Estrela Cadente



A temperatura não se definia. A faixa verde de grama à frente do castelo da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts estava deserta, tendo por único movimento presente a leve brisa do verão inglês, moderado e discreto. O céu já se encontrava escuro, um gigantesco tapete estrelado cobrindo-lhe a extensão misteriosa.
Era o sétimo ano de Harry, Ron e Hermione em Hogwarts. Depois de um certo tempo de aula, Dumbledore e os professores da escola anunciaram, durante o jantar, que os alunos de sexto e sétimo ano fariam um acampamento trouxa, para aprender algumas coisas a respeito do povo não-mágico e descontrair um pouco antes de entrar no ritmo de receber as últimas lições necessárias para se seguir uma profissão.
A notícia agradou a grande maioria dos alunos. Duas noites na mata lidando com situações desconhecidas sem o auxílio da varinha poderia parecer assustador, mas todos concordavam que seria uma aventura e tanto. Quase todos, na verdade.

Uma garota de cabelos castanhos rebeldes e armados se encontrava andando de um lado para outro do quarto feminino do sétimo ano, atirando as primeiras roupas que enxergava na frente dentro de uma pequena mochila, histérica.
Hermione não acreditava. Era inaceitável para sua personalidade responsável que os professores de Hogwarts, juntamente com o próprio Dumbledore, quisessem desviar três dias e duas noites de aulas, justo no último e mais importante ano letivo, para acampar. E não se esforçava para disfarçar sua indignação: enquanto arrumava suas coisas, o cenho franzido e frases sibiladas a intervalos curtos de tempo eram a prova de que não gostara nada da idéia.
Se eles soubessem o quanto é chato pra quem é trouxa e conhece tudo isso, não haveriam de ter essa idéia ridícula. Levou sua mochila com violência até o lado esquerdo da porta, ignorando os olhares incrédulos de Lilá e Parvati, em seguida saindo com as mãos vazias, optando por descer ao salão comunal da Grifinória sem olhar para trás.

