Sangue dos anjos



Sangue dos anjos


“Amor é morte”, sentenciou a vampira. Katherine observava um quadro no quarto do hotel que Tom Riddle ocupava. As camareiras eram proibidas de entrar. Dois corpos de meninas jaziam no chão, uma loira e uma ruiva, seus cabelos se entrelaçando como ouro e cobre em meio a uma poça de sangue. Tinham os rostos pálidos, já se enrijecendo pelo efeito da morte. “Você já nasceu proibido de tocá-la. Ela era a única que você nunca ia ter e, como bom portador de um espírito humano, não houve outra que você desejou mais em toda a sua vida”, avalizou. Virou-se para o vampiro que se recostava no divã, observando com cuidado uma taça cheia de um líquido viscoso e vermelho escuro.


“O que veio fazer aqui? Por que está sempre aparecendo para me dizer essas coisas?”, resmungou ele. Então perdeu a paciência com a taça e atirou-a com força no tapete, o sangue fazendo uma mancha redonda no tapete branco. O branco marmóreo de sua pele contrastava com sua capa preta e comprida.


“Tenho uma pergunta melhor”, Katherine sorriu, seu rosto descarnado a fazendo parecer uma caveira. Os olhos verdes injetados brilhavam sob a luz fraca do lustre. “Por que um vampiro como você precisa ser lembrado de que é diferente dos seres humanos?” Ela apontou para o quadro que mostrava uma bailarina no meio de um salto, os braços no ar. “Estamos de fora. Dentro estão as moças que querem casar, os rapazes que querem ganhar dinheiro, os industriais que mandam os filhos para escolas na França, os casais que mal se olham e pouco se suportam, tão enjoados que estão um do outro. Eles agüentam, se seguram, prosseguem. Nós não. Não queremos nada além de bom sangue todas as noites e uma boa dose de conforto para o deleite dos nossos olhos. Não agüentamos nada, somos na verdade muito fracos para superar as coisas humanas. Sentimos o mundo com uma intensidade que nenhuma outra criatura sente e é por isso que você tem vontade de morrer nesse exato momento, de ser fulminado por um raio se possível”.


Tom fechou os olhos. Sentia-se esgotado. E, sim, estava esgotando de tanto lutar contra aqueles malditos sentimentos que não paravam de tentar emergir a todo momento, querendo dominá-lo. Os cabelos da menina aos seus pés tinham o exato tom dos cabelos de Ginevra. Seu sonho. Aquela visão que vinha assombrá-lo durante o dia, encerrado no caixão, não permitindo que parasse de reviver as longas horas de contemplação e, em seguida, os instantes de puro desejo. Porque, não sabia desde quando exatamente, não havia uma fronteira definida, já não a admirava apenas como no início. Não era apenas uma linda boneca com movimentos serpentinos, mas um ser sensual em sua inocência, ardente em sua determinação. Começou a associar o simples deslumbramento desmedido com um real desejo.


Não, não a queria como amante. Amantes são mulheres que amam homens casados. Ginny não, ela era uma criança. Uma fada, uma boneca viva moldada com o mesmo material das estrelas, que constantemente ameaçava se apagar por brilhar demais. Era apenas sua confissão. A trágica confissão de um amor que o aniquilara através dos anos. Ele acreditara que apenas ela poderia entender seu suplício, compreenderia sua sede de conquistas, sua falta de piedade pela natureza humana. Acreditara que ela entenderia que no mundo das trevas não havia lugar para piedade. E acreditava que ele seria a pessoa, a única pessoa, a quem confidenciaria seu desejo secreto de obter o perdão para cada uma das atrocidades que, inconscientemente, o atormentavam. Ela o perdoaria e sua alma estaria limpa, liberta do corpo, que então correria pelo mundo em busca de seu tão almejado poder, para então depositar cada uma de suas conquistas aos pés da menina de cabelos vermelhos que seqüestrara de modo tão irrevogável sua natureza de vampiro.


