Lendas na Escuridão
ISSO É UMA TRADUÇÃO
Let me take you, ‘cause I’m going to Strawberry Fields.
Nothing is real and nothing to get hung about.
Strawberry Fields forever.
The Beatles- Strawberry Fields
Capítulo 1 – Lendas na Escuridão
Quando eu tinha oito anos, encontrei um pardal moribundo.
Havia uma onda de calor naquele verão. O sol batia incessantemente na terra em raios caleidoscópios. O calor engolfava os terraços de café, onde bruxos e trouxas se deitavam espreguiçados, visivelmente moles.
Na Inglaterra, é fato sabido que nada é mais excitante que o tempo: um ataque de chuva traria horas de conversa; uma onda de calor uniria o país inteiro.
Eu não estava a par de nada disso quando peguei o pássaro minúsculo no pequeno bosque aquele dia. O calor estava opressivo e fazia o jardim ser quase tranqüilo; as reuniões de rosas empertigadas, carmesim e perfeitas, as árvores se agitando com a brisa quente. Estávamos em plena década de 60 e o mundo estava mudando rapidamente; embora o jardim parecesse silencioso, congelado no tempo.
Nós não podíamos sair no sol do meio dia. Mamãe dizia, inflexível, embora nós reclamássemos, que o sol iria ruir nossa cor. Mamãe era uma alta e loira rainha do gelo, uma deusa ao nosso olhar e ao olhar da maioria do nosso mundo.
Cassandra Black era a filha mais velha de Lord Rookwood e vinha de uma linhagem mágica até mais velha que a de nosso pai. Nas raras ocasiões em que visitava a enfermaria, Narcissa fazia o elfo doméstico babá escovar seus longos cabelos loiros até que eles quase brilhassem (mesmo com nove anos, Narcissa era dolorosamente bela) e depois saia andando com suas melhores roupas por dias esperando que um pouco da aura de nossa mãe tivesse passado para ela. Eu ficava muda e olhava para baixo, aterrorizada por estar sob seu olhar. Até mesmo Bellatrix baixava a voz e parava o que estava fazendo, embora não tivesse tomado conhecimento dos comandos de mamãe.
Ela corria e se escondia no bosque me levanto junto com ela e, as vezes, Narcissa. Embora Bella fosse um ano e meio mais nova que eu, ela era minha outra metade, meu lado selvagem. Com Bella eu poderia ser qualquer coisa – nós poderíamos ser Morgana A Fada derrotando o Rei Artur, ou Gifford Ollerton caçando gigantes. Nós corríamos pelas árvores gritando descalças, nos tornando crianças selvagens, o oposto das bem comportadas que todos achavam que éramos.
Bella desceu correndo o barranco quando eu mostrei o corpo quebrado do pardal à ela. Tinha folhas em seus cabelos bagunçados e ela estava rindo, mas parou quando pegou o passarinho de mim.
— Vamos dar um funeral à ele — ela sussurrou melodramaticamente, seus olhos correndo em volta com o que não parecia interesse.
— Mas ele não está morto — eu disse.
— Então deixe-o morrer... Venha Andrômeda, vamos — ela disse e bateu num mosquito que se atreveu a pousar em seu braço, com uma mistura de veneno e impaciência.
— O que vocês encontraram? — veio uma voz e o ruído de passos largos, a única característica de Narcissa que não era bonita. Nossa irmã mais velha loira aparentava ter pegado o caminho longo para não amarrotar suas roupas. Ela não queria sentir a fúria de nossa mãe se esta descobrisse, mas Bella a tinha persuadido. Bella tinha efeito nas pessoas.
— Ah — ela disse, olhando para o pássaro com desgosto e adotando uma voz autoritária, que reservava só para falar com elfos e imitar nossa mãe. — Deixe-o em paz, Bellatrix. — Narcissa era a realista da família, a única que estava certa de que Bellatrix e eu voltávamos para o mundo real ocasionalmente.
— Não. Vamos dar um funeral à ele — Bellatrix disse e colocou o pássaro num pequeno monte de terra coberto de samambaias, se ajoelhando para escutar a respiração fraca dele. Tinha uma mancha preta em seu nariz. Narcissa arrumou as flores selvagens, como se a vida dele se esvaísse lentamente, subitamente esquecendo suas roupas enquanto deixava seus cabelos claros como o sol caírem na pequena sepultura.
— Acho que está morto — sussurrou Bella depois de alguns minutos. Nos sentamos juntas em silêncio por alguns momentos. Nada em nossas vidas curtas tinha morrido antes... Dificilmente sabíamos como a morte era.
