a menina tinha do lado esquerdo do pescoço, seus lábios tão próximos ela conseguia sentir o ar expirado aquecer sua pele. Nicolas não percebeu quando Ginny finalmente abriu os olhos.
No instante seguinte, Nicolas caiu contra a barra de alongamento, a mão comprimida contra a bochecha, os olhos vítreos arregalados de surpresa. Ginny tinha a mão erguida acima da cabeça, no rosto uma expressão de fúria. O rapaz ainda resmungou algo enquanto olhava para o próprio rosto refletido no espelho e constatava as marcas nítidas de cinco pequenos dedos. “Você é muito estranha”, concluiu ele, deixando a sala o mais rápido que podia na tentativa de ir embora antes que a professora voltasse. Ginny, de todo modo, não poderia dizer que era uma afirmação falsa.
Teve aula sozinha naquele dia, e foi um verdadeiro desastre. Não conseguia se concentrar, as pernas tremiam, a respiração se recusava a fica estável. Acabou ficando depois da hora, sentada diante do espelho, admirando a maneira acusadora como o reflexo a mirava. “Mandei ele embora, duvido que aquele idiota vá tentar outra coisa”, ela tentou se justificar, mas no minuto seguinte achou que estava sendo ridícula falando com um espelho. Tirou as sapatilhas e levantou-se para ir trocar de roupa quando percebeu que a menina do espelho tinha os braços curvados de uma maneira estranha para frente. Ginny virou o rosto, tentando compreender o que ela queria lhe dizer. Aproximou-se do espelho, ficando quase com o nariz colado no vidro gelado. Sua respiração embaçava a superfície refletora, mas Ginny pensou ter visto, por um instante apenas, a silhueta de alguém, sentado diante da menina do espelho, sobre cujos ombros ela apoiava os braços. A impressão se desfez logo em seguida e Ginny se viu novamente diante de um reflexo comum embaçado pela umidade do ar que expirava. Recuou alguns passos, sentindo os olhos arderem. O coração se agitava e alguma coisa apertava sua garganta parecendo querer sufocá-la. A sensação de vazio era insuportável. Os sentimentos se misturavam, se confundiam, fundiam-se numa única sensação e escapavam de seus olhos castanhos, escorrendo pelas bochechas.
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“Porque uns já nascem amaldiçoados, outros não”.
Ele dizia aquilo com um deleite que para os outros não tinha o menor sentido. A ampla mesa cintilava sob o lustre de cristal, o som dos talheres quase não podia ser ouvido acima das vozes humanas. Taças douradas refletiam a luz. O rapaz usava luvas brancas enquanto brincava com a taça. A única peça de seu vestuário que não era negra. Passou a mão rapidamente pelos cabelos que insistiam em cair sobre os olhos escuros.
“Não acho que as pessoas possam nascer amaldiçoadas”, ponderou a jovem de cabelos loiros sentada em frente ao rapaz. Ele tirou os olhos da taça para fitar a garota. Tinha no máximo quinze anos e era repreendida baixinho pela mãe, sentada ao seu lado, por ter se intrometido na conversa. A jovem pareceu diminuir um pouco na cadeira ao voltar o rosto para baixo, as bochechas vermelhas.
O jovem Lorde Riddle curvou de leve os lábios pensando em como poder e influência poderiam fazer as pessoas simplesmente ignorarem o fato de ele ter apenas dezessete anos. Supostamente. A garota olhou para ele como se pedisse socorro, as esferas azuis percorrendo os botões dourados de seu paletó, subindo até o lenço de seda no pescoço. Tom ergueu a taça e ficou olhando para ela através do cristal; a imagem deformada assemelhava-se a um borrão cor-de-rosa. O maître aproximou-se da mesa com uma garrafa de vinho. Cortesia do restaurante para a mesa que reunia uma boa parte do que havia de mais exorbitantemente rico na Paris do fim do século XIX.
“Obrigado”, o rapaz fez um gesto para que o maître não o servisse. “Eu não bebo”, e ao que algumas pessoas lhe lançaram olhares curiosos, completou: “vinho”.
