Noticias da Tempestade
A que respondendo, o mar, não se demorando, não se apressando, sussurrou a mim através da noite e bastante claramente antes do nascer do dia, murmurou a mim a baixa e deliciosa palavra morte.
Walt Whitman,
Do Interminável Balanço do Berço
- Aqui estamos, senhorita. - O cocheiro abriu a porta da carruagem e baixou o degrau de madeira. - Espero que tenha uma ótima noite.
Hermione agradeceu-lhe distraidamente, mas não fez menção de descer do veículo. Olhou para a entrada ornamentada da Mansão dos Weasley. Degraus de mármore conduziam a uma imponente porta dupla que fora deixada aberta para dar passagem aos muitos convidados que entravam no vestíbulo. Lampiões a gás reluziam sob o cair da noite, criando uma suave atmosfera em torno da elegante multidão.
Casais que dançavam iam passando diante das janelas altas em arco numa profusão de cor e música. Perguntou-se se veria sua família na festa. Susan já estaria casada àquela altura.
Casar-se havia sido o ponto máximo de todos os sonhos de Hermione. Mas não tinha mais tanta certeza. Agora, dava-se conta de que a chave para a felicidade tinha menos a ver com estabelecer um lar com um cônjuge apropriado e mais, muito mais, a ver com encontrar alguém que desse a uma pessoa confiança, paz e paixão. Dádivas tão especiais que mal podia descrevê-las.
- Senhorita? - O cocheiro limpou a garganta e estendeu-lhe a mão enluvada.
- Sim - murmurou ela, deixando-o ajudá-la a descer. Um vento forte, carregado com a ameaça de chuva, soprou pela rua Beacon, fazendo com que suas saias leves e amplas esvoaçassem.
Subiu a escadaria devagar até a porta da frente, subitamente consciente de que não se parecia em nada com os demais convidados.
Usava um vestido de uma cor vibrante, feito num estilo europeu que Boston mal reconheceria. Seus cabelos estavam arrumados em cachos sofisticados em vez do usual coque com algumas mechas encaracoladas soltas. Dias sob o sol e vento haviam arruinado a alvura de pele que todas as damas ansiavam por manter.
Ela abriu um sorriso. Nunca havia se encaixado nos moldes daquela sociedade antes e já estava acostumada a tal sensação. Ainda assim, ao contrário de antes, não desejava estar invisível. Queria que todos a vissem, queria fazer justiça a tudo que Harry e a tripulação haviam-lhe dado.
Com a cabeça erguida e um sorriso no rosto, entrou no amplo vestíbulo e cumprimentou seus anfitriões.
- Sr. e Sra. Weasley, é tão bom revê-los. - Sentiu de imediato a intensidade de dezenas de olhares na sua direção. A antiga Hermione estaria dominada pelo nervosismo em se ver objeto de tão ávido interesse. Mas a Hermione de agora apenas alargou seu sorriso enquanto fazia uma graciosa e polida mesura.
Não tinha dúvida de que era graciosa. O Sr. Izard a ensinara a fazer aquela mesura durante semanas. Graças à surpreendente bondade de um bando de marujos rudes, agora sabia dançar e se comportar até como uma rainha, se desejasse.
Arthur e a esposa trocaram um rápido olhar.
- É bom revê-la também, querida. Seja bem-vinda à nossa casa. Por favor entre e...
- Perdoem-me - disse uma voz conhecida e aveludada. - Creio que ainda não fomos apresentados.
Hermione manteve-se imóvel, saboreando o som de uma voz pela qual costumara viver. Virou-se a tempo de ver Ronald Weasley inclinando-se galantemente para pegar-lhe a mão. E, então, riu, pois deu-se conta de que ele realmente não sabia quem ela era.
- Ao contrário - disse-lhe, seu riso adorável atraindo ainda mais a atenção de pessoas que passavam por ali, ou dançavam perto da grande passagem em arco que conduziam ao salão. - Nós já fomos apresentados, eu lhe asseguro, cavalheiro.
