Desconhecidos
Por que não buscar o prazer imediatamente?
Com que freqüência a felicidade é destruída pela preparação,
pela tola preparação!
Jane Austin
(1798)
A música cessou abruptamente. Harry sentiu a prostituta mexendo-se em seu colo enquanto se virava para ver as recém-chegadas. Com os olhos injetados, ela franziu o cenho para a mulher alta com os cachos grossos dos cabelos escapando do chapéu.
- Aquela toda vestida de preto é a sua mãe?
- Não. - Mantendo o máximo de compostura que pôde reunir, ele colocou a mulher de pé no convés e levantou-se, apoiando a parte detrás das pernas na cadeira para manter o equilíbrio. Chips, o carpinteiro, teve a presença do espírito de dar um passo à frente e conduzir a prostituta dali, apaziguando-a com outra garrafa de bebida.
Harry empenhou-se ao máximo para conter o sorriso malicioso.
- Mãe, que surpresa inesperada.
- Posso ver que sim - respondeu Lily.
Apesar de embriagado, ele não deixou de notar o desapontamento no rosto da mãe. Foi algo que a fez apertar os lábios de leve e hesitar por um longo momento antes de se adiantar para abraçá-lo.
Ele estava impregnado do cheiro de rum e perfume barato. Afastou-se depressa, não querendo deixar a mãe nauseada. Nada mudara desde a última vez em que a vira, não realmente. Haviam-se despedido no ancoradouro da fazenda de Albion, na parte sul da baía Chesapeake. Ela o avisara que desistir da Universidade da Virgínia e ir para o norte cursar Harvard iria exigir mais dele, muito mais do que poderia imaginar. Possivelmente, mais até do que poderia dar.
Bêbado ou sóbrio, estava fadado a desapontar a mãe, não importando o que fizesse. E lamentava ainda mais estar fazendo aquilo em público. Fez um gesto na direção de uma escada que conduzia ao convés principal.
- Vamos descer até a minha cabine. Poderemos conversar lá.
- O que, afinal, está acontecendo aqui? - indagou uma voz furiosa.
Harry piscou os olhos injetados e soltou um gemido. Arthur Weasley. Exatamente o que precisava. Pela primeira vez, sentiu verdadeira apreensão. As intemperanças daquela noite tinham colocado toda a sua missão em perigo. Ele e Dino estavam tão próximos de seu objetivo. Mais uma viagem e teriam o dinheiro que precisavam. Agora, graças à sua irresponsabilidade poderia ter colocado a viagem seguinte em risco.
Forçando-se a abrir outro sorriso, ocultou seus pensamentos e meneou a cabeça para cumprimentar seu empregador. Respirou fundo, então, esperando não desgraçar mais a si mesmo do que já havia feito.
- Eu estava conduzindo uma pequena comemoração em homenagem ao nosso regresso seguro, senhor. - Exagerou na pronúncia de cada palavra, esperando que as vogais longas e pastosas fossem atribuídas apenas ao seu sotaque sulista em vez de a todo o rum que ingerira. - Achei que um pouco de diversão faria bem aos homens.
- Você não é pago para achar nada. - O olhar estupefato de Arthur percorreu o convés, notando os casais com poucas roupas, de braços e pernas entrelaçados nos cantos escuros, os homens bebendo a valer dos barris, as galinhas correndo em meio a toda aquela confusão. - Estou chocado. Simplesmente chocado. Pequena comemoração, pois sim!
- E é, senhor. Sabe, de onde eu venho... - Harry fez uma pausa. Inventaram tantas mentiras para que Arthur o contratasse que teve que parar por um momento para recordá-las. - A bordo do famoso Twyla era considerado um grave erro mandar a tripulação desembarcar sóbria. Havia o perigo de que os homens encontrassem emprego em terra e não quisessem tomar parte na viagem seguinte.
Fez um gesto amplo, abrangendo o convés repleto de marujos embriagados.
- Estes são os homens que fizeram o Cisne de Prata obter seu recorde. Conquistaram a sua recompensa. - Encontrou o olhar de Ralph Izard, o primeiro imediato. Diante do olhar de súplica de seu capitão, Izard estalou os dedos, fazendo com que todos deixassem o convés, cambaleando pelas escadas abaixo.
Harry ajeitou o casaco o melhor que pôde e deu um passo atrás, usando um tom galante.