***

Ron e Harry, que haviam terminado de arrumar suas coisas cerca de quinze minutos após o anúncio no jantar, estavam sentados em poltronas confortáveis ao pé da lareira. Quando Hermione apareceu de repente e se jogou no sofá verde escuro ao seu lado, os garotos discutiam animadamente quadribol, falando de um clássico Sonserina X Grifinória que rendeu histórias nos anos passados. Enquanto Harry fazia a imitação animada de uma feição desdenhosa, obviamente inspirada em Draco Malfoy, Ron segurava um pomo de ouro imaginário na mão direita, enquanto chacoalhava os braços em sinal de vitória e se segurava para não rir do teatro do amigo.
Hermione estava alheia a tudo. Mirando as chamas crepitantes e fortes da lareira, comuns no início da noite quando ainda estavam longe de se apagar, seus pensamentos viajam por caminhos diversos, seus olhos vidrados, sem piscar. Foi só quando Ron e Harry se cansaram de jogar quadribol imaginário e ficaram em silêncio por uns poucos segundos que Hermione, embora relutante, desviou os olhos do ponto fixo em que estavam concentrados e virou-se para os amigos. Ron se manifestou:
- Conseguiu conter as lágrimas por perder três dias inteirinhos de aula?
Harry deu um sorrisinho e ergueu os olhos: conhecia aquela situação. Há seis anos que convivia com aquelas duas personalidades peculiares ao seu lado, tempo suficiente para que conhecesse também a forma como costumavam agir. Se houvesse espaço para implicâncias no que dizia respeito a conversas entre Ronald Weasley e Hermione Granger, lá estariam elas. Se não o fizessem, não seriam Ron e Hermione.
Mas as coisas haviam mudado, em parte. É claro que vez ou outra os dois agrediam verbalmente um ao outro, só para não perder o costume, mas a questão é que o último ano letivo, com todos os seus acontecimentos inesperados, havia gerado um efeito diferente no relacionamento dos dois amigos. O visível ciúme de Hermione ao ver Ron com Lilá, a forma como o garoto parecia fazer tudo aquilo apenas para chamar a atenção da amiga, toda aquela guerra entre o bem e o mal, a aventura de Harry e Dumbledore, a triste perda do mestre no final... Tudo, enfim, parecia ter contribuído para que ambos percebessem de uma vez por todas o quanto era preciso que se mantivessem unidos naquele momento. Não disseram isso a ninguém, mas tanto Ron quanto Hermione, por detrás de todo aquele orgulho infantil que tomava conta dos dois, faziam bem um ao outro. A prova de que aquilo estava, na medida do possível, sendo mantido, foi o fato de Hermione ter abandonado o estresse costumeiro com o ruivo. Apenas respondeu, num tom irônico, mas nada grosseiro nem ofendido:
- Alguém tem que se preocupar com as responsabilidades nesse lugar, não é? Só espero que saibam que, assim que voltarmos, vocês me acompanharão em reforços diários de estudo na biblioteca.
- A gente... Mas por quê? – quis saber Harry.
Ron se contentou em lançar um olhar debochado na direção da garota e comentar, displicente:
- Não pode estar falando sério... – e, ao ver a expressão nada divertida de Hermione – Pode?
