Beauxbatons



Harry saltou da cabine de ferro com o estômago embrulhado, prometendo a si mesmo nunca mais viajar de chave de portal se pudesse evitar. Trôpego, puxou o malão para fora, enquanto o funcionário da Key Stroke fechava a grade, puxando outra caixinha de madeira do bolso enquanto cerrava as cortinas.

O garoto inspirou profundamente, dando uma boa olhada no local. A Estação de Paris era uma estrutura imensa, com três andares e dezenas de cabines ricamente ornamentadas em metais dourados com arabescos detalhados. Dois elevadores antiqüíssimos levavam bruxos apressados e famílias em final de férias para os andares superiores. Bancos de ferro, com pequenos chafarizes embutidos nas laterais, estavam dispostos em um grande semicírculo, abarcando um pequeno jardim em meia-lua. Pequenas esculturas de anões, animados magicamente, realizavam cambalhotas e outros truques circenses, chamando a atenção dos pequenos bruxos. Duas mocinhas francesas, vestidas com saiotes compridos de tons amarelados, olhavam maravilhadas para as esculturas saltitantes. Após o jardim, sete bilheterias traziam grandes filas atrás de si, enquanto três garotas, com os cabelos presos e maquiagem exagerada, vendiam petiscos de queijo para os transeuntes.

Moody observava, desconfiado, o movimento intenso a sua volta. Fungando baixo, colocou a bengala na frente e empurrou Harry para um corredor lateral, onde um poste de ferro suportava uma chama bruxuleante de um lampião amarelado. Três tabuletas de madeira, em tom azul e letras amarelas, indicavam os caminhos a seguir: Cathédrale Notre-Dame de Paris, Conducteurs des Loups e Bateau des Óceans.

- Vamos por aqui – resmungou Olho-Tonto, seguindo para a esquerda, em direção aos Conducteurs, atravessando uma passagem e pegando um túnel íngreme, escorado por colunas de pedra e chão de blocos de granito firmemente encaixados. Assim como a Estação, todo aquele complexo estava nos subsolos de Paris. Não havia janelas em lugar algum e o pouco ar fresco escorria por pequenos respiros que o garoto podia jurar estarem ligados ao sistema de tráfego da capital francesa. O ar rescindia a borracha queimada, óleo gasto e gasolina.

Enquanto caminhavam, passando por diversos bruxos e bruxas que seguiam sempre em frente, sem cumprimentar ninguém, Harry observava os cartazes elegantes que anunciavam produtos finos, iluminados por archotes de chamas coloridas. Ao tentar, sem sucesso, ler o texto sobre uma vassoura de corrida, o rapaz teve uma iluminação súbita e assustadora.

- Eu não sei falar francês! – afirmou, petrificado.

Olho-Tonto parou seu coxear ritmado e encarou o rapaz, largando a alça do baú com um estrondo.

- Eu estava imaginando quando você se daria conta disso, garoto – riu ele, quase gargalhando, mostrando depois um certo ar de desapontamento – Confesso que você demorou muito mais do que imaginei.

Harry corou de vergonha, reconhecendo a própria estupidez. A situação era tão óbvia que o rapaz simplesmente não pensara no assunto, atribulado com os últimos acontecimentos.

- O que eu devo fazer?

Moody grunhiu algo ininteligível, buscando algo nos bolsos da camisa vermelha berrante. Um pouco depois, atirava um frasco vítreo, contendo um líquido leitoso e levemente esfumaçado.

- Beba tudo. Não desperdice uma única gota! – reforçou, encarando o garoto com o olho mágico.

- O que é isso? – perguntou Harry, extremamente desconfiado do conteúdo do vidrinho.

- O conhecimento de Dumbledore sobre francês – resmungou Olho-Tonto, limpando o suor que lhe escorria pela face.

- Isso é o cérebro de Dumbledore? – insistiu Harry, assustado, quase derrubando o vidro no chão.

- Não seja idiota, garoto. Este é o conhecimento de Dumbledore, não seu cérebro – rosnou Moody.

- A gente pode... passar o conhecimento para outra pessoa?