- Sr. Weasley, deixe-me apresentar-lhe minha mãe, a Sra. Lílian Evans Potter e sua acompanhante... - Interrompeu-se, lançando um olhar à mulher de óculos e vestido preto. Ela apertava as mãos enluvadas diante de si, como se rezasse pela alma dele.
Se conhecesse Harry Potter, compreenderia que seus esforços eram inúteis. Estava condenado. Precisaria de mais do que as fervorosas preces de uma dama para ser salvo.
Arthur inclinou a cabeça acima da mão estendida de Lily. Virou-se, então, para a outra mulher.
- Pelos céus, Hermione! O que está fazendo aqui?
- Vocês se conhecem? - Harry cambaleou de encontro a uma coluna de madeira, colocando a mão para trás a fim de se apoiar.
- Eu fui chamado numa festa na casa do pai dela para resolver um assunto de negócios, rapaz. Não faço idéia do que a trouxe aqui.
A mulher chamada de Hermione limpou a garganta.
- Bem, eu achei que... Isto é, aconteceu de a Sra. Potter perguntar a respeito de seu... filho, e uma vez que o senhor havia mencionado que ele estava aqui no Cisne, achei que... quero dizer, a Sra. Potter era uma convidada em minha casa hoje, como o senhor também. Com exceção de que era uma convidada dos Malfoy, a família do noivo. E parecia tão ansiosa para localizar o senhor... isto é, o capitão Potter que concluí que haveria grande chance de o encontrarmos a bordo.
Harry se perguntou se a dama também estivera bebendo rum, considerando quanto sua explicação fora confusa. Observou-lhe os ombros inquietos, as mãos que torcia nervosamente. Céus, a mulher estava apavorada.
- Sr. Weasley - a voz de Lily soou como agradável música em meio à conversa tensa. - A srta. Granger teve a bondade de me trazer até aqui em sua carruagem quando soube que eu estava procurando meu filho.
O timbre melodioso de sua voz arrancou um sorriso encantado do velho. Lily Evans Potter tinha esse talento. Era como um rouxinol com sua voz, seu sotaque, sua entonação. Com o mais suave dos comentários, tinha o poder de hipnotizar seus ouvintes. Apenas Harry pôde distinguir a frieza por trás do tom aveludado de sua voz. Especialmente quando disse as palavras “meu filho”.
Ele estava em apuros. Em sérios apuros. E, como de costume, não se importava nem um pouco.
- E agora, graças a você - prosseguiu Lily, lançando um sorriso adorável, suplicante, a Arthur - eu o encontrei. Como galante cavalheiro que é, talvez queira ter a gentileza de nos levar de volta para casa, Sr. Weasley.
- Seria uma honra - respondeu ele. - Posso resolver meu assunto aqui num momento ou dois. - Virou-se para Harry. - Eu fui tirado da festa em que estava por meu secretário. Segundo me disse, parece que Rivera está sendo procurado pela polícia para interrogatório. - Colocando as mãos nas costas como um almirante, andou de lá para cá em evidente agitação. - A polícia anda no encalço de escravos fugitivos ultimamente.
Durante a ausência de Harry, a Lei de Escravos Fugitivos entrara em vigor, tornando ilegal acobertar ou esconder foragidos.
- Rivera não está envolvido nisso - apressou-se a dizer. - Ele possui mais artimanhas do que um navio tem ratos, mas nenhuma de suas atividades envolve ajudar fugitivos.
- Então, onde, afinal, ele está?
- Rivera não retomou conosco. Casou-se com uma mulher em Havana e ficou por lá. - Havia, naturalmente, muito mais naquela história, um duelo, um suborno, um pai furioso, um casamento forçado, mas Harry sabia que não deveria explicar demais o assunto, em especial nas atuais circunstâncias.
- Bem, ele é um criminoso e foi ótimo que não tenha voltado - declarou Arthur.
- Mas era um excelente intérprete - lembrou-o Harry, esforçando-se para afastar o torpor que o rum deixara em sua mente e pensar com clareza. - O melhor que tivemos.
- Então, agora tenho que responder pelos erros dele e, ainda por cima, não disponho de nenhum intérprete de espanhol para futuras jornadas. Isso não é nada bom, capitão.
A mulher chamada Hermione sussurrou algo com nervosismo.
- O que disse? - indagou Arthur.