- Não só posso como estou. Não quero que vocês se dêem mal no último ano por aqui e também não quero que isso aconteça comigo. Portanto, independente de acampamentos idiotas que a escola venha a inventar, vamos reforçar os estudos esse ano, sim. É para bem de vocês.
- Ouviu isso, Harry? Nosso bem!
Harry permaneceu calado. Não tinha a mesma coragem que Ron demonstrava ter para enfrentar Hermione daquela maneira como sempre fazia. Na verdade, se existia alguém audacioso o suficiente para fazê-lo, esse alguém só podia ser Ron e mais ninguém. Ele continuou:
- Você definitivamente precisa repensar seus conceitos de bem-estar, Hermione.
- E você definitivamente precisa repensar suas prioridades, Ronald.
- Prioridades? Não fui eu quem disse há alguns anos que ser expulso de Hogwarts era pior que a morte.
- Eu... O quê?
- “... podem nos matar! Ou, o que é pior, nos expulsar!”
Harry teve de rir. Aquilo tinha acontecido lá pelo segundo ano em Hogwarts, no auge das implicâncias dos dois. Lembrava-se bem de Hermione falando aquilo e Ron em seguida fazendo comentários indignados.
- Ótimo... Você quer mesmo falar de passado, Sr. “ELE-TEM-TRÊS-CABEÇAS!” ? – disse Hermione, num tom de covardia afeminada.
- Eu nunca disse isso. Não desse jeito!
Harry resolveu entrar no jogo:
- Acho que estou me lembrando desse dia, Hermione. Mas tenho a impressão de que havia mais desespero nessas palavras!
Sem cúmplices, Ron só fez agarrar a almofada macia que estava dando apoio às suas costas e jogá-la sem dó na cabeça de Harry, que juntou a mesma do chão e retornou o golpe. Hermione ria da briguinha infantil dos dois amigos, quietinha, quando foi atingida por um almofadão vermelho lançado por Ron. Almofadas coloridas voavam de um lado a outro do salão comunal, o qual agora só contava com a presença dos três, já que o restante dos alunos decidira dormir cedo por conta do acampamento do dia seguinte. E os três continuaram a guerra, como se tivessem repentinamente voltado alguns anos no tempo, feito crianças inocentes que desconheciam qualquer dor. Ali não havia Voldemort, Comensais da Morte, uma fênix cantando tristemente. Não havia nada além de Harry, Ron e Hermione, os mesmos três amigos que se conheceram a tantos anos naquele trem, quando não tinham a menor idéia do futuro que lhes aguardava. Era assim que tinha de ser: o destino colocou um na vida do outro de forma irreversível, garantindo que isso jamais mudaria. Não importava o que fosse acontecer dali pra frente. Aqueles três jovens sorrindo em frente à lareira em meio a brincadeiras, estavam unidos por um laço indestrutível. O tempo e a convivência haviam feito deles pessoas que se conheciam a fundo, e isso nem a força das trevas mudaria. E seria sempre assim: Harry, Ron e Hermione. Sempre juntos, dos momentos mais difíceis aos mais prazerosos que vivenciassem, como sempre foi, como tinha de ser e, apesar de os próprios ainda desconhecerem esse fato, como a vida se encarregaria de fazer continuar sendo até o fim.

