Fuga da Rua dos Alfeneiros n.4



Um rapaz magricela e entediado mirava o teto na Rua dos Alfeneiros, n. 4, Little Whinging, Londres, enquanto a tarde modorrenta findava lá fora, o sol finalmente dando lugar ao abraço sombrio da noite, enquanto as estrelas apareciam pipocando debilmente ao fim do crepúsculo. O garoto mordeu os lábios mais uma vez, sentindo os dentes apertarem as gengivas até que um pequeno filete de sangue vermelho escorreu pela boca, seguido por uma imprecação em voz baixa. Estancando o ferimento com as costas da mão, Harry Potter seguiu emburrado até um minúsculo espelho de porta, rachado e bolorento, que os Dursley lhe presenteara no seu último aniversário. Abrindo a boca, a dor retornou em uma careta medonha, enquanto o rapaz examinava o ferimento. Os olhos verdes, semicerrados, quase desapareciam atrás dos óculos redondos e da franja negra que teimava em tapar sua visão. Vestindo roupas desengonçadas, grandes demais para seu tamanho, o garoto limpou novamente o sangue que continuava a escorrer, bufando de raiva e frustração.

Desanimado, voltou para sua cama, desabando sob os lençóis desarrumados. Seus sentimentos estavam tão difusos quanto os seus cabelos bagunçados e o tédio das últimas semanas. Como único garoto bruxo das vizinhanças, Harry logo se tornara um paria em meio da sociedade terrivelmente normal das redondezas. Desde a noite fatídica, há cinco anos atrás, quando um certo meio gigante arrombara a porta dos seus tios e lhe dera a aterradora notícia de que o rapaz era, na verdade, um bruxo, sua vida infeliz virara de cabeça para baixo. Em pouco tempo, o garoto franzino e tímido chegara a Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts, onde a história de sua vida fora descortinada em sua frente, as vezes de forma bem dolorosa. Os seus pais, Lílian e Tiago, haviam perdido a vida confrontando um bruxo maligno, Lorde Voldemort, que tentara matar o próprio garoto, quando este ainda era um bebê. Protegido por um feitiço de amor de sua mãe, o garoto sobreviveu e, desde então, fora morar com seus tios trouxas, termo comumente utilizado para os que não possuem poderes mágicos. Ao ingressar novamente na vida dos bruxos, o pequeno garoto descobrira que se tornara famoso. A derrota do líder das hostes das trevas correra o mundo e sua façanha, mesmo que acidental, se tornara lendária.

Infelizmente, Voldemort não morrera e, no último ano, ele finalmente conseguira recuperar seu corpo, chamando novamente para si os seus seguidores sanguinários, os Comensais da Morte. Cedrico Diggory, um rapaz quintanista de Hogwarts, morrera pelas mãos de Pedro Pettigrew. Harry assistira tudo e a cena do assassinato do colega ainda lhe queimava a mente, atormentando seus sonhos. No entanto, o ressurgimento do bruxo mais maligno que já existiu não teve testemunhas, além do próprio Harry. O Ministro da Magia, Cornélio Fudge, se recusara a acreditar na palavra do garoto, o que ainda fazia ferver o sangue do pequeno bruxo.

Atormentado com o assassinato do colega e desiludido com o Ministério da Magia, o retorno para a casa dos Dursley lhe pareceu duas vezes mais penoso no último ano. Sem saber o que se passava pela cabeça do rapaz, os seus tios lhe trataram como habitualmente, o que, no caso do Tio Valter e da Tia Petúnia, se resumia a ignorar soberbamente o rapaz o maior tempo possível. Dudley, Duda ou Dudão, primo de Harry, atingira o tamanho descomunal de um elefante em miniatura. No entanto, assustado com as últimas vezes em que encontrar um bruxo - já tivera um rabo de porco preso nos fundilhos e a língua espichada em quase dois metros - o garoto resolvera aderir a campanha dos pais e fingir que o primo não existia. Considerando que Harry tinha espasmos só de pensar em conversar com seus tios sobre os problemas que o atormentavam - os Dursley já haviam deixado bem claro, em inúmeras vezes, que qualquer menção as atividades escolares do garoto estavam absolutamente proibidas na sua casa - a falta de consideração dos seus tios era considerado quase uma benção pelo garoto. Deixado em paz, ele podia pensar e refletir sobre o que acontecera e, principalmente, como ele poderia combater o mestre das trevas.

