Capítulo Único



Diário de um cão




Olá. Meu nome é Frevo. Um nome não muito comum, mas foi esse nome que meus donos me deram. Não sacou ainda? Não sou humano, não. Sou um cachorro. Com muito orgulho.
Minha história começa no meio de um matagal de um terreno baldio. Eu tinha apenas 1 dia de vida. Eu e mais 4 irmãozinhos pretinhos como eu. Somos cinco e mais minha mamãe. Isso mesmo, temos uma mamãe. Uma cachorra bondosa que não desgruda de seus filhotes, nem para se alimentar. Tenho sorte de ter uma mãe assim. Tenho sorte mesmo é de não ter nascido fêmea, não quero passar pelo o que minha mãe está passando, a insegurança.
Meus irmãos até que são legais, os adoro. Brincamos até cansarmos, vidinha boa né? É que ainda não contei o resto da minha história.
O terreno fica na rua Fernando Collor. Não sei por que, mas... Pelo visto, ele não deve ser nada legal. A rua é super movimentada e mal-tratada. Minha mamãe falou que tem uns "caras" que não são boa gente e moram na minha rua. Eles deixam pratinhos com ração envenenada. Tenho medo de sair perto dela.
Uma semana depois que nasci, uma senhora boa, com expressão cansada, mas sempre com um sorrisinho no rosto. Acolheu-nos. Eu, meus irmãos e minha mãe na casa dela.
E a nossa vida foi passando lá...
Ah, quase me esqueço... de contar sobre a casa dela!
A casa dela... uma casa pequena, mas muito bem cuidada, mora a velhinha, e a "cambada de cachorros" como ela gosta de nos chamar. Mais ninguém.
Completei 1 mês, que alegria. É claro, meus irmãos também, mas queria a atenção da minha mãe só pra mim neste dia. Por falar da minha mãe, agora ela está mais segura em nos deixar sozinhos num canto para ela beber água e dar um passeio pela casa. Dormimos numa grande almofada velha que a nossa dona fez questão em nos dar.
Estava passeando pela casa, quando ouvi minha dona na porta de casa conversando com a vizinha:

- Olá Cleusa. - disse a minha dona.
- Oi Dona Maria. Como vai?
- Vai indo, e você?
- Ahh, uma correria, mas hoje feriado, vou ficar em casa. Ainda bem que daqui a pouco vou aposentar e meus filhos vão me sustentar. E aí, alguma novidade?
- Acolhi 5 filhotes de cachorros vira latas e mais a mãe deles num terreno aqui por perto.

E a conversa não parava mais. Então descobri nessa conversa que minha dona se chama Dona Maria. E que tem uma vizinha confiável.
Os dias foram passando e comecei a crescer. Me custou muito para mim andar sozinho na casa. Foi muito pior quando tive que abrir meus olhos. Já acostumei a fazer meu xixi nos jornais jogados que minha dona faz por essa razão. Ela também sempre dá pedaços de pão com mortadela, restos de comida e um pouco de leite.
Sei latir também. E lato quando quero que ninguém reclama, nem minha dona. Aliás, ela adora me ver latir, ele dá um sorriso e me pega no colo.
Os tempos foram se passando e completo 2 meses. É para ser uma data comemorativa mas foi ao contrária, foi uma data horrível. Minha dona teve um infarto e faleceu. Foi coisa de minutos.
Na manhã seguinte fomos levado para um lugar onde doa-se filhotes pela nossa vizinha, a Cleusa. A Cleusa concordou em ficar com a nossa mãe, já que no lugar onde paramos, não aceitam cachorros adultos. E em poucos dias, cada um de nós 5 filhotes, fomos indo para famílias diferentes. Fui o último. Uma menina de 12 anos me apontou para os pais dela e os convenceu de me levar para a casa deles.
Entramos num veículo grande, chamado carro. Dona Maria nunca teve um desses antes, por isso estranhei-me um pouco. Mas o que mais adorei nesse veículo foi de ficar na janela. Fiquei observando as pessoas por fora do carro até chegarmos no meu novo lar. Uma casa grande, arejada com um jardim florido. Pensei que teria uma nova vida feliz outra vez. Família rica, pensei. Finalmente uma sorte pra mim. Tomara que meus 4 irmãos também tenham uma vida confortável como eu.
Uma vez, quando fui fazer meu xixi não encontrei nenhum jornal jogado por aí como estava acostumado. Mas vi alguns papéis brancos jogados no meio da sala e fiz lá.

- Minha lição de casa!! - ouvi um grito de taquara rachada no meu ouvido.

Era a garotinha de 12 anos que se chama Júlia. Percebi que essa menina é uma mimada, tudo tem que ser do seu jeito. Consegue sempre o brinquedo que pede. A mãe dela, Sara veio me falar:

- Cachorro mau!! Isso não é lugar de fazer xixi. Ali é o lugar. - Sara apontou para uma caixa de areia.