- Então, dance comigo - pediu Ron, praticamente devorando-a com o olhar - e permita-me a chance de recobrar minha memória.
Era incrível, pensou Hermione, enquanto ele a conduzia ao salão e se juntava a uma formação feita por duas fileiras de dança. As pessoas se deixavam enganar tanto assim pela aparência? As mudanças mais drásticas haviam ocorrido em seu íntimo, mas se manifestavam em seu exterior.
Mais olhares inquiridores acompanharam-na ao longo das fileiras. Pela primeira vez em sua vida, soube o que era ser objeto da admiração masculina. Neville Longbotton tentou sussurrar-lhe um cumprimento quando ficaram diante um do outro na formação de dança. Um outro rapaz quase tropeçou porque estava olhando para ela em vez de prestar atenção nos próprios passos. Um pouco depois, Ron quase se engalfinhou com Neville enquanto ambos discutiam sobre quem merecia o privilégio de ir buscar-lhe uma taça de ponche.
Ela também experimentou, pela primeira vez, o que era ser o alvo da inveja das outras mulheres. Luna fuzilava-a com o olhar, e as demais jovens comentavam freneticamente a seu respeito por trás de seus leques.
Descobriu que aquilo era bem menos prazeroso. Não queria deixar ninguém pouco à vontade. Queria simplesmente divertir-se em companhia de outras pessoas, algo que nunca conseguira fazer.
Até que Harry havia lhe mostrado como era.
Lançou um olhar na direção da porta. Onde ele estaria, afinal? Sentia sua falta. Ainda estava em choque por causa da última conversa de ambos.
Eu me apaixonei por você naquele dia.
As palavras ainda ecoavam em seus ouvidos, dissipando a música até que estivesse dançando automaticamente, como uma marionete alheia a seus passos. Ele se apaixonara por ela. Harry. Seu exasperante, sarcástico, perigoso, pouco convencional e maravilhoso capitão.
Mal podia esperar para vê-lo.
- É melhor esperarmos até que a tempestade passe - declarou Harry, observando as nuvens grossas e cinzentas que avançavam do nordeste. Ele e Dino achavam-se no convés da escuna que Izard conseguira alugar. O dono obviamente sentia mais cobiça do que orgulho em relação a ela. A embarcação de dois mastros, embora parecesse capaz de boa velocidade em alto-mar, estava apodrecendo em alguns lugares e tinha decididamente uma inclinação a estibordo.
- Acho que não deveríamos esperar - disse Dino, entregando-lhe uma grande luneta de latão. - Dê uma olhada naquele barco.
- São autoridades do porto.
- Estão indo direto até o Cisne de Prata.
Seu amigo poderia estar certo, ponderou Harry, a julgar pela direção do barco. Mas havia uma porção de embarcações no porto.
- A tripulação irá retardá-los. Até detê-los lá se for preciso.
- Aquele tal Weasley acabou vendo Celeste - comentou Dino, sua voz baixa e repleta de ansiedade.
- Droga, será que chegamos tão longe apenas para ser apanhados?
- O tempo está péssimo. - Harry sentia o estômago em nós com a indecisão. - Apenas um tolo levantaria âncora numa situação destas.
- Um tolo, ou um fugitivo.
O barco aproximou-se mais do Cisne e Harry observou um pouco mais. O que viu através da luneta o fez tomar sua decisão.
- Estão levando polícia armada.
Os dois trocaram um olhar que dispensava palavras. Não tinham escolha. Precisavam zarpar.
- Delilah e as meninas estão bem acomodadas lá embaixo?
- Sim.
Ambos nem sequer perderam tempo levantando âncora; cortaram os cabos e zarparam. Enquanto a escuna avançava pelas ondas agitadas, o vento forte soprando nas velas, Harry pensou em Hermione. Prometera ir à festa. Havia quebrado a primeira promessa que já lhe fizera. Certamente, aquilo era prova de que ela ficaria melhor sem ele.
O que estaria fazendo naquele momento? Estaria abrindo aquele sorriso encantador, sendo cortejada por um grupo de novos admiradores?
