DOCE E NOCIVA




- Capítulo Dois -
DOCE E NOCIVA


OS ANOS SE ARRASTARAM e Eva continuou morando na casa de Kimberly com a filha Laure. Os primeiros anos da criança foram mais difíceis que das outras. Laure estava constantemente doente, com febre alta, vômitos, tremedeira, entre outros males. Inicialmente poderia se pensar que a criança estava doente, pois os dentes estavam nascendo, mas considerando-se que dentes não nascem com três meses de idade, essa hipótese foi descartada.

O Dr. Frazier não sabia como diagnosticar a criança, nem mesmo os outros médicos da região. Davam remédios para todas as doenças possíveis com aqueles sintomas, mas nada fazia efeito. Então um dia Kimberly experimentou fazer uma antiga mistura de chás, que a avó dela sempre falava que era bom para as crianças, e deu para Laure. Após algumas horas a febre sumiu e a menina brincava com os blocos coloridos no chão da sala.

Quase um ano depois de nascida, Laure já dizia muitas palavras e fazia coisas surpreendentes, como descobrir onde estavam coisas perdidas, saber identificar quem entrava no cômodo mesmo de olhos fechados, e espantar alguns cachorros apenas com o olhar.

Claro que a madrinha Kimberly achava tudo muito gracioso. Já Eva achava aquela criatura estranha, e mesmo sendo bruxa ela não gostava do jeito da filha. Desde o modo de olhar até o de sorrir, mas ainda assim tentava nutrir o sentimento materno que dizia carregar.

– Eva! Eva! Corre aqui, vêm ver o que a Laure está fazendo...

Eva conhecia aquele tom excitado de Kimberly. Provavelmente a criaturinha tinha feito alguma graça. Largou o pano de prato na pia da cozinha e foi para sala ver o que era. Chegando, depara-se com Kimberly agachada de braços abertos e Laure dando os primeiros passos em direção a amiga.

– Estava vendo televisão quando ela levantou e começou a andar, assim, do nada! – disse Kimberly com os olhos marejados ao ver a criança tentando se equilibrar nos pés.

A mãe se limitou a dar um sorriso. Não era sincero. Gostou de ver a filha andando, mas o coração dela apertou ao ver aquela cena. Era como se fosse um mau sinal, um presságio. Afastou os pensamentos e agachou-se junto à filha, comemorando com a amiga.

O tempo foi passando e Laure crescia. Kimberly levava a menina para o antiquário que trabalhava, e a velha Madame Morgan, dona da loja, ficava surpresa em ver como a garotinha era esperta. Sabia identificar os objetos e às vezes dizia que determinado objeto era “especial”. Nem Kimberly, nem a Madame Morgan sabiam dizer o que significava especial para uma garotinha de cinco anos, mas achavam tudo muito divertido.

Num desses dias, Morgan resolveu dar um desses objetos “especiais” para Laure. Era um pingente de uma serpente prateada que formava um S, e no lugar dos olhos estavam dois brilhantes cravados.

A garota ficou radiante, embora Kimberly dissesse que o pingente era caro, Madame Morgan disse que era dado e não poderia ser recusado. Laure não recusou. Levou para casa e mostrou o novo presente para a mãe. Eva ficou furiosa ao ver o pingente e sem dar explicação alguma, o arrancou da mão da garota e o tacou no fogo da lareira, que estava acesa pelo frio do inverno.

– Traga alguma coisa relacionada a cobras novamente para essa casa e você ganhará uma surra, está me ouvindo bem, mocinha?

– Eva, não foi culpa dela! – interferiu Kimberly. – A Madame Morgan só quis dar um presente...

– Não tente defender essa... criatura! – bradou nervosamente Eva, olhando com um certo ódio para a filha. – Já para o quarto! E não quero que saia de lá até eu mandar...

Laure que estava com os olhos marejados e sem entender o motivo da histeria correu para o quarto e se trancou lá.

- Quarto é um apelido carinhoso -
Laure não tinha um quarto, propriamente dito.
Ficava no antigo armário do segundo andar,
que tinha o mesmo papel verde musgo nas paredes sem nenhuma janela.
Era um cômodo pequeno, deveria ter três metros por dois de largura, mas que cabia perfeitamente uma cama, um baú com roupas e prateleiras.

A menina entrou no cômodo e chorou. Era um choro baixo, triste, próprio de uma criança que acaba de perder um presente que achava valioso, especial. Na mente da pequena Laure, não havia objeto mais especial do que aquele pequeno pingente na loja da Madame Morgan. Quando ela se aproximava dele sentia uma energia diferente, como um calor, mas mais poderoso e que não queima. Quando tocava, sentia ondas frenéticas de energia, mas não era como um choque elétrico. Isso era especial para ela, pois era misterioso. Era mágico!

Mas agora ela estava chorando na cama, agarrada as cobertas. Tinha certeza que a mãe não deixaria Kimberly levar alguma comida para ela. Não se preocupava com isso, afinal, tinha uma jarra de água sobre o baú e doces nos bolsos. O que a preocupava era que tinha perdido o pingente. Ela o queria, o desejava. Todo aquele sentimento era mais forte que ela, mas a pequena Laure não sabia o nome dele. Para nós pode ser descrito em uma palavra: ambição.