Mas não. Ela não entendia. Ela o mandara embora, não queria mais vê-lo, não tentava mais surpreendê-lo virando-se rapidamente à mínima impressão de ter visto seu reflexo no espelho. Ela fora sua escravidão, percebia agora. Passara dias procurando ansioso por sua própria imagem refletida naqueles olhos castanhos e, agora que essa imagem finalmente surgira e ela o olhara com desprezo, sentia como se algo o comprimisse por dentro, a peculiar sensação mortal de angústia o atingindo como nunca antes acontecera a ponto de se sentir sufocado. A dança daquela criança revelara sua alma. Ele achava que como vampiro não tinha mais nenhuma, mas agora sabia, tinha uma alma, muito mais ampla e sensível que a que carregava quando era mortal. E aquela alma o tinha como um monstro absolutamente repulsivo, condenado a viver do sangue alheio, sem nunca conhecer a morte nem o amor.


Katherine ainda o observava-me através dos olhos verdes como que fazendo uma anotação mental. Tinha no rosto um meio sorriso. “Eu te disse isso há muito tempo”, falou, sua voz aguda quase ferindo os ouvidos do vampiro. “Podemos ter quase tudo que quisermos, nossa natureza nos permite isso. Mas o que eu quero, e o que você também quer, é aquilo que o simples fato de sermos vampiros não pode nos dar. Aquele ser um vai entrar um dia em nossas existências, vai olhar direto para nós e indicar o caminho que devemos seguir, nos carregando pela mão, guiando-nos na escuridão eterna a que estamos condenados”.


“Você não quer isso”, resmungou Tom, erguendo-se do divã. Chutou para longe os corpos e se aproximou de Katherine. “Nunca quis um guia. O que você queria era me mostrar como poderia ser cruel e poderosa”. Fios claros – loiros e brancos – caíam sobre as mangas do vestido vermelho, deslocado no corpo envelhecido da vampira, que nunca recuperara sua energia original após quase morrer por ação de Tom Riddle. Os olhos, que não tinham mais o verde vibrante de décadas atrás, brilharam excessivamente, antes de o vampiro poder divisar uma fina linha descendo por suas bochechas, uma lágrima avermelhada de vampiro.


“Você poderia ter sido o meu guia”, respondeu, a expressão pela primeira vez dura, rígida, como se quisesse ocultar qualquer tipo de sentimento que pudesse haver naquelas palavras. “Mas preferiu lamentar pela eternidade a morte daquela menina, trancando sua alma e se tornando um animal selvagem”.


Katherine aproximou as mãos do rosto de Tom. Estava corado e quente pelo sangue das garotas, seus vasos pulsando audivelmente para os ouvidos sensíveis da vampira. Ele sentiu novamente aquele cheiro que associava com Virginia. As rosas. Katherine usava em volta do pescoço pálido e cheio de pequenas machas escuras uma gargantilha de pequenas rosas de tecido enfileiradas. Ela tinha cheiro daquela noite maldita em que se sentira morto pela primeira vez. Desde então fora morto sempre, andando entre os vivos como um penetra de sua realidade, um demônio que se recusava a habitar o inferno.


Via Virginia de pé diante de si, os olhos castanhos o fixando daquela maneira peculiar, a claridade iluminando seu rosto lácteo, os cabelos em cachos que desciam pelas costas como uma cascata de fogo. A deliciosa visão de uma pequena menina que se movia graciosamente sobre os pés enfiados em sapatos de boneca. Seus gestos fluíam, como se fizessem parte de um encadeamento natural, tão natural que poderiam passar por acidentais. Inocente e ainda assim de uma sensualidade indescritível, os pequenos dedos percorrendo seu braço como uma aranha de porcelana. Sua paixão efêmera que, mesmo se Katherine não a tivesse matado, não duraria para sempre. Ele a tinha de volta, mas não podia possuí-la, sob o risco de tocá-la e despedaçar seu corpo, como uma frágil boneca de porcelana que o menor gesto ameaça destruir. Tampouco acreditava que, transformada em dama da noite, possuiria o ser que se tornaria. Nada poderia deter o processo de acumulação de vivências que destruiria para sempre sua menina.