Para um olho não treinado nós pareceríamos quase idênticas, mas realmente éramos imagens distorcidas uma da outra. Narcissa era a imagem de nossa mãe e seus cabelos loiros, os quais ela amava sentar-se atrás, trançando e torcendo, entrelaçando flores nos fios dourados. Ela já era de longe magnífica demais para uma criança... sua aparência era duvidosa até para nós. E havia Bella... seus cabelos escuros e bagunçados cheios de folhas, os olhos cinzas transbordando com sua expressão sombria indecifrável, a única que nunca entendíamos completamente até ser tarde demais. Eu... a morena mestiça da família, com os mesmos olhos e as mesmas feições, mas uma estranha mistura de dois deles: minhas irmãs, meus outros eus.
Sentamos por um tempo de mãos dadas, um círculo de proteção em volta do pequeno pássaro. Nenhuma de nós chorou ou falou. Pela primeira vez em nossas vidas protegidas tínhamos sentido a dor que mudaria nosso mundo, a dor da perda.
~*~*~*~
Vivíamos uma vida dupla. Em casa, na claustrofobia da mansão com seus largos corredores proibidos e pinturas brilhantes de nossos ancestrais, éramos perfeitas filhas obedientes. Mamãe tinha falhado em gerar um filho e herdeiro; porém, suas três lindas filhas eram seus bens mais preciosos e tivemos uma infância digna da nobre casa dos Black.
Enquanto crianças nós tínhamos uma armada de elfos para cuidar de qualquer coisa que precisássemos, mas mamãe mesma supervisionou nossa educação. Aprendemos a tocar piano e violão, a cantar e dançar perfeitamente, com quem conversar mais educadamente e, o mais importante, a quem ser superior. Narcissa era ótima em tudo isso, sua beleza a fazendo a favorita de mamãe. Ela mostrou um pequeno interesse quando aprendemos a ler e escrever em inglês, francês, italiano e grego. Eu aprendi essas línguas rapidamente e logo as tinha fluentes... Era uma estudante ansiosa por beber conhecimento, procurando textos antigos na biblioteca e constantemente sendo pega e posta para fora por meu pai. Em cada minuto de sobra eu estava lendo; minhas irmãs achavam isso divertido e se jogavam em cima de meus ombros, me atormentando para ir para fora ou escondendo meus livros como uma brincadeira. Até mamãe estava perplexa com minha capacidade de aprender e queria me ensinar a “como agir como uma jovem dama”. Do ponto de vista de meus pais, se esforçar era um sinal de doença de nascença. Porém, quando eles nos exibiam em jantares, nunca perdiam uma oportunidade de me deixar falar com os oficiais do ministério sobre história clássica num francês fluente. Nossos pais tinham orgulho de nós, mas nunca admitiriam.
Tínhamos camas diferentes, mas raramente dormíamos separadas. Nós nos amontoávamos na cama grande e ricamente esculpida de Narcissa e puxávamos as ricas cortinas bordadas com o brasão da família até nos envolvermos pela escuridão.
Então, à luz de velas, nossa outra vida começava.
Fazíamos turnos para contar histórias uma para a outra, à luz de velas, como se estivéssemos vivendo em noites árabes. Narcissa amava os contos do Rei Artur, especialmente o de Guinevere, que era seu nome do meio. Ela tinha livros velhos de contos de fadas que nossa mãe tinha dado à ela, e sussurrava as histórias, aperfeiçoando-as a cada vez. Minhas histórias eram sobre Homero e Ilíada, dos escritos de Virgil, os quais eu traduzia para minhas irmãs (Bella era impaciente demais para decodifica-los, e Narcissa preferia suas bonecas à livros), recontando os antigos contos de aventura.
As histórias de Bella eram sempre as melhores. Ela fazia os contos de terror ela mesma: de vampiros e lobisomens, de maldiçoes das trevas e romances góticos. Nós nos apertávamos quando eles ficavam mais sombrios, mas cheios de sangue, enquanto a pequena face de Bella ficava mais viva. Eventualmente dormíamos, abraçadas tão juntas que nossos diferentes tons de cabelo se misturavam e ficava impossível dizer qual era de quem. Porém, à luz do dia éramos totalmente selvagens — quando mamãe estava ocupada com festas ou cuidando da casa, nós corríamos e brincávamos entre as árvores, nos imergindo em nosso mundo imaginário e jogando uma parte diferente a cada dia.
