De volta ao Lar



Lar” designa quaisquer quatro paredes
que abriguem a pessoa certa.



Helen Rowland
Baía Mockjack Virgínia.




Março de 1852



- Terra à vista! - ecoou o anúncio do mastro principal.

Hermione, que gritara o aviso a plenos pulmões, abriu um largo sorriso para Dino, que se achava sobre uma verga.

- Eu sempre quis dizer isso - confessou ela.

- Você soou como um velho marujo - assegurou-lhe Dino.

- Eu me sinto experiente como um velho marujo. - Hermione baixou um olhar de certo divertimento para sua saia simples, sem anáguas, erguidas entre as pernas para formar pantalonas. O sol bronzeara-lhe a pele, dando-lhe um tom dourado que levaria sua mãe a mergulhá-la numa banheira de leite e água de rosas. Os cabelos haviam-se tornado uma massa castanha-alourada de cachos rebeldes, mantidos no lugar por uma fita de couro.

A tripulação do Cisne de Prata a aceitava daquela maneira, talvez até a preferisse assim, e, portanto, mal pensava em seu jeito de se vestir.

A viagem desde o Rio de Janeiro transcorrera sem acidentes, mas não fora nem um pouco entediante. Nas semanas iniciais, mantivera-se ocupada, trabalhando em toda a papelada gerada pelas transações comerciais feitas por Harry como representante de Arthur Weasley. Logo ficara evidente para Hermione e para o restante da tripulação que a viagem fora um grande êxito. Ninguém desertaria quando atracassem na Virgínia, todos completariam a viagem de volta a Boston a fim de obterem pagamento total.

A expectativa de um pagamento lucrativo elevou o ânimo de todos. Para Hermione, porém, a perspectiva do termino da viagem era desconcertante. Em alto-mar, desfrutara um peculiar senso de liberdade. Os homens do Cisne não a julgavam por sua aparência, ou pelo jeito como se vestia. Dia-a-dia, passara a assumir mais e mais o seu papel; amiga, professora, ajudante, ouvinte e aprendiz. Num dia esquecera-se de colocar uma certa quantidade de anáguas, no outro deixara de vesti-las de propósito. Quando, enfim, avistou as colinas verdejantes da Virgínia, já havia passado a usar sua saia e blusa mais simples. Com mais freqüência do que nunca, permanecia descalça e com os cabelos descobertos enquanto cuidava de ‘seus afazeres’.

Por razões que iam além de sua compreensão, Harry desdobrava-se para entretê-la, para diverti-la e atender até a seu mais tolo capricho. Quando ficara encantada com um grupo de golfinhos, ordenara a tripulação que fizesse as manobras necessárias para lhe dar chance de olhar melhor, embora aquilo os tivesse tirado do curso. Quando quisera ajudar a pintar o mastro, ele lhe providenciara um assento de lona, suspenso por roldanas, e encorajara-a na tarefa, enquanto um dos homens controlara a descida do assento.

Ainda assim, a despeito de todas as atenções com que ele a cobria, os momentos de quietude desconcertavam-na. Havia momentos em que deparava com ele inesperadamente num corredor, ou no refeitório e gelava, tomada pelas lembranças do que haviam partilhado na floresta tropical. Tivera certeza, depois daquele dia, de que nada voltaria a ser o mesmo.

E estivera com a razão.

Quando se virava e a olhava de repente, Harry a fazia lembrar-se da maneira como a olhara quando haviam nadado na lagoa e lhe dissera que a achava uma deusa. Se acontecia de observar-lhe as mãos fortes, ela se recordava das sensações que haviam lhe proporcionado com suas carícias. Quando o ouvia falando, lembrava-se do timbre rouco de sua voz dizendo-lhe: “Fique em meus braços e eu lhe mostrarei”.

Tinha lembranças daquele dia maravilhoso como as de alguém que recordasse de um sonho vivido em especial. Eram lembranças que se mantinham num patamar elevado, à parte do restante de sua vida. Eram como uma jóia fugidia que pudesse ver brilhando na distância, mas que estivesse longe de seu alcance. Naquele dia sublime de sua vida, fora alguém completamente diferente da Hermione Granger de Beacon Hill. Não tivera nome, fora como uma ninfa da floresta que havia sido bonita pela primeira vez na vida, que ficara nua e desinibida como Eva diante daquela cachoeira espetacular. Sentira uma paixão incrível, inspirada por um homem tão especial. Por um dia glorioso, fora como uma estranha aos seus próprios olhos.

Todos aqueles pensamentos e lembranças formavam um turbilhão em sua mente e em seu coração a cada vez que encontrava Harry. Mas, desde a última conversa que tinham mantido sobre aquele dia, quando toda a incerteza, amargura e confusão dela tinham ido à tona, nunca mais haviam falado a respeito.

Durante tais encontros desconcertantes, não podia decifrar os pensamentos dele, pois mantinha o rosto como uma máscara impenetrável.