- Eu falo espanhol. - A srta. Granger parecia perplexa em realmente ter reunido coragem para dizer uma palavra. Olhando para o chão de tábuas do convés, acrescentou - E também francês, italiano e português. Minha tia-avó me ensinou idiomas e, então, no internato de Monte Holyoke, eu continuei... - Ela se interrompeu, limpando a garganta. - Céus, eu de fato me deixo levar. Perdoem-me. O que quero dizer é que, se vocês tiverem documentos que precisem ser traduzidos, eu poderei ajudar.
- Obrigado pela oferta, minha querida. Mas eu jamais poderia abusar da boa vontade de uma dama. - Arthur tornou a virar-se para Harry, seu olhar mais uma vez faiscante. - Você, capitão, é um mandrião incorrigível e mais.
Harry empenhou-se ao máximo para suportar o insulto com o devido ar consternado. Mas não pôde evitar. Quando entreabriu os lábios, uma gargalhada escapou-lhe da garganta. Precisou de várias tentativas para parar de rir. Finalmente, encontrou um lenço no bolso e passou-o pelos olhos.
- Sr. Weasley, perdoe-me. Espero que entenda que esta pequena ocasião festiva é o único divertimento que tivemos em meses e que...
- Harry?
- Sim, senhor?
- Cale-se, sim?
- Senhor - disse Hermione - sei que isto é apenas minha opinião, mas, no inicio desta noite, falou do talento prodigioso do Sr. Potter para comandar um navio veloz e lucrativo.
Harry endireitou os ombros.
- Senhorita - disse em sua voz ainda um tanto pastosa - não sei quem diabos é você, mas vejo que sabe avaliar muito bem o caráter humano.
Hermione o observou com ar desconfiado e desviou o olhar. Se por medo ou repulsa, Harry não soube dizer.
Arthur pigarreou.
- Vou lhe conceder isso. Você fez uma viagem difícil em tempo recorde. Somou uma fortuna aos cofres da companhia. E, portanto, estou tentando convencer a mim mesmo a lhe dar uma segunda chance. Na terça-feira, às cinco horas, voltarei aqui para conversarmos sobre um novo plano de viagem. Até lá, espero que você já tenha outro intérprete a bordo, que a carga do Cisne já tenha sido toda descarregada, que os papéis do navio estejam em ordem e que uma nova carga já esteja pronta para a viagem de inverno ao Rio de Janeiro.
Harry não fazia idéia de como resolveria tudo aquilo em tão pouco tempo. Mas precisava daquela posição, precisava estar no comando de um navio numa outra viagem. Mais desesperadamente do que qualquer um pudesse imaginar. Desejou que a seriedade de sua causa tivesse lhe ocorrido antes que as sirigaitas do porto tivessem subido a bordo.
Durante sua vida inteira, fora conhecido por seu charme pessoal, boa aparência e uma falta de respeito generalizada pelas convenções. Aquelas virtudes vazias não eram mais o bastante. Agora, precisava buscar mais a fundo e ver se tinha dentro de si tudo o que era necessário para ser bem-sucedido. Portanto, meneou a cabeça com firmeza.
- Estará tudo pronto. Pode contar comigo.
- Não me desaponte, Harry.
- Não desapontarei, senhor.
Weasley lançou-lhe um olhar furtivo. Em seguida, ergueu ambos os braços de leve.
- Permitam-me, senhoras.
Harry desabou na cadeira do convés, permitindo-se um longo e profundo suspiro de alívio. Se conseguira sobreviver à evidente contrariedade de sua mãe e de seu empregador naquela noite, que dificuldade poderia encontrar no futuro próximo?
Era impossível, concluiu Hermione, no dia seguinte, sentada numa sala íntima da mansão de seus pais em Beacon Hill. Era impossível acreditar que ele pudesse querer sua companhia.
Soltou um forte espirro, levando o lenço ao nariz e amaldiçoando o persistente resfriado que a incomodava.
Olhou, então, pela centésima vez, para a mensagem escrita às pressas que lhe fora entregue naquela manhã. Era de Ronald Weasley.
Depois da humilhação sofrida na noite anterior, o convite alentou-a como um bálsamo. Subitamente, o mundo não parecia tão sombrio; as cores de outono que via através janela brilhavam com surpreendente vibração. Era um dia perfeito, com as folhas douradas sendo carregadas suavemente pela brisa. Inesperadas rosas que haviam desabrochado tardiamente destacavam-se no jardim dos fundos.