Empurrou Katherine com força. Ela tropeçou nos saltos dos sapatos, caindo pesadamente sobre a garota loira morta no chão. Mirou Tom descontente, mas ele mal a notava. Abriu o caixão que fora acomodado a um canto do quarto, jogou-se de qualquer maneira dentro dele e puxou a tampa, fechando-o tão rapidamente que poderia estar fugindo de algo. A realidade era sua máscara. Máscara que não escondia seu rosto, mas que tinha olhos castanhos que o encaravam sem pena.




Ela tremia. Os lábios estavam pálidos. Como previra, Calr Godwin recebeu um pedido urgente para que comparecesse à casa dos Weasley dois dias depois de o casal ter recusado sua ajuda. Ginevra fora acometida por algum tipo de mal sobrenatural que lhe provocava febre muito alta sem nenhum motivo orgânico aparente.


A menina estava prostrada no fundo da cama, envolta em cobertas brancas. O padre não precisou se aproximar para perceber que uma sombra se abatera sobre ela. Respirava com dificuldade, fazendo ruídos como se algo a estivesse sufocando. Ao lado da cama, sobre uma mesa, havia uma bandeja com alguns frascos de remédios receitados pelo médico para diminuir a febre, uma bacia com água, lenços e um par de sapatilhas, que Molly Weasley explicou ter colocado ali a pedido da filha. Ginny estava acordada quando o padre se sentou ao seu lado, olhava para a janela, apenas uma fenda aberta nos olhos, mas parecia fascinada pela paisagem.


“Como está se sentindo, Ginevra?”, perguntou amigável. A menina não respondeu. Apenas piscou os olhos.


Calr estava usando a batina de sacerdote por baixo de uma pesada capa preta, que retirou e deixou nas costas de uma cadeira. O padre examinou primeiro o pescoço da menina, procurando um indício de que tivesse sido atacada pelo vampiro. Depois, passou aos pulsos e dedos, sem encontrar nada. Não havia o menor indicio que o vampiro que o padre descobrira se chamar Voldemort tivesse se alimentado de Ginevra. Puxou da cintura um rosário de madeira e o enrolou nos dedos finos da menina.


“Então, padre Godwin?”, indagou Molly, as mãos cobrindo a boca como se esperasse pelo pior.


“Sua filha está atormentada pelo espírito”, falou, sem ter muita certeza de que fosse ser compreendido. Sempre lhe fora recomendado não falar sobre exorcismo com ninguém que não fosse exorcista. Apesar de a Igreja Católica acreditar em possessões diabólicas e seus sacerdotes praticarem o que era chamado de "exorcismo real", um longo e complexo ritual para expulsar os espíritos malignos, os sacerdotes não deveriam alimentar as crenças populares. Uma medida tomada com objetivo de preservar a imagem da instituição, claro, pois a poderosa Igreja – já não poderosa assim naquele fim de século – não admitiria que aquelas entidades tinham um poder que escapava ao controle de seu Deus.


Ungiu a testa da menina com uma pequena quantidade de óleo. Não havia o que fazer para afastar a influência nefasta, pelo menos não até que caísse a noite e a entidade se revelasse, mas precisava acalmar a menina e a família. Seres malignos reais pouco se importavam rituais religiosos, cruzes, água benta ou outras coisas que remetessem à religiosidade, mas seres humanos se sentiam confortados pela perspectiva de que aqueles recursos pudessem livrá-los do mau.


“A palavra de Deus é o escudo e a espada que o Espírito coloca em nossas mãos”, falou, segurando as mãos de Ginny e o rosário entre as próprias mãos. A respiração da menina se acelerou um pouco. “É a única arma que devemos utilizar nos embates contra o maligno...”


“Havia uma roseira”, murmurou Ginny, abrindo um pouco mais os olhos.


“Que roseira?”, fez o padre, sentindo os pequenos dedos de Ginevra se mexerem entre os seus. Os orbes castanhos vagaram pelo teto do quarto antes de se fixarem novamente na janela.