A idéia de perseguir Voldemort não lhe saíra da cabeça nas últimas semanas. Depois de constatar que o Ministério da Magia realmente não mexeria uma palha nesta direção - o Profeta Diário, o jornal dos bruxos, não trouxera uma linha sequer sobre os acontecimentos na final do Torneio Tribruxo, limitando-se a lamentar a morte acidental de um dos competidores -, o garoto passara da frustração e raiva para a determinação. Voldemort havia matado seus pais. Por causa dele e dos seus seguidores, Neville Longbottom, um menino gorducho e tímido de sua escola, tivera sua infância destruída ao presenciar a tortura de sua mãe e de seu pai, que estavam internados em definitivo no Hospital St. Mungus para Doenças e Acidentes Mágicos. Inúmeras outras famílias haviam sido separadas, entes queridos estavam mortos. Mesmo os trouxas, que não tinham a mínima idéia da existência do mundo dos bruxos, sofreram nas mãos dos Comensais da Morte, que os torturavam e matavam por prazer. No entanto, a raiva lhe subia a cabeça ao se lembrar da prisão de Sirius Black, seu padrinho, acusado injustamente de matar treze pessoas. Mesmo sabendo a verdade - Pedro Pettigrew havia assassinado os trouxas e se fingido de morto -, Harry não conseguira provar sua história durante o terceiro ano em Hogwarts. Mais uma vez, o Ministério da Magia fizera ouvidos moucos a suas reclamações e o padrinho continuava a viver como um refugiado, transfigurado em um cão vagabundo e comendo ratos em cavernas para sobreviver.

Todas aquelas injustiças atiçaram o sangue juvenil do garoto. Ele trocara algumas poucas palavras com seus grandes amigos em Hogwarts, Rony Weasley e Hermione Granger, mas não quisera colocar no papel os seus planos - mesmo porque, suas idéias estavam longe de alcançar um senso prático. A única certeza em seu coração estava na necessidade de fazer alguma coisa, qualquer coisa que ajudasse na derrocada do bruxo que trouxera tanta dor e desespero.

No entanto, a falta de informações e a aparente imobilidade do Mestre das Trevas lhe trazia uma inquietação ainda maior.

- O que Voldemort está esperando? - pensava, remoendo possibilidades e odiando aquela espera enfadonha.

Sentindo tão desejado quanto um besouro em sua própria casa, o garoto praticamente se trancara no seu quarto durante todas as férias, acumulando um nível incrível de energia que precisava ser gasta de algum modo. E o rapaz canalizara toda sua frustração para um único pensamento: Voldemort. Ele precisava ser detido, a qualquer custo.

Harry só não sabia como...

Mesmo remoendo estes pensamentos sombrios, o garoto ainda encontrava motivos para sorrir. Seu décimo quinto aniversário havia sido lembrado pelos seus amigos. Hermione lhe mandara uma veste completa dos DragonFlys, um time de Quadribol do País de Gales. Rony devia ter raspado sua pequena poupança para lhe presentear com um tabuleiro de Xadrez de Bruxo. Hagrid enviara dois enormes bolos fumegantes, carregados por quatro exaustas corujas das torres, que quase haviam desmaiado para realizar a entrega.

- Bolos de dragão! Espero que goste, é a minha receita favorita! - dizia o bilhete, escrito na caligrafia garunchada do Guardião das Chaves e das Terras de Hogwarts.

- Só podia mesmo - resmungara Harry, entre risos, enquanto fugia de uma labareda mais forte. O garoto tivera um trabalhão com os tais doces. Além de esfumaçar como um charuto velho, eles cuspiam pequenas baforadas de fogo e teimavam em correr e guinchar pelo quarto cada vez que o garoto se aproximava com uma colher. Harry perdera a conta das vezes que o Tio Dursley subira as escadas correndo, esbaforido para saber o que diabos fazia tanto barulho. Sem querer complicar ainda mais a sua instável relação com os tios, o garoto finalmente desistira e trancara os bolos em seu malão, deixando para se preocupar depois como contaria para o amigo que não conseguira provar os doces.