***

O dia seguinte amanheceu nublado e incerto. O sol arriscava aparecer de relance vez ou outra, se escondendo logo depois atrás das nuvens passageiras que cobriam o céu. Um dia suave, sem frios ou calores intensos demais.
Era hora de acordar. O relógio interno de Hermione a despertou, como sempre cerca de sete horas da manhã. A garota não queria se levantar. Não para acampar, é claro. Ótimo. Agora se levante e aja como se o dia estivesse incrível.
Não conseguiu. Assim que tocou os pés no chão e se firmou neles, sentiu uma dor de cabeça tão aguda que, por um instante, imaginou que não poderia continuar em pé. Só impressão. Deveria ser o sono, afinal: se tinha dormido três horas naquela noite, era muito.
Se vestiu às pressas – seu ritmo de sempre -, descendo as escadas numa correria desenfreada sem motivo algum. Sentia sono, fome e um certo calor, embora isso se devesse apenas ao fato de ter feito tudo rápido demais. Tomar um bom café da manhã parecia o melhor a fazer.

O Salão Principal estava dividido entre dois grupos com humores opostos: o dos alunos de sexto e sétimo ano, que se mostravam eufóricos com a nova experiência que teriam dali a menos de uma hora, e os estudantes mais novos que, por não terem nada além de aulas depois de comer, pareciam estar sem ânimo para atividade alguma. Ao se sentar em frente a Harry e Ron na mesa da Grifinória, a única vontade que Hermione tinha no momento – já havia decidido por ignorar o sono e o calor havia passado – era a de se juntar aos calouros em seus lamentos e comer por lá mesmo. Ron e Harry pareceram perceber seu desgosto, mas aparentemente optaram por não entrar no assunto.
- Como passaram a noite? – perguntou aos dois.
Ambos, entendendo que seria inútil tentar animar a amiga, apenas trocaram um olhar conformado e responderam, Harry primeiro:
- Tudo bem.
- É. Fora as dores musculares por conta da guerra de ontem.
O comentário de Ron se seguiu a um sorriso cativante de canto de boca que, por ser involuntário, era agradável e natural. Hermione sorriu de volta. Aquela expressão era tão... Tão Ron. A garota suspirou.
- Acho que nunca dormi tão pouco e tão mal em toda a minha vida.
O comentário saiu sem querer. Ela não esperava ter de explicar aos dois que pensamentos a mantiveram acordada durante quase toda a noite. Não dizendo a verdade. Ron ergueu as sobrancelhas, numa expressão confusa. Harry encarou a amiga:
- Por que exatamente?
Ótimo. Teria de improvisar.
- Eu... Bem, acho que fiquei acesa depois da guerra de almofadas. Muita adrenalina no corpo, sabe?
Ron sorriu de novo:
- Acho que entendo. Você mais levou almofadada na cara do que atirou em alguém.
- Nunquinha! Aliás, se a noite de ontem serviu para alguma coisa, Ron, foi para eu descobrir que você é fácil de se derrubar... Ao menos quando estou por perto – e deu um sorriso malicioso de brincadeira ao terminar a frase... O qual foi visto por ninguém mais ninguém menos que Lilá Brown, que passava distraída pela mesa da Grifinória exatamente naquele instante. Foi o suficiente: a garota arregalou os olhos, obviamente tendo entendido errado o comentário de Hermione. Ron, que estava de costas para o lado pelo qual Lilá passara, só notou a presença da garota de olhos lacrimejados quando se virou para verificar o motivo da expressão confusa de Hermione, que olhava um ponto à frente.
Hermione quase não pôde segurar o sorriso que tinha vontade de dar. Ela não sabia o motivo, não sabia a força que a impelia a tal atitude, mas o fato é que sentia uma imensa vontade de mostrar os dentes e olhar exultante para Lilá Brown que, por sua vez, ainda estava parada, variando a direção de seu olhar, ora mirado em Ron, ora em Hermione. A felicidade inexplicável de Hermione se completou com o comentário que o ruivo à sua frente fez nos segundos seguintes:
- Procurando alguma coisa?
Aquela frieza na voz. Como era bom ouvir a voz de Ron daquele jeito se dirigindo à outra garota. Ele nunca sentiu nada por ela. Nada. Estava parada, encarando Lilá. A loura, saindo do transe, respondeu com uma falsa frieza que não convenceu a ninguém que a tivesse ouvido:
- Nada que lhe interesse.
E saiu visivelmente abatida, arrastando os pés, com a cabeça baixa.
Hermione acompanhava todo o trajeto daquela que tanto odiava em seu íntimo. Encarou Lilá Brown até o agradável momento em que a garota sentou-se no canto oposto da mesa e se agarrou ao pescoço de Parvati Patil, cochichando-lhe algo entre lágrimas. Depois que a morena espichou a cabeça para olhar na direção dela mesma e de Ron, Hermione percebeu que a sensação que a acometia não era normal, voltando à realidade.
Bebendo um gole do suco de abóbora no qual ainda não havia tocado, olhou disfarçadamente para o ruivo à sua frente. Não encontrou em seu rosto nada provando que ele estivesse abatido, triste ou arrependido. Na verdade, percebeu que Ron já conversava alegremente com Harry sobre alguma notícia qualquer do Profeta Diário, parecendo sequer lembrar que havia falado com Lilá instantes antes. Ele não se importa. Ela não significa nada pra ele. Seu coração falhou uma batida quando ela lembrou que não havia explicação plausível para que estivesse feliz com o que acabara de acontecer. Passou a policiar seus pensamentos, fazendo com que vagassem numa direção menos perigosa. Ou ao menos era o que ela tentaria fazer.