Gostava de pensar que dera alguma contribuição para fazer com que os sonhos dela se realizassem.
E cometera um erro ao ter-lhe dito que a amava? Não sabia. Mas estava contente em ter contado a verdade. Talvez fosse a única coisa honesta que pudesse lhe dar.
Hermione ficava maravilhada a cada vez que pensava na declaração de Harry. Estava ansiosa para que ele chegasse. Mas aquilo não aconteceu. Foram apenas mais convidados que entraram, a dança daquele momento terminou e, depois do aplauso, ela se viu à espera de Harry outra vez.
- Espero que você me permita que eu lhe faça uma visita - disse Ron, colocando-se a seu lado, uma mão possessiva em sua cintura.
Tudo aquilo, pensou Hermione, deveria ser como um sonho que estivesse se realizando. Não desejara durante anos que Ron a notasse, que quisesse estar a seu lado? Agora, porém, observava-lhe o rosto de príncipe de contos de fadas, suas roupas perfeitas, e dava-se conta de que ele fora uma ilusão, tão irreal quanto uma ilustração num livro infantil. Não havia amado Ron, amara a idéia que fizera dele. Ron representara todas as coisas que ela não tivera, beleza, pose e popularidade social. Ainda assim, agora que Hermione possuía aquelas qualidades, percebia que não eram tão importantes quanto as julgara.
- Você não faria objeção? - persistiu Ron, ansioso, não fazendo a menor idéia do que se passava pelos pensamentos dela. - Se eu lhe fizesse uma visita?
- E por que eu faria objeção? - murmurou ela, distraída. Não conseguia desviar o olhar da porta da frente. Fortes rajadas de vento sopravam de encontro às janelas, os relâmpagos rasgavam o céu inundando o vestíbulo para além da passagem em arco com sua ameaçadora luminosidade.
Alguns minutos depois, mais convidados chegaram, mas Harry não se encontrava entre eles. Ainda assim, Hermione ficou contente em ver os recém-chegados. Permanecia ao lado de Ron, sorrindo enquanto o grupo se aproximava.
Uma voz feminina exclamou:
- Mione? Céus, é Hermione? - E um verdadeiro alvoroço se seguiu.
- Está é... Hermione? - Ron ficou de queixo caído.
Hermione adiantou-se para abraçar sua irmã Susan, que ficara tão surpresa quando a vira.
- Oh, Susan, é tão bom ver você - disse, abraçando-a afetuosamente. Quando recuaram um pouco, Susan continuou fitando-a em incredulidade.
- Não acredito em meus olhos - disse ela, uma expressão admirada no rosto. - Olhe para você, Hermione. Você está absolutamente deslumbrante!
Hermione riu, achando que a irmã estava exagerando, mas sentindo-se tocada com o fato de ter notado as mudanças. Numa questão de segundos, enquanto todos à volta comentavam a novidade, a outra irmã e os dois irmãos aproximaram-se para a cumprimentarem, seguidos pelos pais. Ron ficou de lado, silencioso, estupefato, enquanto todos falavam ao mesmo tempo:
- Quando você voltou?
- O que, afinal, fez com seus cabelos?
- Onde estão seus óculos?
- Essa é a moda no Rio de Janeiro?
- Pode me ensinar aquele novo passo de dança?
Hermione tentou responder tantas perguntas quanto pôde, ciente do crescente interesse das pessoas à volta de sua família.
- Tenho tanto a contar a vocês - declarou. - Eu me sinto como se tivesse me ausentado durante anos, não meses.
Os pais estavam radiantes e orgulhosos.
- Estamos felizes que tenha voltado. Sentimos sua falta - disse-lhe a mãe.
E Hermione compreendeu que, finalmente, fizera algo que havia agradado sua mãe. Devia sentir-se satisfeita, mas, em vez daquilo, estava meramente intrigada. Admirava-se com a facilidade em ganhar aprovação só porque estava com boa aparência e dançava bem.
Apesar da alegria em estar com sua família, não conseguia conter os olhares nervosos que lançava na direção do vestíbulo.