- Na verdade, ele está emprestando os estudos dele para você. Por isso, tome muito cuidado com o que você vai fazer com ele – explicou Moody, com um leve toque aborrecido na voz.

- Emprestando?

- Sim, garoto! – vociferou o ex-auror, quase exasperado – Conhecimento não pode ser duplicado de forma leviana. Isso não traz sabedoria – rosnou, fungando baixo – Dumbledore lhe deu o seu conhecimento sobre francês. Depois, ele vai pegá-lo de volta.

- Isto quer dizer que, enquanto eu mantiver... esta coisa comigo, ele...

- Não vai poder falar, ler ou escrever uma única palavra em francês – completou Moody, com um gesto de que finalmente o rapaz estava chegando a algum lugar.

- Agora, beba logo isso antes que você o destrua! – rosnou, dando o assunto por encerrado.

Harry assentiu, abrindo o frasco com muito cuidado. Inspirando fundo, despejou o líquido com uma golfada só, sentindo o gás liquefeito descer gélido por sua garganta. O garoto tossiu e arfou um pouco. Sem aviso, sua cabeça ardeu em um rompante de dor. Tão logo ela surgiu, a sensação dolorida desapareceu.

- Ótimo! – exclamou Moody, voltando a erguer o malão e seguindo o caminho do túnel.

O garoto tossiu ainda duas vezes antes de correr para ajudar Olho-Tonto a carregar seu malão. Temeroso do que acontecera ao seu cérebro, mantinha os olhos baixos, evitando encarar os cartazes e todas aquelas palavras em francês. Depois de um tempo, fingindo remexer o pescoço, ele olhou de soslaio para um anúncio.

Tônico Capilar Madame Bullevar
Cabelos cacheados, carapinha, lisos ou espetados
Crescimento rápido ou seus galeões de volta
Mande uma coruja para o Centro de Embelezamento Bullevar & Filhas


“Absolutamente fantástico!” – pensou o garoto, quase dando um salto no ar. Reconhecia as frases e palavras como se elas estivessem escritas em inglês. Um casal de jovens namorados passou por eles e Harry escutou, nitidamente, o rapaz convidar sua amiga para passar um final de semana na Estação dos Alpes Mágicos. Sorriu, satisfeito, mesmo sabendo que o presente de Dumbledore seria temporário.

Desceram por mais alguns minutos até atingir um salão mais amplo, onde bruxos de botas pretas e calças largas, casacos de veludo preto e boinas vermelhas, fumavam cachimbos de fumo forte e fedorento, recostados em largas paredes de tijolos de pedra. Espalhados em quase todas as direções, túneis escuros e de aspecto ameaçador seguiam até onde a vista alcançava, desaparecendo nas sombras. Uma placa de bronze, reluzindo por sob chamas de um fogareiro quase extinto, anunciava.

Conducteur des Loups
Chariots au Toulouse, Marseille, Lyon e Beauxbatons


“Condutor de lobos???” – pensou Harry, balançando a cabeça. Decerto, estava enganado. Talvez fosse uma frase que Dumbledore não soubesse...

- Está na hora de trocar suas vestes – resmungou Moody, tirando o garoto de seus devaneios enquanto apontava para a entrada de um banheiro masculino – Vista o uniforme da escola enquanto eu arranjo um cocheiro.

Harry assentiu com um gesto, empurrando o baú para dentro do vestiário. Desolado, teve que encarar o momento que estivera protelando durante todo o dia. Agora, sem sombra de dúvidas, ele seria um aluno de Beauxbatons e Hogwarts, decididamente, ficaria para trás. Tirou o boné, soltando os cabelos bagunçados e limpando o suor. Se livrou do resto das roupas trouxas e vestiu, a contragosto, as vestes azuis claras da nova escola. Ele sentiu que a cintura lhe apertava um pouco mas, com exceção deste pequeno problema, até que não estava de todo o mal.

