Capítulo único.
Remus Lupin estava sentado na beirada da cama, entrelaçando os dedos nos finos fios grisalhos de sua cabeça, suspirando. A luz do luar minguante caía sobre seus olhos através da janela, lhe trazendo uma péssima sensação. Acordara no meio da noite depois de um pesadelo; não conseguia mais voltar a dormir. Deu mais um suspiro e levantou-se, afastando de si a luz odiada.
Mas a sombra... ah, a sombra lhe trazia flashes de lembranças ruins, impossíveis de se afastar com um balanço de cabeça. Não podia se ver seguro em canto algum do quarto. O ar dos Black de Grimmauld Place lhe dava dor de cabeça.
Resolveu descer. Fechou a porta atrás de si e saiu.
As escadas faziam barulho a cada degrau, mas isso não o ajudava a desviar dos pensamentos. Nos seus ouvidos, ainda ecoava a risada insana de Bellatrix Lestrange, os gritos desesperados de Harry em seus braços... SIRIUS! SIRIUS!...
Chegou à cozinha. Abriu o armário, pegou um Whiskey Flamejante e bebeu do gargalo. Olhou em volta; não, não era ali que queria estar. Aquele lugar lhe lembrava discussões da Ordem, assuntos tristes e preocupados; não, o que queria era relembrar um passado bom, memorável do amigo. Algo que o fizesse ir, e não chorar.
Voltou a subir o lance de escadas – e ainda ouvia as palavras de Harry... Ela matou Sirius! Ela o matou – eu vou matá-la!...
Não sentia o mesmo inconformismo, embora o quisesse. Não conseguia. Passara muitos anos da vida aceitando-a, aceitando a desgraça, o infortúnio, a morte...
Correu a porta da biblioteca, velha e apagada. Conjurou algumas velas e pousou-as em pontos estratégicos de iluminação, próximas a uma grande poltrona verde de aveludada. Antes de se sentar, porém, passou os olhos pela estante e pegou um livro em particular: um álbum de fotografias.
Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts – formatura da milésima octa centésima septuagésima turma, 1977.
Sua capa era de camurça preta e opaca; um grande brasão da escola reluzia prateado em sua frente. Lupin passou a mão por ele como se aquilo pudesse lhe retomar o passado – mas nada mais poderia. Deixou-se afundar no estofado da cadeira e foi até a primeira página.
Lá estava ele, acenando para si mesmo, seus cabelos com mais cor, o rosto com o mesmo pálido de cansaço. Seus dezessete anos brilhavam em seu sorriso jovem com a companhia de seus melhores amigos, agora já tão distantes no tempo. James e Lily tinham as mesmas feições de que ainda podia se lembrar, sempre alegres e sorridentes. Sirius abraçava-o por trás, fazendo graça, sempre rindo. Peter ria de fininho, escondendo-se da foto, sempre tímido.
Ah, eles lhe faziam falta, muita falta... e agora ele era o último. O último dos Marotos.
Sentiu uma lágrima gelada lhe cortando o rosto.
Ouviu três batidas na porta.
— Com licença — as mechas cor-de-rosa de Tonks eram facilmente vistas pela fresta da porta —, eu passei na cozinha para pegar um copo d’água e não pude deixar de notar uma luz acesa por aqui...
Ela sorriu amarelo. Ele retribuiu.
— Sinta-se a vontade para entrar, Nymphadora.
— Por favor, me chame de Tonks — ela puxou uma cadeira antiga para perto do professor.
— Ah, desculpe, Tonks.
— Não foi nad —
Ela caiu da cadeira.
Eles riram de leve.
— Você está bem?
— Estou acostumada com esse tipo de coisa — a bruxa respondeu, coçando a cabeça — E você, o que está fazendo? Estudando a essa hora da noite? Ainda não perdeu o hábito? — ela zombou.
— Na verdade, eu continuo o mesmo de 18 anos atrás... — ele apontou para a própria imagem da foto — O mesmo Moony... o último...
Ele abaixou a cabeça. Ela pôs a mão em seu queixo e delicadamente a ergueu de volta.
— Hey, eu sei o que você está sentindo. Eu também sinto muita falta de Sirius. Ele era um dos únicos decentes da família... me desculpe.
— Pelo quê..?
— Se eu tivesse sido mais forte, se eu tivesse derrotado Bellatrix Lestrange, Sirius nunca teria...
Ela não conseguia falar. Ele não conseguia ouvir.
— A culpa não é sua, Tonks. Eu também estava lá do lado, e não pude protegê-lo. Acho que a única coisa que temos a fazer é aceitar...
Lupin ainda podia sentir o coração palpitando rápido, ouvir sua própria voz de cemitério naquele momento... Não há nada que você possa fazer, Harry... nada... ele se foi.
— Você pode ser o último dos Marotos, Remus, mas nunca estará sozinho. Nunca.
Talvez...
Não se atreveu a olhá-la nos olhos. Virou outra página do álbum, agora para encontrar grifinórios, sonserinos, lufa-lufas e corvinais todos juntos – surpreendentemente juntos – em um dia feliz, em um longínquo dia feliz...