“Havia uma roseira na janela do meu quarto”, insistiu.


O padre virou-se para Molly e a mulher deu de ombros, como se não soubesse do que a filha pudesse estar falando.


“Que roseira?”, perguntou Calr, tentando manter a atenção da menina.


“Rosas. Havia flores no papel de parede, na cortina, na colcha da cama. Mas as rosas estavam na janela. Dava centenas delas, todas vermelhas, bem grandes. Foi Tom quem a plantou”, ela apertou com força as contas do rosário.


Molly balançou a cabeça, resignada com mais um delírio da filha.


“Isso faz muito tempo?”, Calr a instigou a continuar.


“Bastante. Eu queria rever aquela janela. Teria rosas lindas nessa época do ano”, Ginny sorriu levemente mirando a paisagem da janela, a gola de renda da camisola lhe roçando no queixo enquanto se movia levemente para arrumar a cabeça no travesseiro. Molly Weasley resmungou alguma coisa sobre Ginny odiar rosas e não estar entendendo aquela maneira encantada que a filha usava para falar de uma roseira que nunca tinha existido na janela do quarto. “A roseira morreu poucos meses depois de eu e ele irmos embora. Crescia muito no verão, e a casa inteira ficava com aquele perfume quando os ramos passavam pelo parapeito da janela e invadiam o quarto. Tom queria podá-la, mas eu nunca deixei. Cuidava dela. Estava cuidando dela quando aquela ‘mulher-rosa’ chegou”.


Um estrondo se fez ouvir na casa e o padre teve um sobressalto na cadeira.


“Desculpe, deve ter sido uma porta batendo”, falou Molly, se adiantando para fora a fim de averiguar a origem do som. Os olhos de Ginny estavam vidrados, emoldurados pelos longos cílios claros, fazendo com que se parecesse com uma boneca de porcelana. Seu sorriso se desfazia.


“Ela era bonita”, murmurou a menina, ainda mais baixo, como se receasse ser ouvida. “Tinha uma rosa no pescoço, e os olhos eram verdes, o mesmo verde das folhas e dos espinhos. Gostava das rosas que eu tinha na janela... Ela entrou no quarto dizendo que era amiga dos meus pais, que gostava de dança e queria me conhecer. Pediu que eu abrisse a janela, queria sentir o perfume. Sentou na cama e ficou olhando para a roseira, um galho cheio de botões caiu para dentro do quarto. Tentei colocá-lo para fora, mas ela disse que devia deixar assim, que gostava quando as flores tentavam se aproximar. Então ela me deu um beijo, bem no pescoço, e eu não consegui reagir, só conseguia pensar no conde, no Tom, em como não queria ir embora. Eu sabia que íamos ficar juntos para sempre, mas...”


“Mas o quê?”, perguntou ele, curioso em saber se aquilo era um delírio da febre ou da possessão.


“Sinto-me sufocada”, seu pequeno rosto se contorceu e ela piscou longamente antes de voltar a percorrer o teto com os olhos.


“Quer que abra a janela?”


“Não, preciso de mais que uma janela para respirar...”, ela suspirou. Então empurrou o rosário para as mãos do padre, trazendo os próprios dedos para junto do rosto. “Eu pensei muito nele, pensei tanto que não me separava daquela outra garota. Depois que morri, não gostei nunca mais das rosas...”


O padre arregalou os olhos, erguendo o corpo da cadeira e recuando. Sentira subitamente a presença de algo muito maior que uma simples sombra maligna na menina. Afastou a gola de renda da camisola da menina para passar em revista novamente o pescoço. E dessa vez encontrou. Duas pequenas marcas alinhadas. Não se pareciam com cicatrizes, mas com marcas de nascença. Ginny picou mais uma vez e voltou-se para Clarl, que, num gesto inconsciente, puxou uma bíblia de um bolso da batina.