O garoto saiu do banheiro, puxando novamente o malão em direção à figura escocesa de Moody. Dois bruxos mais velhos, que acabavam de chegar, guiados por um rapaz que parecia um pouco mais velho que Harry, encararam o garoto com curiosidade. Potter baixou o rosto, já esperando isso. Estava acostumado a ser reconhecido em todo lugar que ia. Afinal, a cicatriz que Voldemort lhe deixara há quatorze anos atrás estava bem visível no meio da sua testa, e a história do menino que sobrevivera atravessara as fronteiras da Inglaterra há muito tempo. De qualquer forma, ele nunca se sentia confortável sendo observado como uma espécie de aberração e, sempre que podia, tentava esconder o fato de ter enfrentado o Lorde das Trevas quando ainda era um bebê, preferindo ser apenas um rapaz normal.

Olho-Tonto pagava um bruxo que devia ter uns trinta anos, a barba por fazer e o boné vermelho já um pouco gasto. Ele fumava o mesmo cachimbo de cheiro insuportável dos demais, e tinha um corte feio na face esquerda, feito recentemente. Ele encarou Harry por alguns segundos e lançou um olhar inquisidor para Moody, como se fosse perguntar alguma coisa. Obviamente, Olho-Tonto lhe respondeu com sua carranca mais feroz e o cocheiro se limitou a dar de ombros, guardar o dinheiro e ajudar Harry a colocar o baú sobre um carrinho de transporte.

- Monsieur Moody, mein petit, sigam-me, por favor – falou, afavelmente, enquanto empurrava o carrinho pelo terceiro túnel à esquerda, levando consigo um grande archote para iluminar o caminho.

A trilha, bem mais apertada e claustrofóbica que a anterior, era formada, na verdade, por uma grande galeria de catacumbas ancestrais, que se estendiam por quilômetros. As bifurcações se sucediam e o garoto tinha certeza de que nunca conseguiria sair daquele labirinto sem a ajuda de um guia. Ele duvidava que pudesse, ao menos, reconhecer o caminho de volta.

- Onde estamos? – sussurrou, sua voz fraca ecoando de forma retumbante nas catacumbas.

- Silêncio, mein petit – pediu o cocheiro, sorrindo amavelmente – Os trouxas adoram visitar la manoir des défunts.

- E se eles nos virem? – insistiu Harry, curioso.

- Nós temos autorização de nosso Ministério para efetuar feitiços de memória. Faz parte do treinamento de um conducteur – disse ele, com orgulho, tirando o boné vermelho em uma saudação – Mas, mon dieu, a papelada que precisamos preencher depois... É très frustrante – completou, colocando novamente a boina e seguindo em frente.

Harry sorriu, mas permaneceu em silêncio, seguindo em frente, descendo e subindo nas catacumbas seculares. Eles continuaram naquela marcha por quase três horas, fazendo paradas periódicas para que Moody descansasse a perna dolorida.

- Nós não podíamos ter ido de táxi? – perguntou Harry, em uma destas paradas. O cocheiro franziu o cenho, tirando uma nova baforada do cachimbo e fungando baixinho.

- As catacumbas são uma tradição francesa – respondeu Moody, massageando a perna e o ombro onde sustentava a bengala.

Harry deu de ombros e, novamente, partiram para o interior dos túneis. Vários minutos depois, o garoto sentiu uma mudança sensível no ar, que já não estava carregado com os vapores fétidos da decomposição dos mortos e da poluição atmosférica. Sem dúvida, era cheiro de uvas e flores silvestres, de mato e água cristalina. Em pouco tempo, os viajantes paravam ante a uma grade de ferro forte e muito antiga, presa por um enorme cadeado de três fechaduras. O cocheiro puxou um molho de chaves e, rapidamente, abriu a porta, levando o malão para um tapete de relva fresca, na clareira de um bosque verdejante. Ele fechou novamente a grade, ocultando sua entrada entre umas folhagens de abas largas.

Logo à frente, a charneca se transformava em uma mata de altas árvores e vegetação rala. Sorrindo, o cocheiro carregou o malão até a entrada do bosque. Moody cambaleou até o local, ajudado por Harry.

- Para trás – ordenou, levando a mão no peito do garoto e o tirando da frente de uma trilha que mal podia ser percebida no meio do arvoredo.