Tendo o café da manhã finalmente terminado, os alunos que iriam acampar se dirigiram aos seus respectivos Salões Comunais para pegar a mochila e voltar a descer, enquanto os mais novos saíram resmungando pelo castelo nos últimos minutos livres até as aulas do dia começarem.

Em seu quarto, Ron agarrou a mochila – na verdade teve antes de encontrá-la, já que tinha misteriosamente ido parar em baixo da cama – e saiu à procura de uma lanterna trouxa que seu pai lhe mandara assim que soube do acampamento. Encontrou o objeto dentro da primeira das três gavetas em seu criado-mudo, ao lado da cama de dossel em que dormia. Ao retirá-la dali, Ron percebeu que em baixo, sobre a superfície de madeira, havia uma foto.
Ele, Harry e Hermione, no casamento de Gui e Fleur, os três exibindo sorrisos sinceros, abraçados. Observou os olhos brilhantes de Hermione por um instante, que piscavam por conta da magia, passando em seguida para o vestido verde delicado que cobria seu corpo. O corpo de Hermione Granger. Sua boca, seus olhos... ela. Aquele rosto que tão pouco havia mudado, mostrando-se, na foto, quase igual ao visto em seu primeiro ano em Hogwarts naquele trem. E aquele corpo completamente diferente. O tempo passou e Hermione havia crescido; Ron tinha noção disso como nunca. Talvez ela ainda fosse aquela sabe-tudo irritante de vez em quando, que obrigava os amigos a fazer o dever de casa antes de qualquer outra coisa e os repreendia quando estavam aprontando algo. Mas havia algo na Hermione atual que diferia daquela menininha inteligente e chata que Ron conhecera no início de tudo. Era a mesma Hermione inteligente e certinha de sempre, com a diferença de que tinha se tornado uma verdadeira mulher diante de seus olhos. Ele não estava preparado para concluir aquilo.
Ron ergueu o rosto ligeiramente, encarando o espelho pendurado na parede, sobre o criado-mudo. Fitou a si mesmo com atenção rara, como nunca antes havia feito. Ele também. Ron Weasley também havia crescido, seu corpo estava mudado e seu rosto já não se encontrava marcado pela inocência de um garoto de onze anos que nada sabia da vida. Percebeu que não importava se estava preparado ou não para encarar tudo aquilo, mas era um fato que ele, em seus dezessete anos de imaturidade, tinha se tornado um homem... Ao menos por fora. E será que não era chegada a hora de crescer por completo?
Ron nunca tivera um bom motivo para amadurecer. Ser uma criança inconseqüente era fácil, prático e indolor, e ele não pretendia mudar seu jeito de ver a vida apenas porquê era chegada a hora. Ele precisava de uma motivação, algo que o fizesse sentir vontade de crescer o mais rápido possível. E no momento em que desceu os olhos para a foto em suas mãos ele percebeu o quanto fora cego. O motivo sempre estivera ali, afinal: na ponta de seu nariz há mais de seis ano. O motivo era ela, sua melhor amiga. O poder de fazê-lo sentir vontade de se tornar um homem por dentro cabia apenas à Hermione Granger.