“A palavra de Deus é o escudo e a espada que o Espírito coloca em nossas mãos. É a única arma que devemos utilizar nos embates contra o maligno”, repetiu, tentando desajeitadamente achar uma passagem enquanto passava as páginas da bíblia.


“Deus está no céu agora, padre Godwin. Já estava quando deixou que eu me apaixonasse por ele”, falou Ginny e, no instante seguinte, desabou no travesseiro em sono profundo.




O vidro escuro refletia vagamente as ofuscadas luzes dos postes e o rosto duro do vampiro. O jardim abaixo se estendia como um tapete verde manchado de cores vivas – as cores das flores desabrochando para o verão. Observava o quarto escuro, apenas a luz de uma vela ao lado da cama para iluminar os cabelos flamejantes de Ginevra. Ela estava adormecida, como que envolta num sono encantado, a franja suavemente despenteada para o lado. Tinha os braços descobertos, a pele lisa e brilhante a fazia parecer uma estátua de mármore. O padre dormia ao lado dela, encolhido na cadeira com a bíblia aberta sobre os joelhos e o rosário enrolado nos dedos da mão direita.


Não importava que o dia estivesse prestes a raiar, Tom Riddle não conseguia deixar de vir vê-la antes de se recolher no caixão. Sabia que estava tirando sua energia vital, era o efeito de sua permanência constante ao lado dela. Ginny era seu sonho humano, pelo qual se apaixonara e permanecera apaixonado. Sua menina, sua linda e intocável Virginia, que pulava e cantava em seus sonhos, e agora encarava seu reflexo difuso nos espelhos com os olhos maduros de uma mulher disposta a fazer qualquer sacrifício por um objetivo. Virginia havia voltado para ele, cheia de vida, dona de si – e talvez dona dele também. Como suportar este desabrochar? Como lidar com esse suspiro de mudança?


Era um quadro de seu passado, a imagem carcomida do que já fora um dia, tão velha que o mais leve movimento poderia destroçá-la. E agora ganhava vida, deixando a moldura do passado poeirento para lhe soprar novamente aquele sentimento terrível de crueldade, de tragédia que é a inexorabilidade do tempo. Se finalmente morresse, seria libertado do tormento? Se virasse nada, conseguiria esquecer as cenas? Os gestos que poderia reproduzir em todas as suas minúcias bastando que para isso fechasse os olhos? Era capaz de vê-la, tão próxima e tão nítida apesar do vidro e da distância física e espiritual que os separava, que tinha a impressão de que, se estendesse a mão, tocaria facilmente seus cabelos jogados sobre o travesseiro.


Um vento mais forte soprou a capa do vampiro para cima e ele subiu um pouco mais no telhado para manter o equilíbrio. Quando voltou à janela, estava escancarada. O frio foi suficiente para fazer com que Ginny se mexesse. Pesadas nuvens se moviam no céu, escondendo a lua e o horizonte, mas o vampiro podia sentir a aproximação do sol.


O vampiro ficou sentado no parapeito da janela, a cortina esvoaçando como um véu entre ele e o corpo adormecido de Ginevra. De um lado, o demoníaco, o profano, a pura manifestação do mal; de outro, a gentileza inocente de uma criança que dormia com as sapatilhas ao lado do travesseiro. Tom Riddle estava dividido entre as duas faces de seus sentimentos – a face humana remanescente do que sentira por Virginia, e a parte vampírica, selvagem, que agora o consumia em relação à Ginevra. Era uma paixão alheia a qualquer linguagem e que ignorava a distinção entre vivos e mortos. Para o vampiro, ela era uma e única. Não havia outra e se quisesse compará-la com algo seria com a neblina fina numa praia, brilhando como pó de estrelas ao ser banhada pela luz prateada da lua, orvalho gelado deslizando na corola de uma rosa branca ou com o arrepio de uma chuva fina lhe encharcando os cabelos. Uma, única, apesar de ser ainda uma criança.