- Está esperando alguém? - perguntou-lhe o irmão Peter.
- O capitão Potter - respondeu Hermione. - Achei que ele já devia ter chegado a esta altura. Esta viagem foi-lhe um triunfo tão grande.
- Você não sabia? - perguntou Arthur, aproximando-se com o cenho franzido. - Ele não virá à festa. Seu primeiro imediato enviou-nos uma mensagem. Harry enviou suas desculpas, mas não poderá comparecer.
Até a manhã seguinte, Hermione Jane Granger já havia se tornado a sensação de Boston. No passado, aquela verdadeira aclamação lhe teria significado o mundo. Mas agora dava-se conta da futilidade em querer algo que dependia das opiniões e padrões das outras pessoas e que não tinha nada a ver com a maneira como se sentia.
Logo cedo, sentou-se na cama, com os olhos sonolentos e um tanto desorientada. Piscou algumas vezes, olhando ao redor, observando o elegante papel de parede, a escrivaninha maciça a um canto e as portas-janelas com suas cortinas de veludo.
Um tanto atordoada, reconheceu o próprio quarto na casa de seu pai. Estava em casa novamente.
E sentia-se como a estranha que sempre fora naquela casa.
Lembrou-se da festa da noite anterior, de ter dançado até que sentira os pés doendo e a garganta seca de tantas conversas e risos. Soube, então, que era daquela maneira que as garotas populares acordavam a cada manhã depois de uma festa. Bonita e popular. As coisas que sempre quisera ser. Ao menos até que Harry lhe mostrara que tais qualidades não importavam.
Levantando-se, lavou o rosto na bacia que encimava a cômoda. Sua bagagem fora enviada do Cisne de Prata junto com a caixa que Lily tinha-lhe mandado de presente. Abrindo-a, encontrou mais dos vestidos adoráveis que ela lhe dera e colocou um, limitando-se a uma única anágua. Tentava ajeitar os cabelos quando ouviu uma batida à porta.
- Entre.
Thankful, a criada, adiantou-se pelos aposentos com uma bandeja.
- Aqui está o seu chá, senhorita, junto com uma porção de cartões e cartas.
- Obrigada. Coloque tudo na mesa de canto. - Hermione abriu um sorriso distraído. Continuava pensando na noite anterior, a noite em que todos os seus sonhos deveriam ter se tornado realidade, mas aquilo não acontecera.
Thankful demorou-se junto à porta, observando-a com mal disfarçada curiosidade e algo mais. Admiração. Sim, a criada que rira dela, que a tornara motivo de chacota trocando sussurros maledicentes com outra debaixo da escada, estava subitamente fascinada com a sua transformação.
- Isto é tudo por enquanto, Thankful - disse Hermione, dispensando-a. Serviu-se de uma xícara de chá e sorveu-o lentamente, enquanto verificava os cartões e cartas. Eram convites. Havia uma pilha imensa deles. Convites para bailes, peças de teatro, grupos de leitura, debates intelectuais, piqueniques, jogos e passeios ao campo. Todo tipo de evento social com o qual sonhara. Tudo pelo que ansiara estava agora à sua frente numa bandeja de prata.
O problema era que não queria mais aquele tipo de vida. A constatação apanhou-a de surpresa, e largou as cartas. Céus... Passara anos desejando algo que nem sequer tinha importância!
A celebração da noite anterior parecera vazia e sem significado sem Harry. A Hermione insegura de antes emergiu brevemente, perguntando-se se ele se arrependera de sua impulsiva declaração de amor e a estava evitando.
Não. A nova Hermione lembrou-se da expressão nos olhos de Harry quando dissera que a amava. E confiava naquele olhar. Por incrível que parecesse, o homem mais interessante do mundo amava-a. Devia ter percebido aquilo muito antes. Devia ter visto tudo acontecendo devagar, enxergado através das provocações dele. Harry lhe dissera que a amava de incontáveis maneiras, talvez tendo começado com o que parecera um singular ato de crueldade quando atirara seus óculos ao mar.
