Patinho Feio



PARTE I


Patinho Feio


- Que filhos bonitos você tem - disse a velha pata com o trapo em volta da perna. - São todos bonitos, com a exceção daquele ali. Não saiu muito bem. É uma pena que você não possa chocá-lo outra vez.

E o pobre patinho, que fora o último a sair do ovo e parecia tão feio, foi bicado, empurrado de lá para cá e transformado em motivo de chacota pelos patos e pelas galinhas também.

- Ele é grande demais - declararam todos.

O peru, que se considerava um imperador porque nascera com esporões, estufou o peito feito as velas de um navio ao vento e se alteou acima dele, gorgolejando até ficar de cara vermelha. O pobre patinho não sabia onde ousava ficar parado, ou para onde ousava caminhar. Estava triste demais por ser tão desesperadoramente feio e porque era objeto de riso de todo o curral.

Quando amanheceu, os patos selvagens aproximaram-se numa revoada para dar uma espiada no patinho.

- Que tipo de criatura é você? - perguntaram, enquanto o patinho se virava em todas as direções, tentando saudar a todos de seu melhor ângulo.

- Você é terrivelmente feio - disseram eles - mas isso não significa nada para nós, desde que você não se case com ninguém da nossa família.



Hans Christian Andersen
Patinho Feio (1843)



CAPÍTULO 1


A verdadeira ofensa, como ela percebeu no final,
era o fato de ter uma opinião própria.

Henry James,
O Retrato de uma Dama


Boston, outubro de 1851



Ser invisível tinha suas vantagens. Hermione Jane Granger sabia que ninguém iria notá-la, nem mesmo se o reluzente chão do salão de baile se abrisse de repente e a tragasse. Aquilo não aconteceria, por certo. Desaparecer no meio de um salão apinhado seria algo corajoso, sem dúvida, e Hermione não tinha um pingo de coragem em seu corpo.

Já sua mente era uma questão totalmente diferente. Sucumbiu ao anseio de desaparecer, transportando-se em pensamentos para a terra das coisas impossíveis... um vasto continente no mundo dela. Coisas impossíveis... um sorriso que não fosse forçado, um elogio que não contivesse uma farpa, um sonho que não fosse povoado pelo cruel desapontamento.

Ela se recostou o melhor que pôde junto a uma grande janela, refugiando-se na penumbra projetada pelo arco que a encimava. Sentiu a ameaça de um espirro e apanhou seu lenço depressa, contendo-o. Mas ainda assim pôde ouvir os falatórios. As velhas mexeriqueiras! Será que não podiam falar sobre alguma outra pessoa?

- Ela é a ovelha negra da família, sem dúvida. E de várias maneiras, se me permite dizer - sussurrou uma voz escandalizada. - Céus, é tão diferente do restante dos Granger. Tão morena e pouco favorecida, enquanto os irmãos e irmãs são todos louros como anjos.

- Nem mesmo a fortuna do pai foi o bastante para lhe arranjar um marido - disse uma voz em resposta.

- Será preciso mais do que dinheiro...

Hermione permitiu-se soltar o espirro que estivera segurando. Então, seu esconderijo descoberto, deixou a quietude da janela. As maledicentes sobressaltadas... duas das amigas da mãe dela... tentaram disfarçar, agitando os leques vigorosamente e limpando a garganta.

Ajeitando seus óculos, Hermione fingiu não ter ouvido os comentários maldosos. Não deviam lhe causar tanta dor. Aquela altura, já deveria estar acostumada a tal humilhação. Mas, que os céus a ajudassem, não estava. Especialmente não naquela noite, numa festa para celebrar o noivado de sua irmã mais nova. Festejar a boa sorte de Susan só servia para realçar a condição desfavorável dela.

Para piorar, o espartilho a incomodava. Uma desagradável coceira subia por entre seus seios, onde as barbatanas de baleia a apertavam implacavelmente. Era preciso uma grande dose de controle para manter as mãos dobradas com recato à sua frente, enquanto esperava em verdadeira agonia para que algum cavalheiro relutante, de sorriso forçado, fosse tirá-la para dançar.