Tornou a espirrar. Era uma pena que a bela estação a tivesse deixado tão resfriada.
A mensagem de Ron a afetava do mesmo jeito que as cores de outono adornavam a paisagem. Ele tornava luminoso o seu mundo cinzento. A julgar pela breve conversa de ambos na noite anterior, não tinha razão para esperar algum interesse especial da parte dele. Mas era impossível não ter esperança. Na verdade, a esperança era tamanha que chegava a sufocar-lhe o peito. Talvez as coisas fossem diferentes daquela vez. Se lhe atendesse ao pedido, iria deixar Ron contente.
Tinha que acreditar naquilo. Tinha que acreditar que haveria um final para a sua solidão. Que algo... alguém poderia preencher o imenso vazio dentro de si. E que esse alguém era Ronald Weasley.
Soltou um suspiro, mantendo-se bastante ereta para que as barbatanas de baleia do espartilho não a machucassem. Fechando os olhos, permitiu-se um pequeno sorriso de triunfo. Ron queria que ela participasse do entretenimento daquela tarde. Uma partida de croqué no Clube Kimball Green.
Imaginou a cena: Ron e seus amigos usando uniformes brancos e reunidos no gramado para o jogo. Mal cabia em si de alegria ao pensar em fazer parte do animado grupo enquanto passassem uma tarde agradável sob o sol. Graças a Ron, Hermione logo faria parte de seu charmoso mundo.
Com carinho, o sorriso ainda brincando-lhe nos lábios, dobrou a folha de papel com a mensagem e guardou-a no lugar mais romântico em que pôde pensar. Sob o alto do espartilho.
O papel em contato com sua pele provocou-lhe coceira.
As desagradáveis lembranças do baile povoaram-lhe a mente. Viu-se fazendo papel de tola para ajudar Ron a devolver o anel a Luna. Atraindo a atenção de todos quando, desajeitada, derrubara o vaso de plantas no vestíbulo. Sendo flagrada enquanto coçava o peito com o abridor de cartas. Balbuciando uma desculpa à Sra. Malfoy, Deixando sua casa no meio da noite para ir à procura de Harry Potter no porto.
A lembrança do sulista de cabelos desalinhados, com uma mulher em trajes indecentes em seu colo e o hálito cheirando a rum a fez torcer os lábios inesperadamente com uma expressão desgostosa. Não importando quanto vivesse humilhando a si mesma, jamais desceram àquele nível.
Finalmente, conhecera alguém que era muito mais condenável do que ela.
O capitão nunca saberia que consolo lhe representava. Endireitou os ombros. Aquele dia seria diferente, pensou, contendo um novo espirro. Sem dúvida, teria a chance de se redimir do grande fiasco da noite anterior.
Primeiro, precisava escolher um vestido. Embora não tivesse absolutamente o menor senso de moda, sabia que não deveria usar preto numa partida de croqué. Erguendo a barra das saias, adiantou-se depressa até seus aposentos e abriu todas as portas de seu guarda-roupa.
Céus... Quando fora que havia conseguido reunir tal coleção de roupas em preto, marrom e cinza? Tinha vestidos pretos com renda da mesma cor. Vestidos pretos bordados de marrom. Vestidos pretos com enfeites cinzentos. Mas ali estava, quase escondido a um canto, um vestido de linho cru feito para alguma ocasião social já esquecida. Era perfeito para uma tarde de croqué.
Tocou a sineta para chamar Thankful, e a criada apareceu num instante, deixando o espanador de pó numa banqueta.
- Ora, senhorita, esse é diferente dos demais, não resta dúvida - comentou ela, apanhando o vestido de linho.
- Acha que é diferente demais de meu estilo de sempre?
- Sim, é. - Com a impecável eficiência de quem já servia a família Granger havia três décadas, Thankful ajudou Hermione a livrar-se do vestido preto do dia. Então, apanhou o outro da beirada da cama onde o deixara. - Vamos ver se conseguimos fazê-lo servir.
Hermione ergueu as mãos obedientemente, e a criada colocou-lhe o vestido por cima da cabeça, dizendo:
- Sabe, a sua irmã Susan sempre ficou tão adorável nesta cor clara. Era uma visão graciosa, sem dúvida... - Sem cerimônia, apoiou o joelho nas costas de Hermione e puxou os cordões trançados atrás do vestido com força. - ...descendo a escadaria para receber sabe-se lá quantos visitantes...