Alguém fez um comentário sobre um vinho que Riddle certamente beberia. O rapaz, no entanto, mal ouvia. Mexia na comida com o garfo disfarçadamente. Depois voltou a olhar discretamente para a garota. Margott de la Motte. Família francesa. Fora apresentada a ele naquele dia, como mercadoria de luxo numa loja de artigos finos. “Margott é bailarina, fala francês e inglês, pinta, toca piano...” e a lista de qualidades continuava, acompanhada de um sorriso confiante da mãe que o fazia pensar mais ainda em uma barganha. Então, quanto custava a filha mais nova dos de la Motte? Apenas uma sociedade no ramo de tinturaria, nada tão caro. E ainda tinha o dote... Dote. Tom riu sozinho da simplicidade com que aquelas pessoas o encaravam. A sofisticada alta sociedade parisiense.
“Quero ir para casa”, exigiu a menina loira. Cruzou os braços contrariada quando a mãe disse que se quisesse ir sozinha, podia ir, e, sem pedir licença, levantou-se da mesa e saiu andando empertigada nos saltos dos sapatos, tentando talvez parecer mais que uma menina mimada que mal deixara as bonecas para trás. Um pouco do rosa tinha desaparecido de seu rosto e isso desagradou Tom.
“Eu poderia acompanhá-la”, falou Tom, recostando-se na cadeira. Ficou por um instante olhando para o lustre; o rosto pálido ficava menos chamativo sob aquela luminosidade dispersa. “Não é bom que senhoritas andem sozinhas à noite”.
A senhora de la Motte sorriu satisfeita. O rapaz colocou o guardanapo sobre a mesa e se levantou. Pediu licença aos outros presentes e caminhou por entre as mesas em direção à porta. A sensação que o tomava era próxima à excitação de uma caçada. Ao se ver na rua, ajustou a capa nos ombros para que a luz amarela dos lampiões a gás não lhe dessem uma aparência muito assustadora. Pelo menos por enquanto.
Aspirou fundo, até sentir aquele cheiro doce particular dos perfumes femininos. Desceu à rua bem iluminada e virou numa esquina. Folhas secas, papéis e restos de lixo rodopiaram junto às sarjetas, se erguendo do chão pela ação de violentos rodamoinhos de vento. Continuou seguindo até encontrar o mirante que havia à margem do rio Sena, dando vista para o centro iluminado da cidade do outro lado das águas escuras.
“Então foi aqui que a senhorita veio se esconder”, falou, seu tom de voz brando como se quisesse convencer uma criança. Margott o mirou, assustada, os braços em torno dos ombros tentado se proteger do vento gelado, enquanto os cotovelos se apoiavam na mureta do mirante. Com um sorriso galante, o Lorde soltou a fivela da capa, que então caiu em seus braços, e a estendeu sobre as costas da garota.
A expressão de Margott abrandou-se e ela agradeceu silenciosamente. Ela apoiou o queixo na palma da mão, as mechas douradas caindo nos olhos, deslizando para um lado, deixando descoberta toda a região da maçã do rosto até o pescoço. A pele rosada brilhava sob as luzes vacilantes da rua. Tom podia distinguir pequenos caminhos arroxeados sob a pele, que emergiam dos cabelos e percorriam toda a lateral do pescoço antes de desaparecem no decote do vestido. Os olhos de Tom concentraram-se ali, até que ele quase podia sentir a pulsação dentro daqueles vasos.
O rapaz trouxe a garota para mais perto de si. Envolveu seus dedos pequenos, segurando-os delicadamente, mas com firmeza. Concentrou o olhar na mulher. Os dois orbes negros pareceram hipnotizá-la por alguns instantes, tempo suficiente para que não percebesse o sorriso sinistro que seus lábios formavam. A boca dele pela primeira vez se abria o bastante para que se pudesse ver duas pontas brancas como mármore. Tinham uma cor diferente de dentes normais, sob a luz da lua pareciam feitos de material fosforescente. Margott, no entanto, parecia completamente absorvida pelos olhos negros de Tom. Deixou que ele erguesse sua mão e tocasse de leve a pele com os lábios. Ele ficou algum tempo assim, sentindo a pulsação de seu sangue e o calor que emanava dela, antes de começar efetivamente o que pretendera desde o início. Instantes depois o corpo da garota amoleceu e escorregou por cima da mureta do mirante. Tom ainda a segurou pela mão, os dentes cravados em sua pele macia como algodão, os orbes cinzentos fixos nos olhos arregalados da garota, que aos poucos perdiam o brilho. Quando terminou, o Lorde apenas puxou a capa que colocara nos ombros de Margott antes de soltá-la. Seu cadáver desceu vertiginosamente, batendo em algumas pedras antes de desaparecer na espuma clara do Sena.