Tínhamos poucos colegas de verdade para brincar; havia poucas crianças que nossos pais consideravam boas o suficiente. Os Lestrange, os Snape e nossos primos Rookwood eram nossas principais companhias; porém, nunca permitimos que eles visitassem nossos Mundos. Só nossos primos Sirius e Regulus as vezes tinham permissão para entrar — Sirius era um ano mais novo que Bella e a idolatrava. Ambos tinham o mesmo espírito selvagem e independente, o que os fazia se sentarem, as cabeças idênticas juntas, rindo e conspirando. Procuravam aranhas pelo jardim para deixar cair na cesta da lavanderia para elfos distraídos e — se estivessem com um humor particularmente diabólico — Narcissa, que hesitava levemente e as arremessava pela janela. As vezes eles desapareciam por horas no final e eu me sentava com ciúmes, imaginando aonde tinham ido, chateada porque Bella estava deixando alguém mais entrar em nosso mundo.
Quando ela tinha quase nove e eu tinha dez eu me lembro de nós três na margem do rio que marcava os limites de nosso jardim. Ele tinha secado com o passar dos anos e era agora um pequeno buraco de uns três metros. Nós raramente nos aventurávamos até tão longe, porém, aquele era o dia que Bella tinha escolhido para sua aventura mais ousada.
— Eu devo pular? — ela gritou. — Aposto que consigo.
— Impossível, Bella! — eu gritei de volta, sabendo que agora que eu tinha discordado dela, ela desobedientemente faria e sentindo a excitação a flor da pele. Sirius, que estava de pé perto de mim, me deu seu usual sorriso irônico; não tínhamos dúvidas de que ela faria. Bellatrix era invencível aos nossos olhos.
— Você está errada, Andrômeda Black! — ela riu. — Nada é impossível para mim! — e com isso ela deu um grande salto correndo. Ela voou atravessando o ar e Sirius e eu seguramos a respiração; parecia que os membros dela tinham sido encantados. Eu esperei para aplaudir, ela ia conseguir.
Subitamente ela estava caindo do barranco; bateu no chão com um estrondo. Suas pernas se dobraram. Sirius e eu ofegamos e descemos o barranco para encontrá-la tentando se sentar, seus olhos arregalados de choque. Pela primeira vez na vida Bella tinha falhado em alguma coisa, e sua face mostrava isso claramente.
— O que aconteceu? — era Narcissa acrescentando atrasada. Seu belo rosto ficou branco e sua pose se desestabilizou, sua expressão era uma que dificilmente alguém veria em um membro de nossa família. Era um profundo medo.
— É a perna dela — eu disse à ela. — Acho que está quebrada.
Narcissa hesitou — ela era a mais velha e era quem tomava as decisões (Bella gostava de pensar que era ela, mas eu reparei que era Narcissa). Eu pude ver que ela estava medindo a fúria de nossa mãe para com Bella que tinha se machucado de verdade.
— MÃE! — ela gritou, correndo em direção à mansão. Senti a mão de Bella segurar rígida na minha; a raiva queimava em seus olhos. Sirius e eu trocamos olhares; mesmo com sete anos ele sabia que não havia nada mais perigoso que o temperamento de Bella. Eu temi pelo que aconteceria com Narcissa quando a perna dela ficasse boa.
A perna de Bella se curou facilmente com um feitiço rápido de nossa mãe. Ela estava tomando chã com a Tia Black (a mãe de Sirius era uma mulher formidável que me aterrorizava, mas que eu sempre observara com um tipo de orgulho furtivo; minha mãe era mais bonita que sua irmã) e a esposa do Ministro da Magia e não estava satisfeita de ser interrompida pelos gritos de sua filha mais nova. Bella teve suas juntas várias vezes acertadas pela velha escova de prata de mamãe esculpida com o brasão dos Rookwood e estava de castigo em casa por uma semana. Essa tinha sido uma punição leve, levando em conta que ela protestou gritando alto e não falaria com Narcissa por quatro horas.
Bellatrix guardava rancor como a maioria das pessoas guardava feridas de guerra. Porém, Narcissa em breve começaria seu primeiro ano em Hogwarts e Bella e eu estávamos fascinadas demais por todas as preparações para ficarmos bravas com ela. Com onze anos Narcissa tinha ficado mais bonita do que podíamos ter imaginado; tinha atingido a puberdade cedo e seus seios estavam começando a crescer (ela nos mostrou quando estávamos indo para a cama, sua face confusa quando Bella riu), sua cascata de cabelos loiros era tão longa que ela quase podia se sentar em cima dela e seu rosto parecia com o dos deuses gregos das estátuas do jardim de rosas, perfeitamente sereno e proporcional.
