De Estranheza
A ilusão que Harry criara de que aquele momento duraria para sempre se quebrou quando Bichento, pensando que sua dona estava sendo atacada ou coisa do tipo, saltou do encosto da poltrona na cabeça do garoto. Harry não sabia disso, é claro, mas o gato tinha sempre a mesma atitude quando era Rony quem estava beijando Hermione. O rapaz soltou uma exclamação de espanto e sacudiu a cabeça com violência, lançando o gato sobre a mesinha entre duas das poltronas e derrubando com estrépito um vaso de barro, que partiu-se em vários pedaços ao espatifar-se no chão.
- Não, Bichento - murmurou Hermione, abaixando-se para pegar o gato no colo. Levantou-se sem olhar para Harry, parecendo repentinamente interessada no pêlo do animal, que acariciava com muito mais força do que seria adequado.
Ficaram os dois parados, um metro de distância entre eles e muita tensão no ar. Harry não tinha certeza do que deveria dizer, mas sabia que precisava falar algo.
- Desculpe - Harry disse afinal, embora soubesse que não estava nem um pouco arrependido. Fizera exatamente aquilo que vinha desejando desde... muito tempo. Ele não tinha certeza de quanto. - Eu realmente... Desculpe.
Hermione não disse nada durante alguns instantes, os olhos ainda fixos em Bichento sabendo que Harry a fitava intensamente. Então o gato se irritou de vez com o colo da garota, e dando uma mordida nada amigável no dedo indicador de Mione saltou para longe dela, e seus olhinhos felinos brilharam sob a fraca luz da lareira.
- Ok. - Hermione disse, de repente, e Harry franziu o cenho.
- Ok?
- É.
- Não vai me bater ou coisa do tipo? - ele indagou.
- Não - E ela disse algo com a voz tão sumida que Harry não conseguiu compreender.
- Como disse?
- Só... Só não faça de novo - Hermione disse, erguendo finalmente os olhos para ele. - Nunca mais, está bem?
Harry a encarou sentindo-se profundamente desconfortável. Queria dizer que não podia prometer isso, e que ela lhe pedisse qualquer outra coisa. Queria falar que na verdade não estava nem um pouco arrependido do que fizera, e que faria de novo e de novo se ela permitisse. Mas quando abriu a boca, essas palavras simplesmente evaporaram no ar.
Ele suspirou profundamente, e deu alguns passos na direção de Hermione. A garota arregalou os olhos e, mais do que depressa, caminhou para trás caindo sentada numa poltrona. Harry deu um sorrisinho sarcástico como quem diz "Não se preocupe, eu não vou atacar você", e então virou as costas e retirou-se para o dormitório masculino sem dizer uma única palavra.
***
As semanas que se seguiram foram realmente difíceis para Harry. Ele não conseguia olhar Hermione sem sentir um aperto terrível no peito, e todas as palavras presas em sua garganta estavam sufocando-o cruelmente. Por conta disso, o garoto não conseguia trocar uma palavra com a amiga sem ser hostil, e eles brigavam constantemente por todo tipo de besteira. Rony, evidentemente, não entendia nada.
- Francamente, não sei se foi você ou a Mione quem pirou - ele disse com uma careta quando estavam saindo da aula de Feitiços, na qual Harry e Mione haviam acabado de discutir furiosamente sobre o verdadeiro espírito do quadribol ("Um esporte violentíssimo que só aumenta a rivalidade entre as Casas! Dumbledore deveria proibir..." "Bom, só porque você não tem sequer a capacidade de permanecer montada numa vassoura por mais de cinco segundos..." "Para a sua informação, eu sei voar muito bem!" "Como uma pedra, você quer dizer").
- Você ouviu o que ela disse? - indagou Harry, ainda furioso. - Nunca ouvi tanta asneira na minha vida!
- Ok, Mione falou algumas besteiras, mas não precisa descontar em mim - defendeu-se Rony.
- Bem, a namorada é sua, não é?
- Sim, mas...
- Então talvez você devesse se ocupar de colocar um pouco de cultura esportiva na cabeça idiota dela! - Harry exclamou parecendo um pouco fora de si, e antes que Rony pudesse dizer qualquer coisa o garoto apertou o passo e desapareceu entre os outros alunos.
E esse quadro não variava muito de um dia para o outro, o que tornava a companhia de Harry e Hermione juntos praticamente insuportável. Quem mais sofria com isso era Rony, é claro, que era o tempo inteiro instigado por cada um dos amigos a tomar partido nas brigas bobas que viviam começando.
Então, com a proximidade da primeira partida de quadribol da temporada, Harry passou a ter algo com o que realmente se preocupar. Os jogadores da Grifinória o chamavam de tirano pelas costas, o que não estava muito longe de ser verdade. Já que precisava descarregar sua raiva e frustração em alguém, por quê não fazer seu time de válvula de escape para seus tormentos?
Naquela noite, após o treino definitivo para a partida do dia seguinte, Harry demorou um pouco mais no chuveiro do vestiário do que de costume. Com os olhos fechados deixou que a água quente escorresse por seu rosto, e desejou que pudesse lavar também sua alma. Porque se sentia muito sujo por dentro. Podre. E estava muito ferido. Como um pássaro que tem um pedaço de graveto preso entre as penas da asa, desferindo bicadas em todos que tentavam se aproximar.