Desceu as escadas lentamente, ignorando o fato de estar atrasado. Na altura em que saiu pelo buraco do retrato, com a mochila nas costas e a foto sendo guardada no bolso da calça, deu de cara com um Harry eufórico quase entrando.
- Já estamos embarcando! O trem já vai sair!
Os dois se puseram a correr em direção ao tumulto de gente se dispersando, embarcando aos poucos. Ao adentrar a cabine que Harry lhe indicou, Ron se largou, suado, no banco à frente do de Hermione e Gina. As duas o encararam. Em tom de reprovação, Hermione começou:
- Irresponsável, como sempre. Aposto que se Harry não tivesse te chamado...
- Desculpe.
- Você teria... O quê?
- Foi mal, me distraí.
Hermione o encarou. Fitou Ron, séria, por alguns segundos. Desculpe. Ron Weasley pedindo desculpas à Hermione Granger? Se justificando para ela? Não podia ser.
Recuperando-se da surpresa, Hermione disse num tom baixo:
- Tudo bem – e com a voz mais alta e forte, em seguida – Mas da próxima vez se apresse! Você está sempre atrasado!
Ron se limitou a sorrir de leve e encarar a paisagem na janela. As coisas teriam de ser diferentes a partir daquele dia, e ele sabia que a mudança teria de partir das suas atitudes. Continuaria tudo por esse caminho, no que dependesse dele. Tudo melhor.

***

A viagem seguiu tranqüila até o destino. Já era fim de tarde quando o trem freou, naquele lugar que ninguém sabia onde ficava.
O fato é que quando desceram do trem, a expressão de todos os alunos presentes era de verdadeiro deslumbramento. A paisagem era paradisíaca, com flores cobrindo toda a extensão do gramado muito verde, dando a impressão de que era tudo perfeito demais para ser real. O sol, se pondo ao longe, iluminava de leve o vôo suave dos pássaros coloridos, que pousavam sobre as árvores procurando seus ninhos.
Hermione chegou a esquecer o aborrecimento por estar ali, participando de um acampamento idiota, quando viu tudo aquilo. Não pensou em mais nada, na verdade. Só queria ficar parada, observando a linda paisagem, esquecendo de qualquer problema que pudesse lhe incomodar. Sorriu, por fim, percebendo que todos ao seu redor faziam o mesmo.
Hagrid, guiando os alunos alguns metros à frente e mirando o espaço com olhar clínico, parou em frente à uma árvore e sentenciou:
- É aqui que montaremos as barracas. Será uma para cada dois alunos, não podendo, é claro, misturarem-se os meninos e as meninas. Dumbledore decidiu que não poderemos usar magia durante esses dias, e bem, quem sou eu pra contestar? As peças para a montagem estão logo ali – concluiu, apontando para um canto onde alguns elfos surgidos do nada largavam alguns sacos visivelmente pesados.
***

Acender a fogueira trouxa, com todos aqueles gravetos e o trabalho manual que a tarefa exigia, não foi uma atividade muito fácil. Mas Harry, Gina, Ron e Hermione sabiam que não era todo dia que se podia ver o desdenhoso Draco Malfoy enfiar a mão em um formigueiro e gritar feito um bebê desmamado, o que tornou tudo muito mais divertido.
A dificuldade em não usar magia ficava visível por conta do violão enfeitiçado por um dos professores, tocando sozinho ao lado de Neville, que parecia tomado pela música, cantarolando de olhos fechados.
Harry estava sentado ao lado de Gina, com o braço entrelaçando sua cintura. Todos sabiam que o romance dos dois havia reacendido durante as férias, mas ninguém comentava nada sobre isso. Harry ainda temia pela segurança de Gina, mas tinha decidido proteger a garota pessoalmente. Uma decisão sábia na opinião de Ron que, tendo Hermione ao seu lado, mirava a fogueira sem prestar muita atenção no que acontecia ao seu redor. Uma noite agradável.