O rapaz começou o caminho de volta pela rua deserta, a luz dos lampiões imprimindo em tudo sombras fantasmagóricas. No céu, as estrelas pendiam como se tivessem sido cuidadosamente penduradas no firmamento. O vento tornou-se mais forte e Tom teve a impressão de ouvir alguém chamando seu nome. Parou de andar e observou a rua, perscrutando com seus olhos de vampiro cada sombra que a luz prateada da lua não era capaz de iluminar. Havia algo de melancólico no ar, a música de um piano ecoando na rua deserta, uma daquelas canções depressivas que o faziam lembrar do tempo em que tinha uma casa e uma irmã caçula que passava horas no quarto contorcendo as pernas em estranhas posições em seus ensaios de balé. Reconheceu o cheiro.
Tom abriu os olhos, tentando afastar o redemoinho de sensações. Não era hora de ficar perdido em devaneios. Não achava que a lembrança de Virginia ainda estivesse tão forte dentro dele. Deixara Londres apenas três dias depois de encontrar seu cadáver estirado no chão do quarto, não suportaria ficar na cidade por nem mais uma noite. Tudo que tocava tinha aquele cheiro de flores mortas, o cheiro das rosas vermelhas que uma vampira, em seus macabros rituais de assassinato, deixava entre os dedos de suas vítimas. Se pudesse escolher, Tom teria efetivamente desistido de tudo naqueles dias. Mas não podia escolher. Restava apenas sobreviver. Deixar os arrependimentos para trás, esquecer tudo, e ser tão poderoso como sempre quisera ser.
Julgava que nunca mais ia ter que pensar em nada de sua vida mortal. Fizera até mesmo questão de matar os únicos parentes de que tinha conhecimento. Colocara todo o empenho que podia em se livrar das fraquezas humanas, erguer-se acima de tudo e de todos. Sua busca por mais e mais força assumiu um aspecto de puro desejo de destruir. Matava tudo, não apenas pessoas. Matava a si próprio, ao que restara de humanidade dentro dele, sua fé, sua alma. Ocupara o trono de Deus em sua vida e agora tudo que restava era o nojo por tudo que fosse vivo. Não suporta a falta de sentido da existência, particularmente da existência dos seres humanos.
E, no entanto, ainda podia ouvir a voz de Virginia Chaworth, como se o eco dela estivesse preso em seus ouvidos. Uma menina, uma criança que experimentara tão pouco do mundo, ainda mais insignificante que a jovem Margott de la Motte. Bastava que Tom fechasse os olhos para ser capaz de sentir seus finos dedos de boneca pousados em seus ombros, depois correndo para o peito, envolvendo seu pescoço num abraço enquanto aproximava o rosto delicado de seu pescoço, de modo que ele pudesse sentir o exato perfume exalado pelos cabelos ruivos.
Estava diante da vitrine de uma fina loja de chapéus, os mais diferentes modelos expostos sobre uma bancada branca forrada de lençóis de cetim cor-de-rosa. O reflexo da lua no alto da vitrine era cortado pela silhueta de uma cruz, que se projetava na torre mais alta de uma igreja. Tom tentou se concentrar nos objetos, fixar-se naquilo que era inanimado e voltar a enterrar seus suspiros de mortal no mais fundo recanto da mente quando distinguiu um reflexo no espelho que não era dele ou de qualquer coisa que estivesse visível.
O rosto era pequeno, com traços delicados. Os cabelos avermelhados realçavam sua pele pálida. Os traços delicados de um rosto de criança, marcado por linhas brilhantes que desciam de ambos os olhos em direção aos pequenos lábios rosados. O vestido branco tinha um corpete justo, com uma leve saia de tule que flutuava em torno das pernas, tornando-a quase que imaterial, como uma pintura impressionista, o jogo de luzes contribuindo para que se assemelhasse a uma visão. A menina recuou alguns passos e limpou depressa o rosto na saia do vestido. Seus olhos eram castanhos e brilhavam de uma maneira quase sobrenatural. Era um céu tempestuoso que chorava dentro daqueles olhos.
Tão subitamente quanto aparecera, a imagem se desapareceu, diluindo-se no reflexo prateado da lua, assim que Tom tentou dar um passo em direção à vitrine. Restara apenas o vidro azulado, a sombra da cruz e os chapéus. Mas o perfume permaneceu, como se estivesse na verdade entranhado em suas roupas. O perfume que fizera com que Tom Riddle deixasse a capital inglesa há mais de oitenta anos. O insuportável cheiro de flores. Os ventos vindos do noroeste o chamavam de volta à Inglaterra.
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