E eles raramente o faziam. Nenhum rapaz queria como parceira de dança uma solteirona sem atrativos, que era tímida demais para manter uma conversação normal... e também entediada demais com os assuntos banais da sociedade para se empenhar muito naquilo.

Daquela maneira, permaneceu junto a uma parede, não ganhando mais atenção do que os lacaios de libré que serviam os convidados. Os sons de risos, conversas e copos tilintando eram como um charmoso pano de fundo para a música tocada pelo quarteto. Sem ser notada, olhou ao longo do vestíbulo central em direção ao escritório de seu pai.

A tentação em escapulir por ali foi grande demais.

No escritório escuro, talvez pudesse se recompor e deixar as convenções de lado, metendo a mão sob o espartilho para aplacar a coceira que a torturava.

Caminhou até a entrada do salão de baile e parou sob o grande arco de madeira entalhada. Estava quase lá. Tinha apenas que ultrapassar o vestíbulo e seguir pelo corredor. Ninguém sentiria sua falta.

Decidida a escapulir, contornou um grupo de estudantes de Harvard, amigos de seus irmãos. Passou depressa por alguns colegas de seu pai, do Clube Somerset, e tinha quase conseguido ultrapassar um grupo de debutantes sorridentes. Adiantando-se pelo vestíbulo cheio de gente, teve quase que se espremer de encontro a um espelho de parede e um gracioso vaso de folhagens a um canto.

Bastava um passo e, depois, outro. Invisível. Era como se fosse invisível; podia voar como um pássaro, deslizar feito uma serpente. Imaginou-se graciosa, os pés leves, não causando mais agitação do que uma brisa enquanto aparecia no nada, mergulhava na liberdade...

Absorta em uma de suas fantasias, esqueceu-se do laço atrás do vestido preto, que se projetava feito a cauda de um pato, adornado por fitas esvoaçantes.

Ouvindo um ruído estranho, virou-se a tempo de ver uma das fitas compridas enroscando-se no suporte de ferro do vaso. O tempo pareceu ficar lento, e ela viu toda a cena como se fosse através de uma cortina de água. Inclinou-se, a fim de apanhar a fita, mas com um segundo de atraso. Ficou esticada, fazendo a grande planta virar.

O vaso de alabastro espatifou-se no chão de mármore.

O movimento brusco e a explosão do vaso espatifando-se no chão fez com que as pessoas à volta se imobilizassem no lugar exatamente por três segundos. Então, todos os olhares viraram-se para Hermione. Os alunos de Harvard. As amigas de sua mãe. Homens de negócios e damas da sociedade. Acuada pelos olhares de estupefação, ela permaneceu imóvel, assustada, feito um prisioneiro diante de um pelotão de fuzilamento.

- Oh, Mione. - Como de costume, sua irmã mais velha, Lavander, assumiu o controle da situação. - Que catástrofe! E bem no meio da festa de Susan. Venha, deixe-me ajudá-la a se desenroscar dai. - Um instante depois, uma criada apareceu com pá e vassoura. Logo em seguida, o quarteto começou a tocar novamente.

O incidente durou apenas alguns momentos, mas, para Hermione, arrastou-se por uma eternidade tão longa quanto sua condição de solteira. Naquele meio tempo, ficou ciente dos mesmos murmúrios de reprovação e dos risinhos divertidos que haviam povoado toda a sua dolorosa adolescência. Céus, tinha que sair dali!

Mas como uma pessoa escapava de sua própria vida?

- Obrigada, Lavander - disse apropriadamente. - Como fui desajeitada.

A irmã não negou, mas com gestos rápidos libertou-lhe a fita do laço e abriu-lhe um sorriso.

- Nenhum mal foi feito. Será preciso mais do que um vaso de planta derrubado para estragar a noite. Está tudo bem.

Ela falava a sério, percebeu Hermione sem rancor. Lavander, a mais velha dos irmãos Granger, era tão loira e delicada quanto a Vênus de Botticelli. Casara-se com o mais rico proprietário de moinhos em Frammgham, mudara-se para um palacete de tijolos e mármore nas colinas verdejantes e ano sim, ano não, na primavera, como uma valiosa reprodutora puro-sangue, dava à luz um bebê branco e rosado perfeito.