A claridade que precedia o amanhecer já pintava todo o quarto de cinza. O vampiro mirou a rua deserta. Depois voltou a olhar para sua pequena ninfa, adormecida entre os lençóis brancos, os cabelos emoldurando aquele delicado rosto como a aura em torno do semblante de uma santa. Tinha alguma coisa para dizer, mas não tinha certeza do que era. Queria se despedir? Sim, queria muito poder partir novamente, deixar Londres, agora para sempre, e nunca mais pensar naquilo. Não podia. Havia um laço que o atava àquela cidade, àquela menina, à trilha deixada por sua vida mortal.


Já ia se erguer para levantar vôo quando pressentiu um movimento atrás de si. Um murmúrio e, em seguida, passos rápidos no piso de madeira. Virou-se para o interior do quarto bem a tempo de ver o padre lhe colocar a cruz do rosário entre os olhos, falando compulsivamente, ordenando que libertasse criança em nome de Deus. Ginny se mexeu novamente na cama. Abriu os olhos. E o vampiro se sentiu transpassado pelo horror que havia neles. Não suportava aquilo. Ginevra, em vez de ser a luz para sua eternidade, era seu mais perfeito espelho, refletindo para o mundo aquilo que Tom Riddle era e não deveria ser, sua paixão indiferente à vontade dela, seu desejo imediato de eliminar os riscos de desencanto, de desencontro. Aquela menina denunciava sua natureza vampírica, a violência do desejo de encontrar nela a promessa sombria de um porto seguro, sem equívocos e sem a possibilidade da recusa.


Tom não suportou mais e puxou o braço do padre, prendendo-o por um instante próximo a seu rosto antes de virá-lo, um som de ossos se partindo enchendo o quarto. Entrou no quarto, ainda segurando o padre que gemia de dor. O vampiro o mordeu sobre o ombro, rasgando a batina com os dentes para sugar seu sangue até que ele estivesse fraco demais para continuar tentando se desvencilhar. Não queria conviver com as dúvidas, com as perguntas. Queria esquecer daquela angústia e devorá-la, sanando para sempre a sede que tinha dela para que restasse em sua vida apenas o vazio de um universo destruído. Como sempre fora.


Empurrou o padre contra a janela. O barulho da queda fez com que a casa se enchesse de sons das pessoas despertando. Mas Tom não percebia nada disso. Estava olhando unicamente para Ginny. Algum tipo de transformação acontecia com ela. Tinha os olhos muito abertos, mas não havia mais nenhum medo neles. Sua expressão era de reconhecimento. Os finos lábios de menina se curvaram. Ela sorria. E, naquele instante, não era apenas alguém que lembrava Virginia. Ela era Virginia Chaworth.


Seu sorriso continuava rigorosamente o mesmo: lábios finos, inexpressivos, desafiando todas as leis naturais para esboçar um arco gracioso naquele impassível rosto de boneca. Não via aquele sorriso há tanto tempo que já havia esquecido seus traços e desejos. Sua menina voltara a sorrir... Não, não era a mesma pessoa, embora fosse a mesma inconfundível sensação. Quanto tempo não tentara a todo custo evitar o pensamento, a pergunta sem resposta que pulsava dentro dele exigindo saber onde estava sua pequena flor? E quantas vezes seu rosto lhe surgira nos outros tantos seres humanos com que se deparava nas esquinas e ruas tumultuadas, provocando-lhe ódio de si mesmo e exacerbando sua sede de matar, para transformá-lo num monstro ainda mais cruel do que já era?


“Eu sabia que você ia voltar”, ela murmurou. Ficou de pé na cama e estendeu os braços para Tom, como se pedisse para ser carregada.


Dentro dele, um misto de repulsa e atração. Andou vagarosamente até ela e deixou que aqueles braços infantis envolvessem seu pescoço, roçando nos cabelos negros. Suas narinas foram invadidas pelo cheiro dela. Sentia seu peito subir e descer contra o seu, respirando profundamente. Mas o que mais o afetava era a pulsação descontrolada de seu coração, tão rápido que parecia prestes a parar. Viu no pescoço alvo as trilhas roxas das veias, dentro delas o sangue doce de um anjo.