Fora cabeça-dura demais para não ter-se dado conta de que as atitudes dele tinham um significado especial.
- Tola - disse por entre os dentes. - Tola, mil vezes tola! - Tudo o que queria estivera ao seu alcance a bordo do Cisne de Prata. Nos braços de Harry Potter. Mas estivera tão obcecada por voltar a Beacon Hill, por conquistar Ronald Weasley e impressionar aqueles que haviam rido dela que acabara ficando cega ao que realmente importava.
Era Harry o que realmente lhe importava. Harry e a maneira como a fazia sentir-se. A maneira como o amava.
- Céus - sussurrou ela, colocando depressa um chapéu e apanhando um xale. - Eu o amo!
Um misto de medo e alegria dominava-a enquanto descia as escadas rapidamente, quase derrubando a bandeja no vestíbulo que estava ficando repleta com uma nova remessa de convites.
- Eu estou saindo, mãe - avisou, olhando por sobre o ombro e abrindo a porta da frente sem esperar por uma resposta.
Devia estar a sentando uma figura peculiar, correndo pelas ruas molhadas de Beacon Hill em direção ao porto, as fitas do chapéu esvoaçando ao vento, as saias erguidas quase até os joelhos. Babás que passeavam com crianças pararam para olhá-la com curiosidade. Jardineiros deixavam suas tarefas momentaneamente para observar e rostos inquiridores espiavam pelas janelas das carruagens.
Hermione não se importava; mal notava, na verdade. Era apenas uma curta distância ao longo das ruas molhadas pela chuva torrencial da noite anterior e, ainda assim, nunca a percorrera a pé. Ficou surpresa em notar que em questão de minutos chegava ao porto. O único pensamento em sua mente era Harry. Tinha que encontrá-lo e dizer-lhe... O quê?
Dizer-lhe que o amava?
E do que teria adiantado? perguntara-lhe ele ainda no dia anterior. Quisera dizer que não teria adiantado porque não achava que ela pudesse amá-lo? Ou porque haveria alguma outra razão para não se apaixonarem um pelo outro?
Não importava. Sabia agora, sabia com uma certeza que zombava dela por não ter reconhecido aquilo mais cedo. Por que não entendera, quando Harry a abraçara e beijara, quando a amara tão arrebatadoramente que fora amor que ela estivera sentindo?
Porque a vida lhe ensinara a desconfiar de seus próprios sentimentos, a obedecer a regras e convenções. Harry lhe ensinara o contrário. Quase rindo e chorando ao mesmo tempo com aquelas descobertas, mal notou quando começou a chover outra vez. Através da névoa espessa e fria da manhã, avistou o Cisne de Prata e correu em sua direção.
Práticos do porto haviam levado o navio a seu ancoradouro e estivadores andavam de lá entre as docas e o convés, desembarcando a carga. Hermione avistou Timothy Datty e acenou-lhe, colocando as mãos a volta dos lábios para lhe gritar:
- Preciso ver o capitão Potter!
De uma dada distância, a postura de Timothy pareceu mudar. Foi um truque da névoa, ou seu rosto empalideceu, seus ombros caíram?
Então, Hermione a viu. Uma fita larga e preta amarrada a um mastro, tremulando sob a chuva.
Obrigou-se a recuar e ficar debaixo de um coberto de lona enquanto esperava que Datty descesse pela prancha de desembarque. Ouviu o tamborilar da chuva na lona, o grito desolador de uma gaivota, o relincho de um cavalo. Timothy fez uma pausa para falar brevemente com um pescador e, então, continuou caminhando em sua direção.
Hermione não queria ouvir, qualquer que fosse a coisa terrível que o garoto tinha a lhe dizer. Queria tapar os ouvidos, mas aquilo seria errado, seria covardia, e se havia algo que aprendera com Harry fora a ter coragem.
Adiantou-se até Timothy, encontrando-o a meio caminho entre o coberto e o navio. Ficou sob a chuva, em meio ao frio que pairava sobre as docas, sentindo cada gota de água escorrendo por seu rosto e não se importando por estar se molhando.