Fechou os olhos e sonhou. O sonho não fazia muito sentido: estava em frente a uma criatura muito pálida de dedos longos e olhos vermelhos, que depois se transformou num velhinho de óculos meia-lua. Então ele desapareceu e ela se viu sozinha numa sala de pedra tão fechada quanto seu quarto, e uma cobra de olhos brilhantes se materializava na frente dela. Laure gritava e aparecia num lugar tão sombrio quanto o outro, porém com cheiro de ervas e vapores.

Acordou no dia seguinte, com a cabeça latejando e se lembrando vagamente do sonho. Olhou a mão esquerda e viu nela o pingente que a mãe tinha jogado no fogo no dia anterior. Sorriu consigo mesma, e guardou-o junto a si com a promessa de nunca mais se separaria dele, e nem deixaria a mãe vê-lo.

* * *

Desde o ultimo episódio passaram-se três anos. Laure tem oito anos, e já freqüenta a escola local da vila Red Lodge. As crianças de lá não gostam muito dela. Inicialmente, lembraram-se de Laure como a garota que vivia perto dos Rice, uma família muito popular na vila, que morava na mesma rua dela. Depois alguém comentou que ela passava as tardes no antiquário da Madame Morgan, mas ficou somente nisso.

Laure era considerada tímida pelos professores. Sentava-se no fundo da sala, última carteira, e sendo que a sala era em número impar, sempre ficava sozinha, pois não tinha um parceiro de classe. A menina não fazia questão de ter alguém do lado dela falando o dia inteiro e dando palpites no que fazia.

A diretora da escola chamou Eva para conversar, alegando que a filha dela era muito retraída, e não conversava com ninguém. A mãe disse que não poderia fazer nada. Sabia que não poderia. Conhecia a mente da filha, se ela não falava era porque achava que os demais não eram dignos de conversa.

Quando começou a conversar falava em monossílabos. “Sim”, “Não”, “Lá”, “Já”. Então passou a evoluir, e conversar com as pessoas que se sentavam próximas. Não, elas não eram interessantes, tinham uma vida chata e fútil, sem ambição e sem perspectiva. Geralmente falavam de coisas triviais como “Quer ir brincar na minha casa hoje?”. O assunto favorito da garota era pensar e falar sobre coisas sobrenaturais, sem explicação, mas aquilo não parecia atrair crianças de oito anos de idade.

Os poucos colegas que conquistou a achavam engraçada. Ela adivinhava o que eles iam falar antes mesmo de abrirem a boca. Sabia quem tinha colado na prova sem ter olhado para os lados, sabia quem pensava mal dela sem nunca ter ouvido a voz da pessoa, sabia fazer coisas estranhas, como o copo da mesa da professora Maundrell (a mais metida e chata da escola) estourar em milhares de pedacinhos sem encostar nele. E assim ganhou uma grande amizade: Victor Jankes.

Victor também sabia fazer coisas estranhas acontecerem. Os cabelos negros caindo sobre os olhos castanhos e pele muito alva, davam uma aparência inocente, mas no último final de semana ele induziu um gato a pular numa cerca elétrica para morrer eletrocutado.

Laure ficou, também, muito amiga de Mina Coleman – menina de cabelos longos, lisos e negros, olhos cor de mel e que via em fleches coisas que aconteceriam no futuro –, e de Meg Godfrey – garota de cabelos castanhos e olhos verdes, que não sabia fazer nada de extraordinário, entretanto era apaixonada por tudo ligado ao místico e inexplicável.

Meg havia lido dúzias de livros que falavam desde como ler a sorte nas folhas de chá até sobre as supostas verdades das bruxas queimadas na idade média. Laure leu parte dos livros de Meg, fazia interpretações das visões de Mina, e tentava convencer Victor que gatos eram seres mágicos, portanto não deveria tentar matá-los.

Tornaram-se o quarteto mais temido da escola, mesmo sem nunca terem feito mal a ninguém – ou quase ninguém. As crianças saiam do caminho deles pelos corredores, pois havia algo de sinistro neles, então preferiam não cruzar com o grupo.

- Sobre Mina e Meg -
Nenhuma delas têm importância nessa história.
Mina perde o “dom” de prever o futuro depois de pegar
uma forte gripe aos doze anos de idade.
Meg perde a mãe e muda-se de Red Lodge com
o pai, para passar o resto da vida vivendo em Munique, na Alemanha.
Tanto Mina quanto Meg preferiram se esquecer que Laure passou pela vida delas.

A escola resolveu levar as crianças para passar um final de semana num sítio da cidade vizinha, Newmarket. Laure já tinha nove anos, assim como a maioria da turma, e estavam perto das férias de verão, por isso as professoras julgavam o passeio como algo que “veio a calhar”. Eva deixou a filha ir com muita relutância. Não pela preocupação normal de que a filha pode se acidentar, ou por estar longe. Estava preocupada dela fazer algo errado.