“Nunca mais vamos nos separar”, ela falou. “Vamos morrer juntos”. Ela estava séria, não parecia brincar. O vampiro não respondeu. Sentia seu pequeno corpo em seus braços, mas não sentia o contato. Não havia o toque. Não havia a sensação de estar se fundindo com ela, como se sentia quando Virginia o envolvia num abraço daquela maneira. Não era humano.


“Eu sei que não pode me sentir”, a menina se afastou dele e o mirou, os olhos castanhos transbordando de lágrimas contidas. “Mas eu quero que me sinta, Tom”, ela correu o dedo vagarosamente pelo rosto de Tom, primeiro ao lado dos olhos negros, depois na testa, descendo em direção ao nariz e pousando levemente nos lábios. “Quero que me torne sua”.


A menina recuou, andando sobre os lençóis como se flutuasse em uma nuvem. Abriu os braços e inclinou o rosto para a direita e para baixo. A camisola tinha os primeiros botões abertos, permitindo que a gola escorregasse até os ombros, revelando a pele rósea e suave do pescoço. O som do sangue circulando abaixo daquela pele encantava o vampiro.


Ouviram altas batidas na porta. Em algum lugar no horizonte, Tom sabia que o sol estava prestes a despontar. Podia ver sua claridade acima dos telhados, enquanto o astro se debatia incessantemente na remota tentativa de se desvencilhar das nuvens. O vampiro mirou mais uma vez o rosto de Ginevra. Estava decidida. Exigia que o fizesse. E foi o que fez. O sangue o invadiu, soprando a vida daquele coração incansável para dentro dele, seus braços, seus cabelos, seus corpos, cada partícula dos dois, tudo se misturava e se fundia num furacão. Estavam um dentro do outro, pulsando como estrelas, tão resplandecentes juntos que logo reduziriam um ao outro a cinzas, pequenos grãos de pó que então levantariam vôo com o vento, na valsa que dançariam juntos por toda a eternidade.


Menina... Virginia. Ginevra. Ginny. Infinitas chamas faiscavam em seus olhos. Por que tinha demorado tanto para voltar? Tom era um monstro agora e não sabia mais lidar com flores delicadas.


Seu corpo amoleceu nos braços do vampiro, como uma boneca quebrada, ao mesmo tempo em que o sol vencia a batalha e se erguia acima da escuridão noturna, banhando com seus raios toda a cidade. A luz entrou pela janela, incidindo sobre Tom, que imediatamente ficou enfraquecido, cambaleando para frente e caiu sobre a cama, o corpo de Ginevra entre ele e os lençóis, seus dentes ainda mergulhados em sua pele clara, o coração da menina se recusando a esmorecer. O vampiro não tinha mais forças para sugar. Segurou com força os fios acobreados do cabelo da menina, como se pudesse se prender ali para impedir a morte de carregá-lo. A pele da menina estava fria, como se o vampiro tivesse sugado sua febre.


A pele pálida do vampiro fumegou, uma fumaça preta subindo e em instantes o cinza tinha atingido seu rosto, fechando-se ao redor dos olhos negros. Ginny ainda mirou aqueles olhos por uma última vez, antes que eles se desfizessem em pó sobre o tecido claro da camisola machado de sangue, um segundo antes da porta vir abaixo e o quarto ser invadido pelos Weasley esbaforidos. Foi imediatamente envolvida pelos braços da mãe, que se sacudia em choro compulsivo enquanto a ninava como um bebê. Ginny suspirou algumas vezes, tomada por uma calma que não se lembrava de já ter sentido antes. Mirou a própria imagem suja e coberta de fuligem do espelho e não viu outra pessoa senão ela mesma. E entendeu o que acontecera. Lembrou-se do resto da música. “For who could ever learn to love a beast? However cold the wind and rain, I'll be there to ease your pain. However cruel the mirrors of sin, remember beauty is found within”. Não tinha mais nada para procurar no reflexo. Finalmente a "menina do espelho" saíra de dentro dela. Havia partido junto com o garoto.