Não me simpatizei com essa caixa, mas logo fui acostumando. Ridículo. Mas sempre achei que a caixa de areia e o papel branco jogado no chão eram a mesma coisa para fazer meu xixi.
Comida?? Nunca mais!! Agora é ração canina que tem um gosto enjoativo. Duro para se mastigar. Quando olhei o bife que deixaram no prato em cima da cadeira da sala que deixaram lá sozinho. Fui lá e roubei. Recebi batidas embaixo do meu rabo. Envergonhoso.

- Só ração que você tem que comer - gritou Sara.

Mas tinha dias que eles esqueciam de colocá-la no meu pratinho.
Sabe... sinto saudades da antiga casa. Mas ela está bem longe agora.
Onde durmo é uma casinha de cachorros com um lençol velho e rasgado. Que fica no quintal. Passo inverno, verão, outono e primavera dormindo lá.
Completei 1 ano. Mas parecia que ninguém estava ligando.
Toda vez que lato para os passarinhos que roubam minha ração, eles me amarram no sol com água quente e ração. Dá vontade de gritar. Isso é castigo por eu ter apenas latido para os passarinhos ladrões - de - ração?
Um ano e meio...
Meus donos compraram um gato branco angorá. Um gato feio, todo limpinho e peludo. Tentei brincar com ele, mas ele me arranhou. Então lati pra ele. Julia chega nessa hora e em vez dela me defender pelo gato ter arranhado eu, mas não. Ela falou:

- Pare Frevo!! Saia daqui!! Vem Fluffly.

Fluflly?? Ainda bem que não estou na pele dele para ter um nome desses, que constrangedor. Fui para o quintal e vi Sara pendurando roupas no varal, fui agradar ela, mas ela falou:

- Sai daqui, senão você arranca minhas roupas lavadas do varal. - disse ela.

- Se ele ficar aqui dentro, vai brigar com Fluffly - gritou Julia do quarto dela.

- Então vou ter que amarrá-lo.

Fazer o quê?? Sou o único que apanha nessa casa. Quem devia apanhar era aquela menina enjoada. Tive que ser amarrado como sempre. No sol, comida e água quente. Fiquei com raiva. Chorei, lati, uivei. Até que apareceu Paulo (pai da Julia) com os chinelos dele e fui apanhado. Prefiro pular a parte da imensa dor. Eu só quero atenção! Protestei... Mas o que adianta? Sou apenas um cachorro injustiçado nessa vida cruel. Preferia ter ficado no meu antigo lar da dona Maria com meus irmãos. Pelo menos lá sou feliz. Agora nessa casa tenho que ficar amarrado o dia todo sem ao menos ter um advogado. Que tédio.
No dia seguinte me levaram dentro do carro. Será que alguém de cima me atendeu sobre eu querer ter atenção? Paramos na rodoviária. Julia abriu a porta e eu sai correndo do carro para brincar com ela lá fora. Só que nem ela nem Paulo e Sara sairam do carro. Eles fecharam a porta e voltaram para a casa. Achei que eles tinham me esquecido lá. Tentei correr atrás deles latindo, mas eles não pararam. Fiquei cansado e parei.
Uma semana depois, sozinho na rodoviária com um monte de gente esquisita. As vezes recebia comida de algumas pessoas que me olhavam com pena. Agradecia elas abanando o rabo. Não queria nem saber se as comidas estavam envenenadas, porque na fome vai tudo. Mas ficava muitos dias sem comer e beber. Bom... eu bebia até poça d'água.
Passei perto de uma escola infantil. Havia 3 meninos sentados na calçada, fui até eles para ver se ganho comida mas eles começaram a tentar jogar pedra em mim:

- Vamos ver quem acerta aquele cachorro? - falou um dos garotos.

Tentei fugir, mas uma das pedras me atingiu no olho. Agora fiquei cego por um olho.
Meu olho doía demais, mal podia enxergar com o outro. E cada dia que passava piorava o olho. Tentava me proteger do sol indo nos jardins das casas ali por perto, mas os donos dos jardins me espantavam com ameaças de vassouradas. A coisa não podia ficar pior. Um veterinário passou perto de mim e me levou ao seu consultório. Lá ele me alimentou me deu banho. E me levou para me curar na sala dele. Deu-me uma anestesia e fechei os olhos. Só escutava o que ele e uma enfermeira falavam:

- Coitado desse cachorro, não tem nada que você possa fazer? - perguntou a enfermeira.

- Não. Infelizmente não. Mas... acho que tem uma escolha. - disse o veterinário

- Qual?

- Ou ele vai ficar sofrendo e piorando até morrer ou aplicarei uma injeção para que ele tenha o descanso dele.

- Você vai matá-lo? - perguntou a enfermeira assustada.

- Ou isso ou o pior pra ele.

Então o veterinário aplicou aquela injeção e adeus vida cruel. Morri. Fui ao um lugar bonito, branco. Lá encontrei mamãe e meus irmãos me esperando para brincar. Agora sim estava em paz. Talvez aquela família não merecia ter um cachorro. Talvez eu fui para uma vida errada. Ou foi apenas meu destino. Agora meus olhos estão inteirinhos. Agora estou no céu

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