— Nesse dia, James, Sirius, Peter e eu soltamos fogos de artifício pelo castelo todo — ele riu —, e enchemos a salinha do Filch com bombas de bost*... haha, ele jurou que, se pudesse, nos prenderia em Hogwarts só mais um dia para nos expulsar... Normalmente eu não participava dessas brincadeiras deles, mas essa foi o modo que arranjamos para dizer “adeus”. Até Lily deu risada, no fim...
A imagem jovem de James Potter exclamou um “Pena que eu não pude ver isso tudo!” e eles deram risada.
—Ah, me desculpe — ele virou para Tonks, agora sério —, fico contando essas histórias cheio de nostalgia, mas você não esteve lá pra ver...
— Mas é gostoso ouvir você contar! — ela se explicou — É gostoso ver como você fica feliz...
Remus viu os cabelos de Tonks ficando vermelhos, ao mesmo tempo que suas bochechas enrubesciam.
— Nessa época James e Lily já estavam juntos...
— É, eles começaram a namorar no sétimo ano.
— Sirius está sozinho na foto.
— Ah, Tonks, ele nunca conseguiu levar um relacionamento a sério — ele sorriu.
— E você? Tem — quero dizer, existia alguma menina que você... gostava..? Existe..?
Ele escondeu o sorriso e voltar a mirar a fotografia da Grifinória.
Sentia uma incrível dor no peito ao rever aqueles rostos, aqueles acenos tão reais... aquele sentimento especial.
— Havia sim — ele confirmou com a voz rouca — Mas...
Ele engasgou.
— Mas..?
— Eu sou uma aberração.
— Remus, como pode —?!
— Eu sou um lobisomem, Tonks. Sou muito perigoso para expor qualquer pessoa que eu goste... meu destino é esse — suspirou —. Ser solitário.
— Remus, ninguém está condenado a ser triste, não diga isso!
— Mas é a verdade. O mundo te julga pelo o que você é, ele se importa —
— Eu não me importo! — ela o interrompeu, falando com a voz aguda — Eu não dou a mínima se você é ou deixa de ser um lobisomem! E gosto de você pelo o que você realmente é, um homem simpático, inteligente, cavalheiro, bonito... gosto de quem você é sempre, e não do que você deixa de ser uma vez por mês...
As figuras da foto por um momento pararam de se mexer e ficaram ouvindo, estáticas, as palavras firmes da bruxa. Lupin olhou para si mesmo e se viu levantando as sobrancelhas.
— E digo mais — ela continuou, embaraçada —... eu gosto muito de você.
Não teve coragem de levantar o olhar. Teve de fechar o álbum quando viu a si mesmo apontando para Tonks e gritando “Alôô! Ela acaba de se declarar, faça alguma coisa!”.
E fez.
— O-obrigada, Tonks — agradeceu, tímido —, fico muito feliz por saber isso... e-eu também... tenho uma grande consideração por você...
E quando ele levantou a cabeça, encontrou-se encarando seus olhos amendoados, seus narizes cada vez mais próximos, a respiração cada vez mis ofegante, os lábios —
— Não — ele segurou-a pelos dois ombros e a afastou —, não posso.
— Por que..? — sua voz era um sussurro.
— Você merece alguém muito melhor do que eu. Alguém que, no mínimo, seja humano todos os trinta dias do mês...
— Mas eu quero você..!
— Tonks... ah, Tonks... eu sou velho demais pra você.
— Dez anos já não fazem mais diferença na nossa idade —
— As transformações tomam conta do meu corpo. Fisicamente, eu sou muito mais velho, não vou durar muito —
— Não diga uma coisa dessas! — ela exclamou, brava — Eu vou cuidar de você...
— Eu não tenho dinheiro algum — ele continuou.
— E desde quando isso é problema?
— Lógico que é. Na minha vida toda, o emprego mais decente que pude arranjar foi o de professor, e durante um único ano — falava desanimado — Não tenho onde cair morto.
— Eu trabalho por nós dois — ela segurou uma de suas mãos — Desde que estejamos tudo, nada mais importa... as coisas vão se ajeitar...
Desviou o olhar novamente. Seria medo..?
— Olhe pra mim — ela pediu —, por favor.
Ele olhou. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas, os cabelos mais rosados do que nunca.
— Eu não me importo se você é um lobisomem. Não me importo com o que pensam de você. Nada disso é culpa sua... nada isso é relevante. A única coisa importante é a sua felicidade... e a sua, é também minha.
Lupin sentiu a pressão em sua mão aumentar. Seu coração começou a pulsar mais rápido, sua mente começou a girar e – desviou o olhar.
— Não.
Não era medo o que sentia.
— Eu não te mereço.
Aquelas palavras lhe cortaram afiadas como facas, como no passado. Repeti-las doía...
Seu coração jamais permitiria qualquer outra pessoa.
— Boa noite, Nymphadora.
Ele se levantou e saiu, deixando para trás uma Tonks de cabelos cinzas e opacos, sem vida.
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