Chovia. E de longe o que se via no cemitério escuro era uma grande multidão munida de capas e guarda-chuvas. O padre recitava as últimas palavras para o morto que não tinha família. O caixão preto estava lacrado, segundo alguns porque o Lorde fora desfigurado por uma doença misteriosa. A organizadora parecia ser uma mulher vestida de vermelho, os cabelos brancos preso em uma trança apertada e um véu preto lhe caindo sobre o rosto.


O enterro de Lorde Riddle contou com a presença de nobres, industriais e artistas. Era um conhecido financiador de companhias de ópera e dança e freqüentava os mais seletos eventos, sendo seguido, desde que chegara à cidade, por um grupo de aristocratas que se mostravam fascinados por suas excentricidades. Nunca era visto durante o dia. Morava num luxuoso quarto de hotel que ninguém nunca visitara. Usava sempre preto, com as mãos cobertas por luvas. Dizia-se que era um conquistador, de uma lábia incomparável e modos tão perfeitos que se tornara rapidamente alvo de donzelas com grandes dotes e casadas que esbanjavam toda a riqueza que os maridos faziam em festas luxuosas.


"Mas quem somos afinal? Na verdade não sabemos direito. E, no fundo, acima de qualquer outra coisa, o que realmente viemos buscar aqui é esta resposta", falava o padre. Os presentes miravam o caixão, o vazio, a chuva. Um outro padre mirava o próprio braço imobilizado. Uma menina de cabelos ruivos mirava uma coroa de rosas sobre o caixão. A mesma Ginevra que antes tinha horror àquelas flores agora conseguia até achá-las bonitas. "Se deixarmos que um fragmento se abra em nossas vidas de constante confusão, perceberemos que ela pode se revelar ao mesmo tempo linda e frágil. Tom Riddle sabia disse e não tentava resolver os problemas globais. Foi um homem admirável. Agora se foi. E se tornou eterno".


O caixão começou a descida lenta. Depois foram atiradas flores e, então, as primeiras pás de terra. A multidão começou a se dissipar. Ginevra caminhou para longe segurando a mão da mãe. Quando os pais pararam para falar com um conhecido, no entanto, a menina escapou, correndo de volta para o túmulo, a capa preta sacudindo no vento. A chuva se abrandara, mas dava sinais de que logo voltaria com toda a força. A menina parou diante da lápide. O nome Tom Riddle estava escrito em letras brancas, ladeado por anjos esculpidos na pedra. A menina ficou atrás da lápide, de modo que o coveiro não pudesse ver o que estava fazendo. Tirou de dentro da capa uma caixa.


Colocou a caixa na grama molhada e levantou a tampa. Havia dentro um par de sapatilhas e um pedaço de papel. Ginevra já não dançava mais. Desde que deixara de ver a outra menina em seu reflexo no espelho. E agora queria devolver as sapatilhas a sua dona. Colocou-as de pé, encostadas na pedra. Deixou o papel apoiado sobre os calcanhares das sapatilhas, como uma pequena placa. Só então se levantou e partiu, ouvindo o chamado da mãe, que a procurava mais adiante.


Mais tarde, ninguém soube explicar como as sapatilhas vieram parar ali. O bilhete encontrado junto dizia apenas "Virginia Chaworth". As pessoas passaram a acreditar que fora deixado por uma bailarina que admirava o Lorde, ou talvez por uma amante desconhecida. O certo é que, embora o bilhete tenha se desfeito após uns poucos dias chuvosos, por muito tempo as sapatilhas permaneceram lá, sem que a chuva ou o sol as deteriorasse, como se alguém as protegesse. Três anos depois, quando o túmulo do Lorde foi removido, alguém abriu o caixão e colocou as sapatilhas lá dentro, junto com as cinzas que restaram da deterioração do cadáver. Juntos pela eternidade, em sua paixão muda, coagulada para sempre. Entrelaçados num pas de deux.


Fim.




N.A.: A música que a Ginny canta é Beauty and The Beast, do Nightwish.

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