Hermione obrigou-se a retribuir o sorriso da irmã. Que dupla peculiar deviam fazer, pensou. Lavander, que tinha a linda aparência de uma boneca de porcelana e ela, o patinho feio da família.

Seu momento de vexame encerrado, Hermione, enfim, escapou para o escritório do pai. Era o escritório clássico de um proeminente comerciante de Boston, decorado com mobília elegantemente entalhada, livros com luxuosas encadernações em couro e um generoso suprimento de bebidas e tabaco. Inalando-os cheiros familiares com alívio, soltou um longo suspiro e fechou os olhos, recostando-se numa parede.

- Céus, menina, você parece um tanto agitada - disse uma voz familiar. - Alguma coisa aborreceu você?

Ela abriu os olhos e notou um cavalheiro sentado numa poltrona de couro, uma caixa de rapé numa mão e um copo de ponche na outra.

- Sr. Weasley! - disse, surpresa. - Como vai?

Ela imaginou poder ouvir as juntas de Arthur Weasley estalando com reumatismo enquanto ele se levantava e lhe fazia uma breve mesura, mas seu sorriso, emoldurado por suíças grisalhas, irradiava calor.

- Estou bem, srta. Granger. - O cavalheiro tornou a afundar pesadamente na poltrona. - Muito bem, na verdade. E você?

Ainda estou perdidamente apaixonada pelo seu filho.

Horrorizada com o pensamento, Hermione tratou de conter as palavras. Uma gafe por hora devia ser o bastante, até mesmo para alguém como ela.

- Acho que cometi um assassinato - Fez um gesto na direção da porta aberta, indicando as folhagens carregadas do vestíbulo em meio aos cacos de alabastro. - Estou bem, obrigada, embora o clima do outono tenha me causado um resfriado. O seu navio já chegou? - Hermione sabia que a maior embarcação do Sr. Weasley era aguardada e que estava ansioso a respeito.

Ele sorveu um pouco de ponche antes de responder.

- Chegou, sim. Ancorou no porto nesta noite, e a carga será descarregada amanhã. Bateu recordes, meu navio. - Baixou a voz para um sussurro de cumplicidade ao acrescentar - O Cisne de Prata obteve um lucro de noventa mil dólares em cento e noventa dias.

Hermione arregalou os olhos, realmente impressionada, assuntos de negócios interessavam-na.

- Puxa, é uma façanha e tanto.

- De fato. Tenho que agradecer ao novo capitão.

Hermione gostava de Arthur Weasley porque ele a tratava mais como uma colega de negócios do que como uma jovem ou não tão jovem, dama. Gostava dele também porque era o pai de Ronald Weasley, o homem mais perfeito que já nascera. E nenhuma daquelas coisas admitiria nem sob tortura.

- Um novo capitão? - perguntou, polida.

- É um intrépido sulista. Um cavalheiro da Virgínia, chamado Harry Potter. Possuía credenciais de navegação tão impressionantes que o contratei no ato. Pareceu-me um homem de fibra.

Ela sorriu, imaginando um velho capitão de navio. Apenas um homem calmo e conservador como Arthur chamaria um empregado seu de intrépido.

Ele tirou um lenço do bolso e esfregou a caixa de rapé até que reluzisse. Era pintada com o emblema náutico dos Weasley: um cisne prateado sobre um fundo azul.

- Ele ainda está a bordo do Cisne nesta noite, acertando o pagamento dos marujos. Espero receber um novo plano de navegação dele antes do final da semana. A próxima viagem será para o Rio de Janeiro.

- Meus parabéns - disse-lhe Hermione, com um sorriso. - Teve um êxito maravilhoso.

Arthur Weasley ficou radiante.

- Tive, não foi? - Ergueu seu copo num brinde. - A você, Hermione. Obrigado por fazer companhia a um velho maçante. E ao meu veloz e novo capitão, Sr. Potter.

Mal teve tempo de sorver um gole quando um lacaio entrou e lhe entregou discretamente um bilhete. Arthur desculpou-se e deixou o escritório, resmungando sobre um negócio que não podia funcionar sem ele.