Nada de muito especial parecia estar acontecendo. Estavam todos sentados em círculo no gramado, contando piadas de trouxas e tomando suco de abóbora à luz da lua, que brilhava, majestosa, como se estivesse participando de tudo. Mas a questão é que muitas horas já haviam se passado, e o cansaço já começava a bater na maioria dos jovens ali sentados, que já bocejavam e sentiam os olhos pesando. Era hora de entrar nas barracas – algo muito estranho para eles, na verdade – e dormir, para que o dia seguinte fosse cheio de energia.
Hermione não sentia sono. Não queria entrar na barraca montada com muito esforço para ela e Gina dormirem, não queria descansar, não queria ter tempo e oportunidade para pensar. Independente disso, porém, foi obrigada a se levantar junto com todos os outros, observando Harry e Ron adentrarem sua barraca depois de um aceno de boa noite.
Gina olhou para a amiga com visível preocupação. É certo que ninguém esperava que uma pessoa como Hermione pudesse estar animada com aquela situação, mas desde o início do dia que terminava a garota parecia abatida ao extremo, como se alguma coisa dentro dela estivesse errada.
- Tudo certo?
- Sim. É... Gina, vai entrando. Vou ficar mais um pouco por aqui.
- Mas Hermione, já está todo mundo...
- Tudo bem, eu não demoro. Vai indo, está bem?
- Eu... Ok, então.
Depois de ver o último fio de cabelo ruivo sumir por entre a abertura da barraca azul marinho logo à frente, Hermione viu a fogueira ser reduzida à pó em poucos segundos, concluindo que isso se devia à ponta cor de rosa de um guarda-chuva enorme, visível por poucos segundos na abertura de uma outra barraca. Estava agora iluminada apenas pela luz da lua.
Deitou-se no chão, sem pensar. Precisava daquele contato com a natureza, daquela luz incrível tocando sua face como raras vezes em sua vida havia deixado que acontecesse. Alguma coisa estava acontecendo com ela.
Era uma sensação estranha. Ela mirava o céu, em toda a sua imensidão escura e estrelada, como se não pudesse desgrudar os olhos daquilo.
Hermione sabia que sua vida e suas conquistas não lhe deixavam margem alguma para reclamações. Tinha boas notas, uma família que a apoiava e amava e, o que sempre julgou o mais importante, tinha os amigos que qualquer pessoa em todo o mundo daria tudo para ter. Mas era ela quem os tinha ao seu lado. Eles eram seus garotos, há quase sete anos. Sete anos constituindo um trio imbatível, desses que andam juntos o tempo todo e cuja fidelidade é demonstrada através de ações concretas, e não de palavras soltas, jogadas da boca pra fora. Então por que é que, olhando as estrelas naquela noite quente, Hermione se sentia tão incompleta? Que sentimento estranho era aquele que a acometia de surpresa, no calar de todas as noites desde que se tornara bruxa e tivera seu primeiro dia em Hogwarts?
Seu pensamento vagava por todas as direções, como se cada uma das milhares de estrelas distantes lá em cima fosse uma distração diferente dentro de sua mente. Voltou a pensar em Harry e Ron. É claro que nenhum deles poderia ser o problema; afinal, eram os amigos perfeitos, apesar de seus defeitos, os quais ela aceitara desde o início pelo simples fato de ter se apaixonado pelos dois como eles eram. Sim, Hermione era loucamente apaixonada por dois garotos diferentes. E se lhe perguntassem, naquele exato momento, qual dos dois tinha mais importância no seu íntimo, ela não saberia responder. Era um amor quase que igual. Só quase. Havia uma diferença, ela sempre tivera consciência disso. Só não compreendia ainda qual era.
Harry. Quantas vezes em Hogwarts Hermione tinha ouvido as pessoas comentarem, umas discretas e outras fazendo questão que a garota ouvisse, que havia algo além entre ela e um de seus melhores amigos. O menino-que-sobreviveu, O Eleito, o garoto da cicatriz na testa, Harry Potter. Somente o Harry, para ela. E nada daquilo jamais foi verdade. É certo que ele era um garoto admirável, uma pessoa com fibra moral, como disse certa vez o grande Dumbledore. Mas não havia nada em Harry que o levasse ao coração de Hermione de uma outra maneira que não fosse como um grande e maravilhoso amigo. Era como seu irmão, não era? Hermione era loucamente apaixonada por Harry Potter. Como uma mãe por seu filho sempre o é.
Hermione fechou os olhos por um instante. Já sentia seu corpo dando sinais de que estava cansada, suas pálpebras pesando aos poucos. Ao abri-los novamente, um ponto brilhoso de cauda ligeira se precipitava céu abaixo por entre as estrelas comuns. Uma estrela cadente, pensou. Faça um pedido, Hermione.
O que aconteceu em seguida foi rápido: Hermione fechou os olhos, pediu a primeira coisa que lhe veio à mente – a única que ocupava seu coração – e, num literal piscar de olhos, seus pensamentos mudaram de rumo. Eles agora vestiam uma peruca ruiva que ela bem conhecia. Ronald Weasley, residente permanente no coração de Hermione Granger há quase sete anos, mais exatamente no lugar mais aconchegante que existia por lá. Tão aconchegante que, por pura comodidade, ela preferia deixá-lo quietinho, sem se incomodar, fingindo não saber que existia alguém mais habitando seu ser. Mas estrelas cadentes, todo tipo delas, sempre acabavam aparecendo para lembrar-lhe de que não era tão fácil quanto ela esperava que fosse. Como sabia, Hermione era apaixonada por dois garotos, Harry Potter e Ronald Weasley, seus melhores amigos em todo o mundo. Mas ainda havia a tal diferença, fosse qual fosse o significado daquilo tudo.