Hermione segurou-se na cabeceira da cama para se equilibrar, enquanto a criada lutava para ajustar-lhe o vestido ao corpo. Parou de prestar-lhe atenção à tagarelice. Já ouvira aquelas histórias inúmeras vezes. Os triunfos sociais de Lavander, o duelo que quase ocorrera entre dois dos pretendentes de Susan, o hábito de Thomas de sair com uma jovem diferente a cada noite, os relacionamentos de Peter com as melhores garotas de Boston...
Enquanto Thankful prosseguia e executava o penoso ritual de forçar o vestido um tanto apertado a conter suas formas, Hermione tentava não contrair o semblante. Sempre se perguntara porque as roupas de uma dama deviam machucar. Espartilhos sufocavam, sapatos apertavam, pentes ornamentais espetavam o delicado couro cabeludo, e a sociedade soltava exclamações de pura admiração diante daqueles verdadeiros instrumentos de tortura. Aquilo sempre a intrigara.
- Thankful, acho que os laços estão tão apertados quanto devem ficar.
- Só mais um puxão e estará terminado. Eu lhe digo, você deveria seguir o exemplo de sua mãe e irmãs, senhorita. Elas nunca se importam em sacrificar um pouco de conforto em nome da moda.
Hermione não argumentou. A criada, assim como todos no mundo, simplesmente não conseguia entender o que acontecera com a filha do meio do casal mais proeminente de Boston. Ela era o produto da mesma linhagem cuidadosa que havia dado a Beacon Hill suas encantadoras irmãs e elegantes irmãos. Ainda assim, Hermione era em nada como eles. Não chegava nem perto.
- Pronto - anunciou Thankful, dando um passo atrás e enxugando o suor da fronte. - Deseja algo mais, senhorita?
- Não, obrigada. - Hermione correu as mãos pela saia, já se sentindo melhor. Um vestido bonito era exatamente o que precisava para conquistar a atenção de Ron.
Apanhou um pequeno espelho de mão de uma mesa de canto. Segurando-o à sua frente, podia admirar o vestido em partes individuais. Mangas bufantes, corpete justo, saias amplas.
Deixado o espelho de lado, notou que Thankful esquecera seu espanador. Em vez de tocar a sineta para chamá-la outra vez, decidiu levá-lo. Adiantando-se na direção da escada de serviço dos fundos, só se deu conta quando já era quase tarde demais que Thankful e uma criada da cozinha, Tilly, estavam fofocando no andar de baixo.
-... achei que teria que chamar você para me ajudar a fazê-la caber no vestido - dizia Thankful, em tom de chacota.
- Ainda bem que você não me chamou - respondeu Tilly. - Eu não teria conseguido segurar o riso.
- E aquele vestido... Espere até vê-lo. Ela ficou ridícula, usando um traje que mais parece uma fantasia de camponesa, feita com a lona de uma vela de navio.
Hermione gelou no meio da escada. Geralmente, era bastante desajeitada e dada a retiradas barulhentas, mas não daquela vez. Daquela vez, mortificada, sentiu-se pequenina feita um camundongo, enquanto segurava o corrimão com força e subia silenciosamente a escada em caracol.
Não fez o menor ruído enquanto caminhou de volta pelo corredor, embora quisesse correr para escapar do riso maledicente que subia pela escada. Somente quando abriu a porta que dava para o quarto de Susan e parou diante do espelho alto para observar seu reflexo, emitiu um ruído. Um soluço.
O corte do vestido aumentava sua silhueta a proporções épicas. O linho claro a desprovia por completo de cor, exceto pelo forte rubor que lhe tingia as faces. Mechas de cabelo desprendiam-se do alto da cabeça, e os cachos em forma de salsicha de cada lado de seu rosto ficavam molhados e ainda mais pesados enquanto as lágrimas os encharcavam.
O que estivera pensando, para ter-se vestido daquela maneira? Quem iria querer criatura tal como a aberração que via no espelho?
Voltou para o próprio quarto e abriu as portas-janelas, saindo para o terraço em meio a um dia de outono tão radiante que sua beleza parecia zombar dela.
Olhou para baixo. O terraço era bastante alto. Se acontecesse de cair dali, quem iria sentir sua falta?