O conducteur soltou um enorme assovio, agudo e comprido, mas somente a brisa morna lhe respondeu, acariciando a face levemente preocupada de Harry. Mornos minutos se passaram, o cocheiro fumando seu cachimbo, Moody estacado no início da trilha e o garoto de braços cruzados, se sentindo parte de um anticlímax.

Poucos momentos depois, um farfalhar suave e uma revoada rápida de algumas aves de penas acinzentadas quebrou a monotonia dos três bruxos. O som inconfundível de rodas girando sobre folhas secas e gravetos se tornou cada vez mais nítido. Algo muito grande e veloz se aproximava com grande tenacidade. Inconscientemente, Harry deu um passo para trás.

Abrindo caminho entre as folhagens verdejantes e as árvores esguias, uma carruagem preta como a noite invadiu a trilha, puxada por dois lobos de aspecto terrível. Eram enormes, quase tão grandes quanto cavalos. A pelagem brilhante tinha uma cor estranha, parecida com a de um ferro em brasa. Os pêlos, em contato com os fiapos do sol que atravessavam as folhas das árvores, adquiriam uma tonalidade entre o amarelo fogo e o vermelho escarlate. Dois olhos negros e inteligentes examinavam tudo com atenção. Presos a dois arreios de uma corrente muito forte, os dois animais resfolegaram, parando graciosamente ao lado dos bruxos. O conducteur sorriu para os lobos, passando carinhosamente as mãos nuas sobre o dorso e o pescoço dos animais, afagando seus cangotes. Depois, tirou dois pequenos blocos de açúcar dos bolsos. Os lobos comeram com satisfação enquanto Moody foi empurrado pelo cocheiro para dentro da carruagem.

- Mein petit – repetiu ele, ajudando Harry a galgar os enormes degraus do veículo, se instalando em um banco acolchoado de couro, de um vermelho escarlate, preso por inúmeros botões dourados.

- Messieur Loup, Messieur Chien – bradou o cocheiro, depois de se instalar no seu lugar. A carruagem se pôs imediatamente em movimento.

Moody recostou sua perna dura sobre o banco em fronte, baixando levemente a viseira sobre os olhos castanhos. Em pouco tempo, ressonava tranqüilamente, aproveitando o sacolejar da estranha carruagem puxada por lobos. No entanto, o garoto estava muito excitado com a estranha viagem para conseguir dormir. Com as cortinas abertas, ele observava com atenção a trilha se embrenhar na floresta, atravessando riachos, plantações e vinhedos. Era óbvio que a condução estava sob um feitiço muito parecido com o Nôitibus Andante, de Londres. Várias vezes, ele observou as árvores se afastar para dar lugar à carruagem, bem como pontes surgirem do nada e até mesmo um moinho inteiro dar um grande salto, enquanto os lobos puxavam a condução negra velozmente por baixo de suas fundações de pedra.

Quantas horas aquela alucinante viagem durou, o garoto nunca poderia saber com certeza. Ao final de um par de voltas do relógio, finalmente o cansaço venceu a excitação e o garoto adormeceu, recostado sobre o banco macio, sacolejando com as rodas de madeira sendo impulsionadas mais rapidamente.

***

O garoto acordou sobre um silêncio estranho, quase opressor. Já anoitecera, a luz prateada do luar adentrava por entre as cortinas da porta da carruagem como uma faixa branca muito fraca. Ele se levantou do assento, sentindo imediatamente os músculos duros protestarem pela viagem longa. Balançando a cabeça para acordar os sentidos, notou que estava sozinho na carruagem. Moody já descera. Sem perder tempo, abriu a porta e saltou para a noite, ainda bocejando.

O condutor escovava tranqüilamente os animais, cujo pêlo lustroso estava molhado de suor. O garoto olhou para os lados, notando que estavam estacionados ao longo de uma enorme muralha de pedra, que se estendia indefinidamente para os dois lados. Antes que Harry pudesse formular alguma pergunta, Moody apareceu, saindo detrás da carruagem.

- Vamos – resmungou, mancando com a perna de pau em direção a fortificação.