Além dos presentes, a única coisa que lhe trazia algum ânimo era a folhinha do calendário, que o garoto arranjara recortando de um jornal velho que o tio jogara fora. Meio amassada e já amarelada pelo uso, ela marcava inexoravelmente a passagem do tempo e agora, só dois quadradinhos ainda restavam até o embarque para Hogwarts. A mistura do tédio inebriante dos últimos dias com a expectativa de finalmente poder se livrar dos Dursley, deixara os nervos do garoto em frangalhos.

Depois de verificar pela milésima vez que a folha do calendário estava correta - será que eu não esqueci de marcar um dia? -, Harry se aproximou da porta e a abriu lentamente, deixando uma pequena fresta entreaberta. O garoto sabia que a noite já avançava e, a qualquer momento, o Tio Dursley o chamaria para jantar. Desde que fizera o longo trajeto entre a Estação King's Cross e a Rua Alfeneiros, n. 4, o seu tio se esforçara para se aproximar o mínimo possível do garoto. Nos últimos dias, adquirira como hábito chamar o rapaz para as refeições em um tom de voz extremamente baixo, torcendo para que o garoto não ouvisse, o que aconteceu uma única vez. Desconfiado pela demora do jantar, há algumas noites, Harry desceu pé ante pé pelas escadas, entrando na sala de refeições quando a Tia Petúnia já retirava os pratos.

Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, um sorridente Tio Valter vociferou que ele tinha mais o que fazer do que ficar gritando várias vezes no pé da escada até que o sobrinho mal educado descesse. Duda quase teve um ataque de tanto rir, enquanto a Tia Petúnia exibia um discreto sorriso em seus lábios finos, emoldurando a cara de cavalo.

Harry engoliu em seco. Sabia que não adiantava reclamar que não ouvira nada. Dando de ombros, voltou para o quarto com o ar mais digno que conseguiu. Lá dentro, extravasou sua frustração socando, silenciosamente, a cama até cansar. No entanto, o garoto estava acostumado com as peças de Fred e Weasley, os irrequietos irmãos gêmeos de Rony. Sem dar o braço a torcer, passara a vigiar os horários do almoço e da janta, mantendo os ouvidos abertos. Tio Valter tentou trocar alguns horários, adiantando ou atrasando as refeições, mas não conseguira lograr novamente o garoto, que se sentava satisfeito na mesa enquanto recebia olhares indecisos do tio e furiosos do primo.

Espichando o pescoço para fora, conseguiu ver as horas no carrilhão que enfeitava o corredor. Eram quase sete e trinta, o horário habitual para o jantar, antes das tentativas frustradas dos Dursley em confundi-lo. Antes que pudesse voltar para o quarto, o Tio Valter aparecera na escada, pronto para chamá-lo com um sussurro que não acordaria um bebê. Os olhares do tio e do sobrinho se cruzaram. Apertando os olhos como se pudesse esmagá-lo, o Tio Valter retornou para a cozinha, sem dizer uma única palavra.

Harry sorriu consigo mesmo e desceu. Havia vencido mais uma batalha.

***

A atmosfera no jantar dos Dursley continuava tão ruim quanto no dia anterior e, provavelmente, tão ruim quanto no próximo dia. A única coisa digna de nota foi o ar repugnante da Tia Petúnia, que passou do lábio cortado de Harry para suas mãos sujas de sangue seco, obviamente preocupada que o rapaz contaminasse sua cozinha impecavelmente limpa. Como era de esperar, ela não teceu nenhum comentário sobre o assunto, observando com o canto do olho o garoto se lavar na pia. A simples idéia de perguntar sobre o estado de saúde de seu sobrinho jamais passaria pela cabeça da tia.

Enquanto Harry se sentava, Tio Valter se concentrava no noticiário da televisão, comentando alguma coisa com a Tia Petúnia, que fingia entender a mistura de mastigar e imprecações que o seu marido presenteava a todos os presentes. Duda, que continuava no regime iniciado no ano anterior, devorava rapidamente sua minúscula refeição e, aproveitando que seus pais não lhe davam a mínima atenção, contrabandeava pedaços de bolos e tortas para a boca, arrancados dos bolsos com as mãos emporcalhadas. Harry já presenciara aquela cena repugnante de gula compulsiva, mas nunca se intrometera no assunto. O seu primo lhe lançava olhares assassinos quando ele percebia que o garoto o observava. Como Potter tinha certeza absoluta que ele seria culpado pela quebra de regime do primo, ele preferia ignorar as tentativas insanas do garoto em aumentar o seu peso corporal, o que já provocara a quebra de duas cadeiras na sala de jantar - Harry estava sentado em uma destas cadeiras, cuja perna fora toscamente consertada com um arame; o garoto passava o jantar inteiro colocando o peso na direção oposta, torcendo para não desabar.