Hermione permaneceu ali, desfrutando sua solidão e refletindo sobre as notícias do Sr.Weasley. Harry Potter. Um intrépido cavalheiro da Virgínia. Ela não era nem um pouco intrépida, embora às vezes quisesse ser.

Usou o momento de privacidade para ajeitar o espartilho, desejando conhecer um nome feio ou dois para descrever aquele verdadeiro instrumento de tortura feito de barbatanas de baleia. Seguindo um impulso, apanhou da mesa um abridor de cartas em formato de adaga. Incapaz de resistir, meteu-o pelo decote do vestido para aliviar a coceira na pele.

Enquanto amenizava o desconforto, aconteceu de olhar para o espelho oval pendurado atrás da mesa do pai.

Espiando por sobre as grossas lentes dos óculos, viu-se exatamente como era. Os seus cabelos eram da cor de uma poça de lama. Seus olhos eram desprovidos do límpido e intenso mel tão valorizado por seus pais e evidente em seus irmãos. Não tinha nada do encanto e da beleza que seus irmãos e irmãs possuíam em tanta abundância. Em vez daquilo, tinha uma expressão taciturna no rosto, e o nariz estava vermelho por causa do resfriado.

Não era à toa que os bons cidadãos de Boston a chamavam de ovelha negra da família. Era morena enquanto os demais eram loiros, pálida enquanto os irmãos tinham a alvura de pele que estava tão em voga, alta e de ossatura larga, enquanto eles eram de constituição delicada e elegante.

O implacável espelho refletia uma criatura descontente nas roupas negras de uma matrona, coçando-se sem a menor fineza por causa de um espartilho impiedoso. Por insistência da mãe, usava os cabelos no estilo grego, que era considerado o auge da moda, um penteado em que parte dos cabelos se prendiam num coque discreto e a outra parte mantinha-se solta, com várias mechas finas cascateando graciosamente em torno do rosto e pescoço. O problema era que seus cabelos longos eram pesados e rebeldes, e as mechas que deviam cair supostamente em cachos delicados pareciam-se mais com grossas salsichas. Aos seus vinte e três anos de idade, ela era a própria imagem da juventude murchando como um figo esquecido numa prateleira. O pensamento deixou-a tão zangada e desgostosa consigo mesma que quis fazer algo desesperador.

Mas o quê? O quê? Não conseguia nem sequer pensar num meio criativo de acabar com o próprio sofrimento?

Bastava, disse a si mesma, acabando de se coçar vigorosamente com o abridor de cartas. Enquanto fazia aquilo, a porta do escritório se escancarou com o vento, e uma nova onda de convidados surgiu no vestíbulo, conversando animadamente.

Tarde demais deu-se conta de que eles podiam ver o interior do escritório. Gelou, o abridor de cartas ainda metido no decote do vestido. Risos altos e masculinos ecoaram do vestíbulo.

- Pelos céus, Mione - disse-lhe o irmão, Thomas, parado em meio a um grupo de amigos de Harvard. - Essa é a sua imitação de Julieta?

Mortificada demais para falar, ela conseguiu retirar o abridor de cartas do decote. Deixou-o cair com um baque surdo sobre o tapete. Tomados por um acesso de riso coletivo, Thomas e os amigos seguiram para o salão de baile.

Hermione olhou fixamente para o abridor de cartas em formato de adaga que jazia no chão. Queria morrer. Queria realmente morrer. Mas, então, ela o viu... a única pessoa capaz de tirá-la de sua profunda melancolia.

Ronald Weasley.

Com passadas longas e elegantes, ele seguiu o grupo de Thomas até o salão de baile, passando pela ampla entrada em arco e adiantando-se até uma das mesas para se servir de ponche. Imediatamente, várias damas em vestidos de tons claros conseguiram se aproximar dele com toda a naturalidade. Rezando para que sua mais recente gafe não tivesse sido notada por Ron, Hermione voltou ao salão de baile.