***

Ron não conseguia dormir. Estava com sono e realmente exausto, mas a vontade de ficar na cama não o acometera naquela noite, o que era surpreendente. Harry dormia pesado ao seu lado, causando-lhe a maior inveja possível. Não tinha jeito: ele teria de sair da barraca, dar uma volta, adormecer os pensamentos para que assim, talvez, ele pudesse dormir.
Saiu devagar, tentando não fazer barulho. Não queria que ninguém o acompanhasse em seus pensamentos secretos daquela noite.
Deu dois passos e parou. Deitada na grama, as mãos delicadas pousadas sobre a barriga e os cabelos castanhos se confundindo com o verde vivo do gramado, estava a última pessoa que Ron esperava encontrar fora da cama no horário de dormir: Hermione.
Por um segundo, pensou em voltar à barraca sem se manifestar, fingindo nunca ter visto a garota ali deitada, mas não conseguiu se impedir de andar devagar até ela e deitar-se ao seu lado. Era o novo Ron se instalando aos poucos no seu corpo, como ele já previra que aconteceria.

Ao sentir a presença de alguém ao seu lado, Hermione despertou rapidamente de seus devaneios e se apoiou nos cotovelos, encarando a figura recém chegada. Uma figura ruiva que já estava com ela mesmo antes daquele momento, embora de uma maneira diferente. Era como se o protagonista de seus pensamentos naquela noite tivesse se materializado à sua frente num passe de mágicas, realizando um íntimo desejo. A estrela cadente, afinal.
- Ah, é você.
Hermione voltou a deitar, relaxando. Não sabia o motivo exato de ter se sentido a vontade com o amigo ao seu lado, mas estava realmente melhor agora. Ron parecia meio sem jeito. Tentou falar:
- Não imaginava que a corretíssima Hermione Granger fizesse fugas secretas no calar das noites de verão.
Ficou satisfeito em ter comentado algo do tipo no instante em que vislumbrou o sorriso agradável da garota. Da garota? Não, não. Ron sabia que ela já era mais do que isso. Quem sorria ali deitada era uma forte e corajosa mulher.
- E eu nunca pensei que o medroso Ronald Weasley encararia uma noite escura e assustadora sozinho, assim.
Bingo! As palavras certas, de novo. E na hora certa.
- As pessoas mudam, certo?
- Até você?
Ron pensou por poucos segundos. Até eu, Hermione. Até eu.
- Quem sabe.
Hermione virou-se de lado, encarando o garoto, apoiando o cotovelo na grama e descansando a cabeça sobre a mão. Havia tanto a ser dito, a ser explicado, a ser posto para fora. Tanta coisa lhe passava pela cabeça quando encarava Ron. E ela sabia: ele também tinha mais a dizer do que suas palavras demonstravam. Os olhos azuis do garoto que ela amava eram a tal diferença: eles sempre deixaram claro tudo o que ele sentia. Ela é que tinha medo de enxergar.
Ron fez o mesmo, encarando Hermione. Era a hora que ele tanto esperou. Hora de dizer tudo o que tinha ensaiado nas profundezas do seu coração durante todos aqueles anos, de mostrar à garota dos seus sonhos que ela significava mais do que uma grande e linda amizade para ele. Não via jeito de esperar.
- Hermione, eu... Tem algumas coisas que eu queria dizer.
Vacilou por uns segundos. Se sentindo encorajado pelo olhar confuso que lhe foi devolvido em seguida, abriu e fechou a boca várias vezes sem emitir qualquer som. Se perdeu nos olhos dela. Um turbilhão de imagens distintas lhe passava pela cabeça, como se toda sua vida se resumisse em Hermione e ele. Hermione e Ron, seis anos de amizade, de confundir sentimentos, de sentir medo e de implicar um com o outro. Quase sete anos de um amor tão puro que sequer poderia ser explicado em palavras sem que houvesse o risco de faltar alguma coisa. Um amor de criança que foi crescendo e amadurecendo com o tempo, num ritmo que nenhum dos dois corações pulsantes ali presentes conseguia acompanhar.
E Ron não soube o que dizer. Os ensaios, as palavas decoradas e todo sentimento que precisava ser traduzido naquele instante... Nada saía de sua boca entreaberta.
Hermione encarou o ruivo com confusão ainda maior.
- Ron, eu...
Não pôde terminar. Antes que pudesse pensar em qualquer coisa para dizer ou fazer na tentativa de quebrar o silêncio, algo inesperado – e ao mesmo tempo esperado por anos – finalmente aconteceu: Ron a beijou.
A lua parecia sorrir. Durante todo aquele tempo o céu, as estrelas, o sol e todos as maravilhas da natureza presenciaram o desenvolvimento daquele que tinha tudo para ser o romance mais lindo que o mundo jamais viu.
Nenhum dos dois saberia explicar a intensidade daquele momento e descrevê-lo seria limitar a quantidade imensa de emoções diferentes e novas que surgiram durante aquele beijo. Era um toque doce que gerava calafrios. Como se suas vidas dependessem disso, ambos permaneceram por um longo tempo assim, os rostos colados, entre sorrisos e beijos apaixonados. O desejo de anos inteiros foi sendo saciado em uma única noite, ao mesmo tempo em que novos anseios pareciam chegar extremamente rápido.
Deitada no peito de Ron, Hermione respondia o sorriso da lua brilhante lá em cima com felicidade inigualável, enquanto Ron procurava formas de explicar o que significava estar ali, acariciando os cabelos de sua amada como sempre quisera fazer. Uma noite perfeita... Digna de estrelas cadentes.

"Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso,
E ainda estou confuso.
Só que agora é diferente:
Estou tão tranquilo,
E tão contente.
Quantas chances desperdicei,
Quando o que eu mais queria,
Era provar pra todo o mundo,
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação p'ro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira.
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber tudo.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
Tão correto e tão bonito
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos.
Sei que às vezes uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Me disseram que você
estava chorando
E foi então que percebi
Como lhe quero tanto.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você"
Legião Urbana – Quase Sem Querer.

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