Harry acenou levemente para o conducteur, que respondeu com um toque alegre na sua boina vermelha. O garoto puxou seu malão para fora e foi atrás de Moody, que seguia com seu andar coxo e pausado. Havia uma estrada de chão batido ao largo do muro, por onde a carruagem chegara. A muralha era muito alta, devia ter quase uns quinze metros, Harry calculou, olhando com espanto para a construção, que lançava sombras escuras sobre toda a região. Sem pestanejar, o garoto se aproximou de Moody, ofegante, carregando o pesado baú.

- Aqui estamos – declarou, parando de um salto. A sua frente, um portão de madeira muito grande e largo estava firmemente atarraxado à construção de pedra. Harry olhou de um lado para o outro, mas não viu ninguém.

- Vamos acabar logo com isso. Se apresente e ele deixará você entrar – disse Moody, consultando o seu relógio de bolso.

- Me apresentar? – estranhou o rapaz.

- Sim, garoto. Diga seu nome e o portão se abrirá.

- É só dizer o nome para que... esta coisa se abra? – perguntou Harry, intranqüilo.

Houve um som alto de farpas sendo arrancadas e troncos sendo raspados. O garoto podia jurar que o portão estava reclamando com ele.

- Não seja estúpido, garoto – respondeu Moody, irritado – Ele só deixa entrar os alunos de Beauxbatons.

“Mas eu não sou um aluno de Beauxbatons!” – pensou Harry, amuado, a melancolia voltando aos seus pensamentos.

Suspirando fundo, ele se aproximou do enorme portão e falou, em tom baixo.

- Meu nome é Harry Potter – anunciou.

Um rangido forte, seguido de estalos das grossas dobradiças de ferro, cortou a noite como um uivo feroz. Os portões de Beauxbatons se abriram e Harry teve a primeira visão dos jardins da famosa escola francesa. Logo após as muralhas, duas sebes baixas e finamente recortadas, formavam um corredor comprido, que seguia por centenas de metros até um espelho d´água, circular. Ao lado das sebes, canteiros de flores, cujas cores pareciam esmaecidas pela noite, formavam estranhos arabescos, graciosos e elegantes, guarnecidos por pequenos muros de pedra com centenas de colunas de seis palmos de altura.

O garoto suspirou novamente, sentindo a tensão lhe voltar ao corpo, como se ele estivesse chegado a Hogwarts pela primeira vez. Ele se voltou para agradecer ao ex-auror por tudo, mas Olho-Tonto já se afastara, o passo incerto retornando para a carruagem negra. Harry deu um pequeno sorriso triste e avançou, puxando o malão pela trilha de grama verde e muito bem aparada. Assim que penetrou no caminho das sebes, o portão se fechou em um grande baque, quebrando o silêncio opressor da noite. Pequenas tochas de luz azul acenderam magicamente ao seu caminho, apagando assim que o rapaz prosseguia pelo jardim, marcando a trilha.

Suando, Harry carregou seu baú pelo jardim até atingir o espelho d’água, onde um chafariz formado pela escultura de um belo hipocampo chilreava pequenos filetes pelos olhos. O garoto achou a obra de arte melancólica, mas bastante condizente com seu estado de espírito. Enxugando o rosto do suor, manchando as vestes azuis claras, ele contornou o pequeno lago circular e avançou sobre a segunda parte do jardim que, para o desespero do garoto, era tão comprida quanto a primeira.

Este segundo jardim não tinha flores ou muros. Um gramado de relva impecavelmente aparada formava um tapete aveludado, cortado por caminhos de pedra marmórea e pontilhado por árvores altas, pontudas, de folhas espessas e galhos retorcidos, formando esporões que saltavam da terra para o ar, como guardiões da escola. As trilhas de pedra produziam bonitos padrões geométricos no chão, cuidadosamente medidos para que se repetissem nos dois lados da trilha.

Sentindo os músculos doloridos depois das horas de inatividade seguidos pela exaustão de puxar o baú por uma trilha sem fim, Harry bufava quando atingiu o final do segundo jardim, as pequenas chamas azuis cintilando e apagando. Agora, estava totalmente no escuro, próximo a uma pequena escada de pedra.