Ronald Weasley. O nome era como música ecoando por sua mente. A imagem dele vivia em seu coração. O sorriso irresistível povoava-lhe os sonhos. Ron se movia com elegância nata, os cabelos ruivos brilhando, suas roupas sob medida irradiando estilo e bom gosto. Quando o observava, Hermione via tudo o que queria personificado num extraordinário conjunto de charme, inteligência e sofisticação. Ele não era apenas bonito de se olhar, seu carisma ia mais além. As pessoas queriam estar perto de Ron. Era como se suas vidas se tornassem mais alegres, interessantes e coloridas pelo simples privilégio de conhecerem-no. Sua beleza masculina era ideal, do tipo que pintores e escultores ansiavam por captar em suas obras. Dono de um charme irresistível. Era capaz de cativar seus ouvintes com comentários inteligentes, numa voz máscula e aveludada, e com seu riso agradável.

Hermione ajeitou os óculos e observou-o, querendo-o com tanto fervor que seu coração chegava a ficar apertado. Se ao menos.., pensou. Se ao menos Ron pudesse olhar para dentro de sua alma e ver tudo o que tinha a lhe oferecer...

Mas era difícil para um homem olhar para dentro da alma de uma mulher quando deparava primeiro com uma fachada tão pouco atraente. Nas poucas vezes em que ele lhe falara, pedira-lhe para transmitir uma mensagem a Susan, cuja mão em casamento perdera por pouco para Draco Malfoy.

Ainda assim, ela desejava que as coisas pudessem ser diferentes, que ao menos uma vez pudesse ser bonita e popular... para saber como era tal sensação. Queria dançar uma vez com Ron, sentir-lhe os braços em torno de si, conhecer a intimidade de um sorriso particular.

Ele e os amigos se alternaram entre acessos divertidos de riso e sussurros dramáticos de cumplicidade. Então, um a um, cada rapaz fez par com uma jovem para a dança seguinte. Era uma música nova, de ritmo irresistível o bastante para despertar o interesse até do mais indiferente membro da sociedade.

Incrivelmente, Ron emergiu do grupo sem nenhuma parceira de dança. Deixou de lado o copo de cristal com ponche e começou a caminhar na direção de Hermione. Numa espécie de transe, ela o observou atravessando o salão. Esqueceu-se até de respirar enquanto o via parando à sua frente e fazendo-lhe uma galante mesura.

- Diga-me, Hermione - começou em sua voz aveludada - seria pedir-lhe muito que considerasse fazer-me um enorme favor?

Ela olhou por sobre o ombro e não viu nada exceto a cabeça de alce empalhada que o pai levara como troféu de caça do Maine. Com o rosto afogueado, tomou a virar-se para Ron.

- Eu? - perguntou, quase balbuciando.

Com um sorriso paciente, ele meneou a cabeça em confirmação. A surpresa era tanta que Hermione sentia as pernas amolecendo.

- Está falando comigo?

- A não ser que esse alce na parede atenda pelo nome de Hermione, creio que estou. - Ele usou o tom sardônico que caracterizava os homens do Clube de Harvard. - Vamos. Não me deixe em suspense por mais tempo. Não me faça implorar.

Seria possível que ele quisesse dançar com ela? Tinha que ser aquilo. Ronald Weasley queria tirá-la para dançar!

- Eu... eu gostaria muito - conseguiu dizer. Estranhamente, era como se testemunhasse aquela conversa como uma observadora que estivesse fora de seu corpo. A solteirona sem graça e o estonteante Ron. Se o milagre não estivesse acontecendo bem diante de seus olhos, jamais teria acreditado.

Fazendo uma mesura, ele ofereceu-lhe a mão. Hermione aceitou-a, alegre pelas luvas de cetim que a mãe insistira para que usasse, daquele maneira Ron não poderia saber como sua mão estava gelada e úmida.

Como ele era uns poucos centímetros mais baixo, Hermione encolheu os ombros de leve, um tanto ofegante com a surpresa e o deleite. Então, aquela era a sensação, pensou, deixando que a melodia entrasse por suas veias como um vinho refinado. Aquela era a sensação de ter um sonho se tornando realidade!

A atenção dele a fazia sentir-se mais leve que o ar, mais graciosa do que um cisne num lago plácido. Finalmente, conseguira vencer-lhe a indiferença e ele iria conduzi-la numa dança.