E, portanto, por acordo mútuo e tácito, haviam determinado que o interlúdio na floresta tropical tinha sido um erro. Para todos os efeitos, na verdade, era como se aquela tarde nunca tivesse acontecido. E talvez não acontecera. Talvez tivesse acontecido com duas pessoas completamente diferentes, pessoas que não existiam mais.

Agora, enquanto descia do mastro, quase colidiu com Harry no convés.

- Desculpe-me - disse-lhe ele, num tom formal. - Eu ouvi um grito de “terra à vista”.

- Fui eu, capitão.

Teimosa, ela se recusou a lhe dar passagem, embora ficasse claro que Harry queria prosseguir em seu caminho. Estava cansada de ser ignorada, de negar o que acontecera.

- Ser invisível sempre foi uma vantagem em Boston, mas, eu lhe asseguro, não é o caso em seu navio.

- Invisível? Não sei o que quer dizer.

- Você olha através de mim, não para mim.

- Peço-lhe desculpas. Não quis ofendê-la.

Aquele excesso de polidez enfureceu-a. Sabia que era arriscado, mas queria provocá-lo a fim de que deixasse transparecer algo daquilo que lhe ia nos pensamentos.

- Acho que está determinado a me confundir.

Harry franziu o cenho.

- Acredite, tenho coisas mais importantes a fazer.

- Então, por que está sendo tão polido e cordial?

- Para que você possa aprender como é isso.

- Tudo o que está me ensinando é que a bondade é uma falsa fachada.

- Preferiria que eu a tratasse como Ronald Weasley fazia?

- Isso não é da sua conta. - Hermione não podia crer em como seus sentimentos em relação a Ron haviam mudado durante aquela viagem. Havia partido de Boston acalentando um sonho com ele. Em poucos meses, o rapaz se tornara uma lembrança vaga, distante, absurda.

Os homens ocuparam-se com suas tarefas, cuidando dos preparativos para a chegada. Harry passou-lhe a luneta às mãos e apontou.

- Aquela é a baía Mockjack.

Ela olhou pela luneta, focando a lente na costa verdejante. Havia cerca de meia dúzia de grandes embarcações ancoradas no porto. Penínsulas pequenas e estreitas avançavam pelo mar e, mais além, avistavam-se colinas azuladas e campos intermináveis. Como castelos de areia, casas e construções anexas coroavam cada elevação de terra.

- Parece um lugar adorável - comentou ela.

- Acho que sim. Mas eu passei minha tenra juventude olhando de lá para o mar. - Harry apontou para um lugar mais distante. - Está vendo aquela casa cheia de colunas na frente. Aquela é Bonterre, a propriedade de nossos vizinhos mais próximos. A família se chama Beaumont.

Mesmo à distância, Hermione pôde ver que Bonterre era uma propriedade imensa.

- É difícil fazer idéia de seu tamanho exato. As fazendas da Nova Inglaterra são tão pequenas em comparação.

Harry concordou com um gesto de cabeça.

- Os Beauniont são os maiores proprietários de terras do condado. Meu meio-irmão, Simas, casou-se com Lacey Beaumont alguns anos atrás.

Ela suspirou, dando asas à imaginação perante a idéia de um casamento sendo realizado naquele castelo de contos de fadas na distância. Ficou curiosa a respeito do passado de Harry, de sua família, de como teria sido crescer ali. Era agradável também o fato de ambos estarem tendo uma conversa civilizada. Talvez a amizade não estivesse fora de cogitação.

- O casamento foi luxuoso e deslumbrante? - perguntou.

- Não sei. Eu estava ocupado demais obtendo deméritos em Harvard. Na última vez que vi Lacey, ela ainda usava tranças. Sempre gostou de Simas. Desde que ambos eram crianças.

Hermione tentou adivinhar como ele se sentia em relação ao meio-irmão. Mas notou que mantinha uma expressão neutra, seu tom casual. Não pôde determinar nada.

- A esposa e as filhas de Dino vivem em Bonterre.

- Dino poderá vê-las?

Harry apertou os lábios e desviou o olhar.

- Eu não sei.

- Mas você é praticamente da família. Seu irmão é casado com uma Beaumont. Não é possível que lhe neguem isso.

- A situação é mais complicada. - Harry soltou um longo suspiro. O mar ia se abrindo à frente, enquanto o navio entrava pela baía. - A união entre Simas e Lacey foi mais uma aliança territorial do que um casamento. - Protegendo os olhos do sol com a mão, olhou na direção da costa. O navio agora oferecia uma visão melhor das propriedades que davam para a baía, e uma exclamação contrariada escapou-lhe dos lábios.

- O que foi? - perguntou Hermione.

- Albion. - Harry pegou-lhe a luneta das mãos para observar melhor. - Algo está errado.

- Não entendo.

- Os campos estão vazios. Nada foi plantado.

- Esse é o costume, não é? É o chamado sistema rotativo, onde se deixam campos sem serem plantados para que o solo se recupere.

- Mas não acontece em todos os campos de uma só vez. Nem por mais de uma temporada de plantio.

- O que acha que está acontecendo?

- Não sei, mas acho que vou descobrir.



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