“Essa não!” – reclamou, exausto, puxando o malão pelos degraus, produzindo baques secos enquanto as pedras lascavam e arranhavam o baú de madeira. Ao atingir o topo de um largo terraço, ornamentado com vasos de folhagens muito verdes, o garoto seguiu até uma cerca de ferro fundido, onde gavinhas de heras se contorciam entre as pontas e os volteios da armação. Finalmente, atrás da grade, se erguia o majestoso Castelo de Beauxbatons.

Um vale profundo se adiantava após o jardim, escavado entre rochas graníticas, onde duas majestosas escadas de uma pedra rósea desciam serpenteando até o sopé do castelo. Banhado pela luz do luar, a imponente construção branca e azul refulgia em tons prateados, onde as luzes amareladas que fugiam das janelas contrastavam de forma particularmente bela com o manto enegrecido da noite. Harry distinguiu cinco torres no castelo, distribuídos irregularmente pela construção. As duas primeiras, muito mais baixas que as demais, eram as Atalaias de Vigia, separadas equidistantemente do centro, onde um portão de ferro se abria para o final da trilha. Um muro alto e grosso separava as torres, formando uma segunda defesa para o castelo, onde doze barbacãs de telhado triangular guardavam o portão. Atrás da entrada, uma torre mais alta se erguia majestosa à direita dos visitantes, há poucos metros da Atalaia de Vigia Leste. Quadrada na base e circular no topo, seu telhado azul tinha uma ponta baixa e uma flâmula dourada no centro. Seguindo a linha da muralha de proteção, pontilhada de ameias de sete palmos de altura, no sentido norte, no lado oposto do portão principal, a construção principal do castelo formava um campanário quadrado de grandes proporções, com torres pequenas e várias janelas de sótão distribuídas em um conjunto harmonioso, mescladas as telhas azuis. Um muro menor, precedido por um terraço estreito, fora construído alternando troneiras, seteiras e merlões, fornecendo a última proteção do Catelo. Ainda, erguida do lado leste da construção, quase como se fosse um apêndice que pendia para fora, uma torre média, de telhado pontudo e aspecto nobre, trazia uma escada externa em caracol.

Barracões, cisternas e casas menores de pedra branca estavam distribuídos pelo pátio retangular formado pela muralha que saia da Atalaia de Vigia Oeste, seguia até o Campanário, quebrava em um ângulo reto, em direção leste, até atingir a Grande Torre, e retornava até a Atalaia de Vigia leste. A Grande Torre, por sua vez, era a maior e mais imponente construção, que se erguia diretamente do piso de chão batido por dezenas de metros, ultrapassando, em altura, as anteriores. O telhado, pontudo e de cor azulada, sustentava dúzias de flâmulas douradas ao seu redor. No alto, a bandeira de Beauxbatons tremulava levemente ao vento calmo que prenunciava o final do verão.

Harry achava Hogwarts o lugar mais interessante e imponente que já vira, mas a visão da construção alva de Beauxbatons era, realmente, de tirar o fôlego. Com um assovio de admiração, ele perdeu alguns minutos se recuperando do cansaço e vislumbrando, sozinho, o Castelo magnífico. Infelizmente, se dando conta que provavelmente estava atrasado, pois ele não vira viva alma até então, o garoto se pôs a caminho novamente, puxando o baú e descendo as escadas de pedra até o vale. Passando por árvores de folhas alaranjadas, ele seguiu o caminho até o portão de entrada, que estava aberto. Para seu imenso alívio, uma profusão de malões, baús, malas, alforjes e bornais estavam atirados em um canto, aguardando, silenciosamente, o retorno dos seus donos. Sem perder tempo, ele largou seu baú ali e seguiu pelos corredores do Castelo.

Ao contrário de Hogwarts, que fora inteiramente construída com uma pedra escura e de toque áspero, Beauxbatons resplendia brilho através de seu revestimento de mármore branco. O piso, formado por pedras polidas de cores sóbrias, trazia um toque de classe e nobreza que o garoto não estava acostumado. Sem querer, ele se viu olhando para trás, preocupado que os tênis enlameados pudessem sujar ou, pior, arranhar o pavimento brilhante. Alguns quadros, pendurados sob a luz de tochas azuis, traziam a pintura de altivos príncipes e belas rainhas, de ar sereno e complacente. Em Hogwarts, as figuras mágicas dos painéis, normalmente, conversavam com os alunos e acenavam quando estes passavam pelas suas alas. Harry imaginou que, em Beauxbatons, seria necessário a invasão de uma tropa de trasgos para que aquelas pinturas notassem alguma coisa em sua volta.