Mas, em vez de conduzi-la até o centro do salão, onde os vários casais dançavam, Ron levou-a até a janela em arco que lhe havia servido de refúgio no inicio do baile. Céus, ele queria lhe falar em particular? O que estaria querendo? Deliciada, Hermione quase riu alto.

Uma cortina de franjas douradas quase os ocultava. Uma onda de calor percorrendo-a, ela mal podia conter a expectativa enquanto ajeitava os óculos para observá-lo.

- Sim, Ron? O que é que deseja?

Ele começou a procurar algo no bolso da casaca.

- Isto vai tomar apenas um minuto do seu tempo. Deixe-me ver, eu o guardei aqui em algum lugar.

Um relógio numa corrente de ouro saiu do bolso dele. Além do relógio, segurava um pequeno anel com uma pedra de topázio. Céus, iria pedi-la em casamento? Pela primeira vez na vida, ela entendeu a necessidade que uma dama tinha de um leque, pois o calor que a percorria aumentava a cada instante.

- Eu gostaria que você pegasse isto. - Ele colocou-lhe o anel na palma da mão.

- Oh, Ron. - O coração de Hermione transbordava de felicidade. - Não sei o que dizer.

- Diga que você o fará. - O sorriso de Ron pareceu vago, os olhos inquietos enquanto afastava a cortina e observava a multidão.

O dedo dela era grosso demais para anel tão delicado.

- Claro que farei, mas...

- Ela está ali, usando aquele vestido lilás. - Tocando-lhe o ombro, Ron inclinou-se para a frente e apontou.

- Luna Lovegood. Ela está dançando com Neville. Peguei-lhe o anel para fazer troca e está tão zangada comigo que não me deixa nem sequer chegar perto para devolvê-lo. Por favor, diga-lhe que sinto muito.

Hermione não escutou o restante das palavras devido ao súbito zumbido em seus ouvidos. Através de um véu de humilhação, viu Luna, linda em seu vestido lilás, jogando a cabeça para trás graciosamente enquanto ria de algum comentário espirituoso de seu elegante parceiro de dança.

- Você quer que eu devolva este anel a srta. Lovegood? - conseguiu dizer.

- Exatamente. - Pousando-lhe a mão nas costas, ele a fez deixar o grande nicho da janela.

- Ron?

- Sim?

Hermione ansiava por atirar-lhe o anel no rosto excessivamente bonito. Em vez daquilo, fez algo pior. Algo muito pior.

- Como quiser. – disse, fitando-o nos olhos e tentando esconder sua frustração.

- Eu sabia que poderia contar com você, Mione. - Ron fez um gesto na direção da multidão. - Veja, você vai ter que se apressar. A música terminou.

Odiando a si mesma, Hermione adiantou-se pelo salão para atender-lhe o pedido. Devolveu o anel à legítima dona. Luna abriu-lhe um de seus sorrisos encantadores e disse:

- Obrigada, Mione. Pensei que você fosse roubar Ron de mim. - Ela e as amigas que agora a cercavam riram, cada riso divertido parecendo o golpe de um punhal. - Ora, vejam só você de preto - prosseguiu a jovem, tocando-lhe a fita na cintura do vestido. - Qual a razão para estar de luto?

Pela morte das boas maneiras, pensou Hermione, mas estava constrangida demais para falar. Aborrecida pelas farpas femininas, tentou afastar-se rapidamente dali. Mas ao virar-se, acabou esbarrando numa mulher ruiva com sua bela saia armada e leque de marfim e renda. A dama abriu-lhe um sorriso hesitante, como se estivesse prestes a cumprimentá-la.

Hermione fez uma mesura polida, esperando que o forte rubor em suas faces diminuísse. Apenas o espartilho a mantinha ereta enquanto passava pela mulher. Não fosse pela rígida peça de baixo, teria se encolhido em pura vergonha. Precisava sair dali e depressa.

Para seu horror, ouviu alguém chamando-a.

- Hermione, querida - disse a Sra. Narcisa Malfoy, mãe do noivo de Susan, estava radiante com seu triunfo social. - Não estamos encantadoras nesta noite?

- Algumas de nós, sim - respondeu Hermione num quase murmúrio.

- Como você deve estar feliz em ver sua irmã mais nova ficando noiva. Ora, logo restarão apenas você e seus estimados pais, sozinhos nesta casa. Não será aconchegante?