Mas havia uma pessoa, em especial, que não tinha qualquer receio de se aproximar dele. Ela estava esperando sentada no banco do vestiário, com um sorrisinho indecifrável no rosto. Harry levou um susto quando a viu, pois achava que estava sozinho e saiu do banho sem enrolar a toalha em volta da cintura.
- Não precisa ficar tão envergonhado - Gina disse revirando os olhos. - Até parece que eu nunca vi antes...
Harry fechou a cara para a garota, sentindo que suas bochechas estavam mais vermelhas. Ignorando a piadinha dela, tratou de enrolar-se decentemente na toalha de banho.
- Espiar homens nus no vestiário não é uma coisa muito respeitável para uma garota de família fazer - Harry disse displicente, vestindo sua roupa de baixo.
- E você realmente acha que eu perderia o meu tempo fazendo isso? - indagou Gina com uma risadinha. - Só queria dar uma palavrinha com você, antes de voltar ao castelo.
- É mesmo? - Harry perguntou desinteressado, passando os braços pelas mangas da camisa branca do uniforme.
- É. E, em primeiro lugar, deixe que eu lhe dê um conselho: você faz um péssimo papel tentando ser sarcástico, portanto é melhor melhorar essa cara rabugenta. Está pior do que o meu avô, e ele tem quase noventa anos. - Gina levantou-se displicentemente e aproximou-se de Harry, que estava tendo grande dificuldade para abotoar sua camisa, como de costume. - Eu faço isso.
Harry observou Gina abotoar calmamente cada botão da sua camisa com uma careta de reprovação.
- Sabe, você não é mais minha namorada, portanto pode deixar que eu abotôo minha própria camisa - Harry falou, rabugento, e afastou-se bruscamente da garota.
- E isso é realmente uma sorte, porque se fosse, eu daria um bom chute na sua bunda de novo. Você não faz idéia de como está ficando insuportável conviver com você... Ou será que faz? - perguntou Gina com um suspiro.
- Eu não sei se você sabe, Gina - Harry disse com falsa tranqüilidade, enquanto tentava deixar seu cabelo menos pior diante do espelho. - Mas fora do seu mundinho de conto de fadas, as pessoas têm problemas e... Bem, a vida não é nenhum moranguinho cremoso.
- Oh, falou a última das criaturas do planeta - caçoou a garota.
Harry lançou um olhar assassino a ela pelo espelho.
- Afinal, o que diabos você quer comigo?
- Só conversar - a garota falou encolhendo os ombros.
- Claro - resmungou Harry, e desejou que Gina deixasse de ser tão metida e inoportuna. Apanhou a goles que alguém deixara sobre o armário e abaixou-se para guardá-la na caixa junto com as outras bolas, totalmente consciente de que a garota acompanhava cada movimento seu.
- Eu sei porque você está agindo feito um estúpido - Gina falou de repente. - É porque você gosta da Hermione, mas não pode lutar por ela porque já está se sentindo cretino o bastante por tê-la beijado e traído o seu melhor amigo.
Harry virou-se para Gina, furioso.
- Escute aqui - ele disse. - Por que você acha que todo esse lixo é tão importante para mim? A Hermione não é a única garota do universo, afinal.
- Oh, mas é a única garota do seu universo. É a única que você quer, não é?
Harry fechou a cara para ela, recusando-se a responder. Vestiu seu casaco rapidamente, e sentou-se ao lado da garota para calçar os tênis.
- Ela realmente gosta dele, não gosta? - o garoto perguntou com um suspiro cansado.
- Gosta - Gina falou. - Mas não tanto quanto ela gostou de você.
- Você só está dizendo isso para que eu me sinta melhor - resmungou Harry.
- Decididamente não, e você sabe que eu não me daria ao trabalho de fazer isso - Gina falou. - Foi a própria Hermione quem me disse.
O garoto ergueu as sobrancelhas, não muito certo se deveria acreditar naquilo.
- Ela gosta do Rony agora. Essa é uma batalha que eu já perdi - ele concluiu desanimado. Levantou-se e apanhou sua mochila velha.
- Como diz o papai, você perdeu algumas batalhas, mas não a guerra - Gina disse com um sorrisinho.
- Besteira - Harry retrucou, e então parou diante da garota, encarando-a com bastante desconfiança - Espere um momento... Por que você está tentando me incentivar a roubar a namorada do seu irmão?
- Eu não agüento mais ter que suportar você despejando o seu mal humor na gente durante os treinos - Gina falou com simplicidade, e Harry não ficou nem um pouco convencido. - E antes que eu me esqueça - a garota puxou-o pela gola da camisa e deu-lhe um beijo rápido nos lábios, fazendo os cabelos de Harry se arrepiarem ainda mais. - Pense nisso como uma recordação dos velhos tempos.
E com uma piscadela saiu do vestiário deixando um Harry bastante abobalhado para trás.
- Garotas... - resmungou, atônito.
***
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