Sem saber para onde ir, entrou em várias salas vazias e corredores sem luz até ser encontrado por uma senhora.

- Manque, o que faz aqui? – perguntou uma bruxa, de saia rodada escura, avental branco e um grande lenço bordado enrodilhado nos cabelos já grisalhos.

Harry se virou, num susto.

- Men dieu, mil perdões – disse ela, corando terrivelmente, levando a mão à boca.

O garoto deu um sorriso amarelo, levando sem querer a mãos nos cabelos para esconder sua cicatriz.

Seguiu-se um silêncio verdadeiramente constrangedor, onde a velha bruxa parecia desconfortável e irrequieta, observando com atenção o garoto, sem saber o que decidir. Harry, que já estava acostumado àqueles espetáculos de curiosidade desmedida com sua figura, permaneceu impassível, tentando parecer o menos ofendido possível.

- Venha, vamos ver Madame Maxime. Ela vai saber o que fazer – disse ela, por fim, voltando pelo corredor.

Harry deu de ombros e seguiu a bruxa, subindo por uma escada ampla, de degraus dourados. Logo, a algazarra típica de um banquete chegou aos seus ouvidos e o garoto sentiu uma pontada aguda de saudades, imaginando o que estariam fazendo Rony e Hermione, agora.

A bruxa parou perto de uma imensa porta, que deveria medir a altura de uns três homens, entalhada em uma madeira muito escura e densa, mostrando a figura de diversos bruxos que batiam um papo animado. Harry notou a aparente hesitação por parte da bruxa, que se virou rapidamente, encarando os olhos verdes e determinados do garoto. Suspirando brevemente, ela se virou e abriu as portas.

O barulho dos talheres e copos imediatamente cessou, assim como as conversas. Obviamente, a interrupção de um jantar não era algo que deveria se comum por aqui – pensou Harry, entrando com os passos lentos para o salão fartamente iluminado.

Seguindo o olhar da sua relutante guia, ele observou a mesa dos professores, de formato circular, tomando quase todo o canto sul do Salão. A imensa cadeira da diretora Maxime destoava no meio da multidão, bem como o seu enorme corpo. Harry se lembrou de Hagrid que, assim como a excelentíssima diretora de Beauxbatons, era meio gigante. No entanto, ao contrário do ex-guarda caças de Hogwarts, a professora nunca admitira isso, pois o preconceito contra os gigantes era algo muito enraizado na cultura bruxa em geral. De qualquer modo, ela observou o garoto com grande apreensão e um quê de surpresa que o deixou aflito.

Ele não imaginava ser recebido de braços abertos na escola francesa – a maioria dos alunos que estivera em Hogwarts no ano passado saíra da Inglaterra com impressões dúbias sobre o garoto, que vencera a campeã de Beauxbatons e ainda retornara com a taça TriBruxo ao lado do corpo de um dos competidores. No entanto, ele imaginava que, pelo menos, a diretora saberia de sua vinda.

No entanto, a surpresa estampada na face da Madame Maxime, absolutamente não tinha nenhuma relação com sua presença em Beauxbatons. Vários professores também observavam o garoto, a maioria com um ar de profunda indignação, mas muitos sorrindo e, até mesmo, achando graça de alguma coisa.

Incomodado com aquela recepção fria, Harry se virou para os alunos. Espalhados por diversas mesas circulares de doze lugares, os estudantes de Beauxbatons observavam o garoto com ares muito divertidos. Para seu imenso horror, ele finalmente entendeu, sentindo que suas entranhas, subitamente, haviam desaparecido. No emaranhado dos estudantes, ele distinguiu nitidamente os rapazes, todos eles trajados elegantemente com vestes azuis petróleo, escuras e sóbrias. As meninas, assim como Harry, vestiam vestes azuis claras.

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