Inclinou-se ligeiramente junto ao gradil de ferro, uma peculiar escuridão dominando-a por dentro. Que tentadora era a idéia de que seu sofrimento poderia terminar tão depressa. De maneira tão permanente. E tão dramática, com a mensagem de Ronald Weasley guardada junto a seu coração.
Mas, ao final, afastou-se do gradil, tão temerosa de seus próprios impulsos quanto se sentia a respeito de tudo o mais que exigisse fibra e coragem.
Por quanto tempo, perguntou-se, desprezara a si mesma? Sabia que não chegara a seu infeliz estado de aversão por si mesma rapidamente. Tinham sido necessários todos os seus intermináveis anos de solteirona para alcançá-lo.
Pecadora, disse a si mesma. Era a verdade. Cada impulso obscuro e condenável vivia dentro de si... despeito, inveja, mesquinhez e anseio. Era culpada de tudo aquilo e muito mais.
Desde a época em que deixara a casa de sua falecida tia-avó, fora ensinada que uma jovem devia ser bonita e popular. O que só podia atribuir a um acidente de nascimento a havia colocado no meio de duas irmãs lindas e dois irmãos perfeitos. Como a vida devia parecer maravilhosa a eles, como devia ser empolgante acordar a cada dia e saber que tudo seria agradável, esplêndido.
Hermione sabia o que era a felicidade. Fora feliz no passado. Fora feliz com tia Elizabeth.
Fechou os olhos, relembrando os anos de sua tenra juventude. Quando ela estava com cinco anos de idade, a tia de Salem fora visitá-los. Firme e regrada como um general, ela não precisara de coisas bonitas, e aquilo incluíra sobrinhas-netas bonitas. Surpreendera Hermione quando se mostrara mais impressionada com seu jeito de conversar e interesses do que com o charme e beleza de seus irmãos. Ela a levara para Salem, e os Granger mal tinham notado.
As duas haviam passado anos felizes lá... Hermione tendo adquirido uma educação ainda mais completa do que a de um menino. Tia Elizabeth lhe ensinara que não havia nada de estranho em ser tão culta. E a aparência da sobrinha simplesmente não lhe importara nada. Assim como não importara à própria Hermione.
Até o dia em que a tia morrera, e ela se vira obrigada a retornar para a mansão dos pais em Beacon Hill.
Jamais iria se esquecer da reação de sua mãe quando ela surgira na porta da frente. Suas únicas palavras tinham sido:
- E aí está Hermione, de volta ao lar outra vez. - Mas fora a expressão em seu rosto que ficara gravada no coração de Hermione e moldara todos os dias, meses e intermináveis anos que tinham se seguido àquilo.
A inteligente e culta garota de quatorze anos não tivera idéia de como se transformar numa beldade da sociedade. Soubera grego, latim e matemática demais para ser popular e se importara em excesso com responsabilidade social para ser digna de confiança.
Assim, ali estava, morrendo aos poucos por dentro. Murchando feito uma planta sem água, feia e sem graça e sentindo-se mais desesperada do que nunca. Gostaria que os pais a deixassem em paz com seus livros e estudos, mas viviam empurrando-a para eventos sociais, onde se sentia como um peixe fora d’água. E atirando-a no meio de herdeiros de companhias de comércio marítimo e alunos de Harvard haviam inadvertidamente despertado-lhe um sonho... o sonho personificado em Ronald Weasley. Era absurdo, sem sombra de dúvida, ansiar por homem tão perfeito, mas não podia evitar. Vivia pensando que, caso se empenhasse o bastante, poderia algum dia passar a significar algo para ele.
Esticando os braços, alcançou o laço nas costas do vestido. Puxando-o com força, ouviu o som do tecido se rasgando, mas não se importou. Jamais tornaria a usar aquele vestido abominável novamente.
Quando o retirou, lembrou-se da mensagem de Ron, que guardara sob o espartilho.
- Oh, tia - sussurrou para o quarto vazio. - O que farei? O que pode me salvar agora?
Queria queimar aquela mensagem. Devia queimá-la. Mas ao final, fez algo muito, muito melhor. Fez exatamente o que sua tia teria feito: apelou para seus recursos, tais como eram.
Vestindo um robe, adiantou-se até a escrivaninha junto à janela, muniu-se de papel e caneta-tinteiro e elaborou uma mensagem.
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