- Será aconchegante, sem dúvida. E que imensa bondade de sua parte apontar o fato.

- Venha - sugeriu a Sra. Malfoy - Devemos fazer um brinde a esse noivado.

Não, pensou Hermione, numa súplica aos céus, não poderia enfrentar a todos agora. Nunca conseguira esconder seus sentimentos. Sua família saberia de imediato que estava aborrecida. Depois a questionariam à sua insuportável maneira bem-intencionada, e ela desmoronaria diante de todos.

- Hermione, você não me ouviu? Tem que se reunir ao grupo da família. E para onde foram seus irmãos? - A Sra. Malfoy sacudiu a mão no ar num gesto de impaciência.

Alguém segurou o braço de Hermione. Sobressaltada, soltou um pequeno grito e recuou um passo para se ver diante da mulher ruiva a quem praticamente atropelara enquanto estivera tentando escapar do salão de baile.

Cachos perfeitos. Um rosto maduro e bonito. Olhos cheios de simpatia. Bastou fitá-los por um instante e ela teve a confirmação de sua suspeita. A mulher testemunhara a sua humilhação.

- Posso ajudá-la? - perguntou-lhe, hesitante.

- Na verdade, sim. - A mulher virou-se para a Sra. Malfoy. - Estou sentindo uma ligeira indisposição, Narcisa. Hermione teve a gentileza de me oferecer o refúgio de seu quarto para um pequeno descanso.

A Sra. Malfoy estreitou o olhar.

- Mas Lily, nós íamos brindar ao noivado.

- Tenho certeza de que o conforto de nossos convidados deve vir antes de um brinde - murmurou Hermione. Num misto de alívio e gratidão, ela conduziu a mulher pelas escadarias até seu quarto amplo e arejado e fechou a porta atrás de ambas. - Obrigada - disse, com um suspiro.

A mulher dispensou-lhe o agradecimento, enquanto Hermione acendia as velas de um candelabro no criado mudo.

- Meu nome é Lílian Evans Potter - apresentou-se.

Hermione notou-lhe o sotaque sulista na voz.

- Como vai? Veio de fora da cidade para uma visita?

- Na verdade, sim. Sou da Virgínia, embora tenha retornado recentemente depois de ter passado três anos na Europa. Os seus pais tiveram a gentileza de me convidar para a festa de sua família.

- Espero que esteja se divertindo. - Acordes de música e aplausos ecoaram do salão de baile. Susan e seu bonito noivo deviam estar sendo o centro das atenções naquele momento, rodeados por Lavander, Thomas, Peter e os pais, mal cabendo em si de orgulho. Hermione conteve a vontade de tapar os ouvidos.

- Na verdade, não estou. Estive com a esperança de trocar uma palavra com o Sr. Arthur Weasley

- Oh, puxa! Lamento, mas ele recebeu uma mensagem e teve que deixar a festa para resolver um assunto de negócios.

Lily retirou as luvas e apanhou do toucador um frasco de cristal com água de rosas.

- Posso?

- Claro.

Ela aplicou gotas do perfume nos pulsos.

- Suponho que terei que esperar, então. Mas já estou acostumada. - Baixou a cabeça, a luz das velas destacando-lhe o perfil delicado, o rosto preocupado pela dúvida. - Na verdade, estou procurando Harry Potter. Ao que parece, ele partiu numa embarcação de Weasley.

O problema de Hermione com Ron pareceu insignificante de repente. Ali estava uma mulher que viajara através do Atlântico para ver o marido... e não o estava encontrando.

- Céus, Sra. Potter, lamento tanto - disse, atravessando o quarto para tomar as mãos da dama nas suas. - Eu... Como foi mesmo que disse que era o nome dele?

- Harry. Harry James Potter.

- Que maravilhosa coincidência - exclamou Hermione, satisfeita em poder subitamente ser útil em algo. - Não precisa se preocupar em esperar para falar com o Sr. Weasley. Posso levá-la diretamente até Harry Potter. Nesta noite, se desejar.

- O quê?

- Eu sei exatamente onde ele está, Sra. Potter.


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