Assim que o jantar terminou, o garoto levou os talheres até a pia. Tia Petúnia, que possuía uma mania terrível por limpeza, não admitia que ninguém lhe assistisse neste trabalho. Depois de levar o lixo para fora, Harry retornou em passos curtos até o quarto, fechando silenciosamente a porta atrás de si. Agora, teria mais algumas horas de tédio até a madrugada.

Horas mais tarde, o último Dursley se recolheu - seu primo Duda, depois da terceira tentativa do Tio Valter em mandá-lo dormir, finalmente levara seu corpanzil até o quarto vizinho de Harry. O garoto esperou ainda quase meia hora antes de puxar os seus livros do buraco no soalho. Proibido de fazer qualquer coisa anormal durante as férias, esta era a única hora em que o garoto podia dar uma olhada nos seus livros de Hogwarts, cujas figuras se mexiam e as fotos davam acenos e desapareciam depois de alguns minutos, visitando os colegas e retornado ao seu lugar original. O garoto lançou uma torrada que havia subtraído da mesa para Edwiges, sua bela e inteligente coruja branca e, enquanto ela mordia, agradecida, o petisco, o garoto estudava as manobras radicais do apanhador da seleção de quadribol da Grã-Bretanha, que fazia um vôo rasante para agarrar o pomo no último segundo antes de se esborrachar no chão, dando, mesmo desacordado, a vitória para a sua equipe. Harry franziu levemente o cenho. Não sabia se tinha tanto amor assim pela equipe de Grifinória. Numa hipótese de uma final contra o time da Sonserina, ele até poderia pensar no caso ...

No entanto, seus devaneios foram brutalmente interrompidos por um estampar seco no andar de baixo.

Harry se levantou prontamente, a varinha em punho. Ele conhecia muito bem aquele estalido. Alguém acabara de aparatar dentro da casa dos seus tios.

Sua respiração pesada era o único som que ecoava na madrugada abafada sob o número quatro da Rua dos Alfeneiros. Engolindo em seco, tentou acalmar seus nervos, temeroso que a batida descontrolada do seu coração reverberasse no soalho de madeira, denunciando seu medo. Seria um ladrão?

- Porque um ladrão bruxo estaria roubando trouxas? - pensou Harry, que desconhecia qualquer objeto de valor que os Dursley tivesse para o bruxo comum. Era bastante óbvio que qualquer bruxo mediano pudesse entrar e sair de uma casa trouxa, a hora que quisesse. No entanto, o Ministério da Magia mantinha registros e fiscalizava com especial atenção quem aparatasse ou desaparatasse em uma região trouxa. O garoto tinha certeza que Hermione havia lhe comentando qualquer coisa a respeito sobre as normas rígidas do Ministério acerca das relações entre bruxas e trouxas, principalmente em relação as suas dependências.

- Mas Voldemort não se importaria em quebrar uma regra do Ministério - sua mente lhe avisou, acendendo novamente uma centelha de pânico, acalmada brevemente pela lembrança de Dumbledore, o antiqüíssimo diretor de Hogwarts, que lhe garantira que em sua própria casa, o Mestre das Trevas e seus seguidores estavam impedidos de entrar.

Esta confusão de pensamentos e sentimentos não durou mais do que alguns segundos, tempo mais que o suficiente para que as costas de Harry banhassem em suor frio. Mordendo os lábios novamente, o rapaz caminhou lentamente pelo quarto, sentindo seus músculo rijos enquanto os pés descalços pisavam de leve nas tábuas frias.