O sítio era mato e cabanas com dez camas cada. As professoras levaram as crianças para uma pequena trilha no bosque dentro das terras do sítio. O grupinho de Laure andava conversando assim como os outros, mas a própria Laure mantinha-se calada. Estava sentindo-se estranha desde que chegou no sítio, algo misturado com dor de cabeça e febre, como quando era bebê. Não contou para ninguém, apenas pediu a usual mistura de chás e tomou antes de sair.

Todos caminhavam embrenhados entre as altas árvores. Laure sentia-se tonta, enjoada, tudo parecia rodar. Pensou que ia cair, então se apoiou em Victor. O garoto olhou para ela com espanto e a segurou. Nesse momento tudo ficou escuro, mesmo ela estando em pé e com os olhos abertos pensou estar tendo uma alucinação. Escutava sussurros falando próximos dela, sussurros que falavam dela.

Aquela garota de pingente prateado amarrado no pulso, está vendo?

– Sim... Ela não parece estar bem.


Laure bateu as costas numa árvore na tentativa de não cair. Quando os olhos voltaram a tomar foco, ela viu Victor na frente dela, a segurando pelos ombros, enquanto o resto da turma seguia pela trilha sem notar nada.

– O que aconteceu? Você está bem? – perguntou o garoto aflito.

– Eu... Eu acho... – tentou com a voz fraca. – Eu acho que vou morrer.

Victor fez uma expressão de desentendido, e segurou Laure quando as pernas dela fraquejaram novamente.

– Laure, me escuta, o que você está sentindo?

Em vão. Laure não estava escutando o garoto. A única coisa que chegava aos ouvidos dela eram os sibilos baixos que se aproximavam. Arfou e empurrou Victor, se levantando subitamente para cair na terra úmida, em seguida.

Ela não é normal, olhe só para ela...

– É só uma criança como as outras. O que vai tentar fazer?!


O garoto xingaria se tivesse tido tempo. Ao olhar em direção a Laure viu duas cobras se aproximando da menina. Laure também viu, mas não se moveu, apenas observou, ligando os sibilos às cobras.

Desde quando cobras falam? – perguntou mais para si do que para os ofídios que se aproximavam.

Olha ela fala a nossa língua! – sibilou uma delas.

Eu nunca vi isso – disse a outra espantada. – Eu disse que ela não era normal. Senti isso e sei que você também. Nossos extintos não falham...

A primeira cobra rodeava Laure, parando a menos de um palmo do rosto dela. As duas se encararam firmemente, até a cobra desviar o olhar e se embrenhar na floresta seguida pela outra.

A menina olhou para trás. Viu Victor se levantando e indo a ela. Ele estendeu a mão para ajudar Laure se levantar; ela aceitou sem falar nada. Quando ambos já estavam de pé, Laure encarou o garoto.

– Você também ouviu as cobras falando? – perguntou ela cuidadosamente.

Ele balançou negativamente a cabeça voltando a olhar para a amiga.

– A única coisa que eu ouvi foi você falar como elas!

O assunto não foi mais tocado. Ambos tornaram a andar e se restringiram as suas próprias conclusões.

Quando Laure chegou em casa parecia mudada, realmente diferente. Algo nela tinha mudado, porém a menina não tinha notado isso. Eva notou. Ambas passaram um tempo sozinhas. Eva assistia televisão e Laure estava ao lado dela no sofá, abraçada aos joelhos, e mirando algo além do tapete velho.

– Você chegou estranha... – comentou a mãe.

– Eu sou estranha! – rebateu desviando o olhar para a mãe.

– Não diga isso!

– Sei o que as pessoas pensam, sei o que elas fazem, sei controlar os animais, sei fazer as coisas explodirem – despejou a menina de uma vez. – Posso machucar as pessoas se eu quiser, posso controlar a mente delas se desejar! E você chamaria isso de normal?!

Eva parou assustada, olhando a filha. Não tinha se dado conta de que ela tinha tantos poderes. Arfou e voltou a olhar a televisão. Laure ainda a encarava, até que finalmente respondeu:

– Acho tudo isso perfeitamente normal.

Laure de um suspiro exasperado. Normal? Ela estava longe do normal, e não queria ser normal. O prazer de viver para ela era saber que não era comum. Voltou a mirar o tapete velho.

– Mãe? – chamou depois de um tempo.

– Que foi?!

– É normal falar com cobras?

– Não Laure, não é normal...


* * * * *

N/A: Antes de qualquer aviso, gostaria de dedicar, especialmente, esse capítulo a R. Messagi, Graziella S. e Samara Riddle, por lerem e comentarem. Não parece, mas isso incentiva os autores escrever, ao menos me incentiva.

Agora vamos as observações. Grande parte dos acontecimentos desse capítulo são importantes, em especial Eva, o chá, Victor (prestem atenção nele!), e o fato de Laure ser ofidioglota. Bem, se eu falar mais conto a fic inteira...

Por enquanto é isso, espero realmente que vocês gostam, comentem!

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