Claro que mamãe tinha providenciado o melhor para o primeiro Black em vinte anos a dar à Hogwarts a graça de sua presença. Admirávamos as roupas de cetim de marca novas de Narcissa, capas de pele de linha e luvas de caxemira, todos com o brasão da família bordado. Eu roubei seus livros da escola e li todos nas poucas horas da manhã até ter memorizado-os e eu e Bella fizemos turnos para sacudir a varinha (mogno, pelo de unicórnio, 33 centímetros) e tentar produzir faíscas. A maioria de nós se admirou com o presente de papai: um pingente do brasão dos Black que pendia de uma delicada corrente de prata que Narcissa usou com óbvio orgulho enquanto assistíamos, escondidas no topo das escadas, os elfos empacotarem suas coisas e mamãe inspecioná-la. Quando estava satisfeita ela olhou sua filha nos olhos e disse simplesmente: “Lembre-se que você é uma Black, Narcissa, e eu espero que aja como uma. Se fizer alguma coisa que desgrace o nome da família, você será tirada da escola”.
Na noite depois de ela ir embora, Bellatrix e eu deitamos em sua cama, nossos pequenos corpos paralelos tão perto que podíamos sentir a respiração uma da outra em nossas bochechas. Enquanto crianças nunca tínhamos passado uma única noite separadas e o pensamento de Narcissa longe numa cama gelada nos fazia sentir como se tivéssemos perdido uma parte de nós mesmas.
~*~*~*~
— Então, Andrômeda, você está começando Hogwarts. Onze anos já... como o tempo voa! — meu pai andava para cima e para baixo no escritório e fixou seus olhos em mim. Phillius Black tinha o clássico olhar sombrio da família que Bellatrix tinha herdado. Um homem respeitado no Ministério da Magia e um pilar no mundo mágico. Eu sempre tive mais medo dele que de minha mãe.
— Sim, pai — eu disse. Eu era velha para meu ano, tinha quase doze, e tinha me tornado uma garota bonita com a figura esbelta dos Black e olhos cinzas. Meu cabelo era comprido e castanho escuro. Embora não tão bonito quanto o de Narcissa, eu gostava bastante dele e minha mãe até me deu um aceno de aprovação quando me viu vestida em minhas perfeitas roupas novas da escola.
— Sua irmã, pelo que ouvi nos encontros da administração da escola, está fazendo seu melhor para sustentar o nome da família.
— Eu sei, pai — eu disse, tentando controlar minha excitação por poder estar com Narcissa denovo. Ela não era uma boa escritora de cartas e eu estava desesperada para ver como era a vida dela em Hogwarts.
— Eu acredito, Andrômeda, que você se lembrará de agir do modo que é esperado de uma filha da Nobre Casa dos Black — ele disse, severamente. Atrás de sua escrivaninha, todos os porta-retratos de meus antecessores acenaram e me fitaram com o mesmo olhar metálico. Eles pareciam ofendidos com uma mera garota de doze anos representando a família. Nos séculos anteriores as garotas Black não tinham permissão de ir para Hogwarts e aprendiam magia em casa.
— Sim, pai — eu o assegurei. Ele se desfez num sorriso gélido, satisfeito, e os porta-retratos relaxaram de volta para suas molduras.
— Boa garota... pelas vezes que te peguei com meus livros, já podia ver que seria uma boa aluna — ele disse casualmente e abriu uma pequena caixa para revelar um pingente com o brasão da família, idêntico ao que Narcissa tinha recebido um ano atrás. Eu o peguei e o balancei nos meus dedos, deixando-o absorver a luz. Então coloquei-o por cima de meu pescoço, tendo dificuldade com o fecho, que não parecia ser são simples como eu teria preferido.
— Lembre-se, Andrômeda, que você está usando o colar que representa a Família — disse papai, depois de eu agradecer sem fôlego. — Enquanto está em Hogwarts você tem que tomar cuidado extra com quem se relaciona. Se eu ouvir que você está se relacionando com sangue ruins ou alguém abaixo de nossa família, haverá sérios problemas.
— Sim, pai — eu disse, estremecendo levemente. Eu nunca tinha conhecido um sangue ruim e estava horrorizada que podia falar com um por engano; porém, não me atrevi a perguntar ao meu pai como eles eram.
— Muito bem — ele disse, me dispensando com um aceno de sua varinha. — Tenha um bom semestre e se lembre da nossa conversa.
Bella quase ficou verde de inveja quando me viu com o colar.
— Não sei como vou sobreviver esse ano — ela sussurrou, seu rosto élfico franzindo.
— Eu vou te escrever toda hora — prometi.
— Todos os dias?
— Duas vezes por dia! — eu disse, e olhei para ela desajeitadamente. Detestava despedidas e agora que tinha que fazê-lo, não tinha nada que eu podia dizer. Em vez disso eu pus meus braços em volta do corpo pequeno e do cabelo desarrumado dela. Mamãe olhou para nós e arqueou uma sobrancelha, mas nos deixou nos abraçando no hall escuro da casa até que eu perderia o trem se ficássemos lá mais tempo.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!