O garoto encostou o ouvido na porta, prendendo a respiração. O som era quase imperceptível, mas Harry podia jurar que alguém subia pelas escadas, as vestes compridas roçando nos degraus encerados. Ele apagou a luz da varinha e girou a maçaneta, odiando terrivelmente o clique da fechadura, que lhe pareceu absurdamente alto na quietude da noite. Enquanto entreabria a porta, as dobradiças rangendo em espasmos secos, vislumbrou um vulto que já atingia o segundo andar.

Potter apertou a varinha com tanta força que temeu que ela se partisse entre seus dedos esbranquiçados. Tentando se lembrar de todas as azarações que aprendera no ano passado - finalmente o Torneio TriBruxo lhe trazia algo de positivo -, Harry empunhou a varinha e abriu a porta em um rompante. Surpreendido, o vulto deu um passo para trás e tropeçou.

- Caramba! Quer me matar do coração? - resmungou o homem, com a voz entrecortada e a mão no peito.

Harry reconheceria aquele som de latido em qualquer lugar.

- Sirius?! - perguntou o garoto, esquecendo de onde estava e acendendo a luz.

- Oi, Harry! - respondeu jovialmente o seu padrinho, puxando o capuz que lhe escondia o rosto e exibindo um sorriso incerto. Seu rosto estava menos magro do que a última vez que se encontraram - Dumbledore havia escoltado Sirius para dentro de Hogwarts depois que Harry confrontara Voldemort no final do ano passo -, mas as marcas dos anos de solidão e desespero em Azkaban ainda demorariam muito para sair da face encovada do bruxo. O bigode negro pendia desleixado pelo queixo quadrado e suas vestes provavelmente haviam sido confeccionadas para outra pessoa, ligeiramente menor.

- O que diabos o senhor está fazendo aqui? - sibilou Harry, subitamente consciente que seu padrinho, provavelmente o bruxo mais procurado de toda a Inglaterra, aparatara dentro da casa de um trouxa que, a julgar pelo barulho que vinha do quarto dos fundos, estaria com eles em questão de segundos.

- Não temos tempo para explicações, Harry - disse Sirius, apertando a mão do garoto, mesmo que este não tivesse estendido seu braço - Dumbledore me prometeu somente alguns minutos. Temos que ir logo!

- Dumbledore? Mas o que...

- Depois, Harry - cortou Sirius, olhando duro para o garoto - Você quer se despedir dos seus tios?

- Meus tios?! Não... Quer dizer...

- Ótimo! Menos uma coisa para você se preocupar! - exclamou o bruxo, entrando no quarto do garoto e inspecionando rapidamente o local.

- É aqui que você dorme, então?! - comentou, com a voz duvidosa - Nada mal, para um trouxa... - resmungou entre os dentes.

Harry, que ainda não se recuperara do susto, acompanhou o olhar atento do padrinho com a expressão que misturava alívio com um terror absoluto. Se o Ministério capturasse Sirius por sua culpa, ele nunca poderia se perdoar.

- Não há como aparatarmos com todas estas coisas - resmungou o bruxo, esticando a cabeça enquanto examinava a pilha de livros e vestes que se encontravam espalhadas pelo quarto, a vassoura de corrida Firebolt escondida dentro do armário e a gaiola dourada da Edwiges, grande e imponente, presa com uma fina corrente no canto leste do aposento.

- Aparatar? - conseguiu perguntar Harry, trocando a preocupação pelo espanto genuíno. Em dois dias ele deveria pegar o Expresso para Hogwarts. Onde seu padrinho tencionava levá-lo?

Antes que Sirius tivesse a chance de responder, o corpulento e atarracado Tio Valter invadira o quarto de Harry com uma expressão zangada. De certo, o patriarca da família Dursley imaginava encontrar seu sobrinho fazendo alguma mal-criação. Nada no mundo lhe prepararia para o choque de encontrar Sirius Black, em roupas esfarrapadas e com a expressão bruta lhe encarando de dentro do quarto.

- É ele... - conseguiu balbuciar, enquanto se agarrava no vão da porta, a força subitamente lhe escorrendo pelas pernas. Harry, que já vira o Tio Valter na presença de bruxos antes, estranhou a atitude do tio até que a compreensão lhe chegou como um raio. Na ânsia em capturar o único bruxo que fugira de Azkaban, o Ministério da Magia divulgara para a polícia trouxa o retrato falado de Sirius Black, tentando conseguir informações com a comunidade não mágica em geral. Harry, mesmo sabendo a verdade sobre a inocência do padrinho, não comentara este fato para os tios. Na sua concepção, ter um parente perigoso poderia ser muito útil para a convivência forçada a que ele era obrigado a se submeter todos os anos.