- Onde está o capitão Potter? - Sua voz não tremeu, não traiu o terror que começara a dominá-la no instante em que vira a fita preta a meio mastro.
- Houve p-problemas ontem à noite - disse Timothy, a respiração acelerada pelo nervosismo. - Por favor, não fique na chuva.
- Diga o que houve. Diga logo.
Ela notou, com um terrível aperto no peito, que os outros membros da tripulação se aproximavam devagar, os chapéus nas mãos, os olhares baixos.
- A guarda do porto nos abordou ontem à noite. Disseram que tinham recebido uma denúncia de que estávamos com escravos fugitivos a bordo e q-que tínhamos que entregá-los imediatamente.
- Harry jamais se entregaria. - Hermione conteve um soluço na garganta, determinada a ouvir o que acontecera com uma firmeza que não desonrasse a bravura de Harry.
- Nós detivemos a guarda no navio o máximo que pudemos - contou Ralph Izard. - Houve muita discussão, mas ninguém chegou aos socos. - Limpou a garganta. - Não havia mais nada irregular a bordo, afinal. O capitão e Dino já haviam colocado Delilah e as meninas na escuna alugada.
Hermione fechou os olhos.
- Eles zarparam, não foi? Partiram bem em rumo à tempestade.
- Não tiveram muita escolha. As autoridades revistaram as embarcações ancoradas e mandaram alguns barcos em perseguição, mas apenas até a saída do porto. Porém, acabaram desistindo. - Izard baixou o olhar e apertou o chapéu molhado entre as mãos. - A tempestade os fez recuar.
- E a escuna? - perguntou Hermione, engolindo em seco. Seguiu-se um longo silêncio que oprimiu ainda mais seu coração.
Os ombros de Timothy tremeram com soluços incontidos. O Doutor assoou o nariz ruidosamente num lenço, e William Click colocou a mão no braço do cozinheiro num gesto de consolo. Gerald, Luigi e Chips permaneceram por perto, torcendo as mãos em sinal de impotência. Sem seu capitão, pareciam uma tripulação das mais desoladas.
Izard fez um gesto na direção de um grupo de pescadores, que descarregavam o bacalhau que haviam apanhado.
- A tripulação do Gail avistou-os em George’s Bank e tentou ajudá-los, mas as ondas estavam grandes demais.
- O tempo não estava nada bom para se navegar - comentou Chips, sua voz carregada de horror.
- Os pescadores viram a escuna afundar - revelou Izard no tom mais calmo que pôde.
Hermione teve a sensação de que havia um barulho terrível em seus ouvidos, mais assustador do que o do mar revolto numa tempestade.
- Mas, com certeza... eles... devem ter escapado em botes.
- Não, senhorita. - O rosto sério dele estava contraído pelo sofrimento. - Não houve sobreviventes.
No íntimo de Hermione, algo se espatifou em mil pedaços. Algo morreu, dilacerando seu coração.
Viu Timothy estendendo-lhe a mão, mas não a pegou. Não havia absolutamente nada que pudesse confortá-la num instante como aquele.
Deveria chorar, pensou. Deveria começar a chorar naquele momento e nunca mais parar. Mas não era tão simples. A dimensão de sua perda era grande demais para meras lágrimas.
Uma calma assustadora dominou-a enquanto desviou o rosto da tripulação do Cisne.
- Onde estão? - perguntou, o olhar fixo na distância. - Onde estão os corpos? - A calma entorpecia-a, sufocava-a.
- Senhorita Granger, eles afundaram junto com a escuna. Não haveria como resgatar os corpos numa tempestade daquelas. Por favor, vamos até o navio. O Doutor lhe fará um chá.
Hermione ignorou a voz suplicante, os murmúrios solidários, ignorou a tudo exceto o barulho cruel do oceano em seus ouvidos. Era como se sangue não corresse mais por suas veias. Em seu lugar, parecia haver gelo, puro gelo, tão frio quanto o lastro que havia equilibrado o Cisne de Prata em sua fabulosa viagem ao paraíso.
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