- Olá, Valter - resmungou Black, o ódio trespassado pelos olhos negros. Mesmo sem conviver com o afilhado nos últimos anos, Sirius tinha uma idéia bastante clara do tipo de tratamento que era dispensado pelos tutores legais de Harry.

- O que você quer? - perguntou o Sr. Dursley, a voz praticamente sumindo.

- Com você, trouxa... - sibilou, acentuando a palavra com desprezo - ... eu não quero nada. Meu assunto é com Harry.

- Esta é a minha casa - protestou Valter, segurando a Tia Petúnia que se aproximara para saber o que estava acontecendo. A visão do bruxo assassino na sua casa fizera a pobre mulher desmaiar nos braços rechonchudos do marido.

- Não se preocupe. Nós já vamos nos retirar dela - completou Black, dando de ombros e se virando para Harry, ignorando completamente os Dursley.

- Alguém virá buscar suas coisas depois. Traga somente sua varinha - completou, consultando rapidamente um bonito relógio prata de bolso - Nós não temos muito tempo!

Harry olhou rapidamente para o pesadelo que constituía a figura triste dos seus tios, praticamente desabando sob sua porta. A menção do seu padrinho de que outro bruxo retornaria nos próximos dias destruiu completamente com o que restava dos nervos do Tio Valter. No entanto, ao notar o semblante preocupado de Sirius e se lembrando que o padrinho mencionara Dumbledore, o garoto resolveu cooperar sem mais delongas. Atirando uma veste da escola desajeitadamente sob os ombros e agarrando sua varinha, correu para o lado do padrinho.

- Mande sua coruja para alguém tomar conta - resmungou Sirius, olhando de soslaio para os Dursley - Eu não confio neles...

Harry correu até a gaiola e retirou Edwiges de seu poleiro. A coruja estava completamente desperta, olhando curiosa para toda aquela movimentação em plena madrugada.

- Vai, Edwiges. Voe até o Rony e fique por lá, ok? - disse rapidamente Harry, praticamente empurrando a ave pela janela. A coruja lhe soltou um pio de censura por ter sido despachada sem nenhuma mensagem para entregar antes de desaparecer no céu noturno de Londres.

- É melhor trancar também todas suas coisas - ainda pediu Sirius, consultando novamente o relógio.

Sem pestanejar, o garoto empurrou os livros, vestes, sua Firebolt e todos os seus pertences mágicos para dentro do grande malão de Hogwarts. Sirius se aproximou, fechando o cadeado e lançando um feitiço.

- Cannis lorromora! - sibilou, enquanto um jato vermelho atingia o malão, provocando um leve tremor no quarto. A caixa de couro e madeira subitamente adquirira uma grande bocarra, onde dentes caninos estavam a mostras, compridos e ameaçadores.

- Pronto! Agora, somente um bruxo poderá abri-lo - disse, sorrindo e olhando com desdém para os Dursley - Vamos, Harry, está na hora de ir.

O garoto lançou um olhar espantado para seu antigo malão antes de agarrar as vestes do padrinho, se preparando para desaparatar. Ele nunca tinha tentado isso com ninguém e não sabia qual seria o efeito, mas os comentários de Hermione sobre o assunto - que já havia lido tudo o que poderia existir sobre este tipo de locomoção - não eram nada animadores.

- Agarre meu braço, Harry - disse Sirius, apontando a varinha para a própria cabeça. Antes de sumir, ainda se dirigiu para as duas figuras prostradas e humilhadas no chão do quarto.

- Seu eu fosse vocês, não me aproximaria do malão. Bagagens transfiguradas costumam ser muito temperamentais - disse, piscando um olho enquanto passava uma mão sobre a mala-cachorro, que latiu alto e rosnou.

A última visão de Harry foi o choro descontrolado do Tio Valter, que carregava a desacordada Tia Petúnia para o corredor. No outro instante, o garoto sentiu seu estômago embrulhar e encolher, como se todo seu corpo estivesse desaparecendo para dentro.

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