Único



Tudo acontece quando você acorda, e percebe que estava dormindo há muito tempo.

Primeiro abre os olhos, uma, duas vezes até que eles se acostumem com a claridade irritante do lugar.

E é claro. Muito claro.

Você tenta mexer os pulsos, mas percebe que eles e seus tornozelos estão atados a algum tipo de cama. Muito dura, aliás, tão dura que você começa a entender por que suas costas doem, e doem muito.

Tanto que você percebe que estava dormindo há muito, muito tempo mesmo.

A única coisa que você consegue enxergar antes de fechar os olhos novamente é o branco.

É tudo branco, e muito branco.

E então você sente fraqueza de tanto tentar fazer força, você se cansa, e mesmo contra a sua vontade seus olhos fecham. E não se abrem novamente, porque você esta em estado de completa exaustão.


_-_



Quando você abre os olhos outra vez já não está tão mal.

Você vê a sala branca, mas a claridade já não agride seus olhos de maneira tão brutal.

A garganta está seca, parece que não bebe água há dias. De repente a sede se torna insuportável, e você se debate porque precisa de água, porque sente que se não beber água você vai morrer.

Seus pulsos doem e você faz força para que as tiras de couro cedam. Elas parecem querer cortar seus pulsos e tornozelos, porque quanto mais você se mexe, mais elas apertam.

E então você escuta um “click” de porta se abrindo.

Pânico

Desespero

Você quer que a pessoa que passou pela porta lhe dê água, mas não consegue pronunciar nenhuma palavra. E você arruma a desculpa de que é por culpa da garganta seca.

Alguém finalmente entra no seu campo de visão.

É uma mulher velha, com os cabelos presos em um coque apertadíssimo, os cabelos brancos se misturam com os negros deixando ela com uma aparência cinza. As feições são rústicas, duras, austeras. Usa óculos, pequeno e oval, quase esconde os olhos castanhos.

Você se agita mais ainda para que ela entenda sua agonia.

Mas ela lhe ignora, deliberadamente.

Ao invés de lhe dar água, ela aponta um pedaço de madeira para seus olhos, e da ponta dele sai uma luz ofuscante.

Quase lhe cega, mas ela não liga.

Então faz sinal para mais alguém entrar, fala alguma coisa, mas você não consegue entender o que ela diz.

O “alguém” aparece.

É um homem forte, pele morena e cabelos negros perfeitamente penteados para o lado.

E a mulher sai.

E você percebe que o homem está vestindo branco, assim como a velha que saiu.

Você se mexe, muito. Se debate até as tiras de couros quererem que a sua circulação seja cortada.

Alguém precisa lhe dar água.

Então ele desaparece, e você quer gritar, já sente uma pressão quase insuportável das tiras de couro, a qualquer momento elas vão cortar seus braços e seus tornozelos.

Você quer gritar.

Grita.

Mas o grito não sai do jeito que deveria.

Você quer dizer que está com sede, mas não consegue. Não consegue dizer uma palavra sequer.

Só gritar.

Então ele aparece outra vez, abre sua boca e finalmente lhe da água.

Em um primeiro momento parece que sua boca está em chamas, e que o líquido que desce pela sua garganta é feito de brasa.

Os olhos ardem, e você sente lágrimas escorrerem pelo canto.

Mas logo para, e você sente a sede se acalmar. E já percebe que você está bebendo água.

O homem sai, e volta com um vidrinho amarelo. Ele força o líquido, porque você não quer tomar. É viscoso e amargo, mas ele é mais forte que você. E no fim você engole.

Uma, duas, três, quatro vezes e suas pálpebras se fecham. Você não consegue deixar seus olhos abrirem porque se sente relaxada, e resolve se entregar.

E fecha os olhos.


_-_



Você pisca.

Uma, duas, três vezes.

A cama já não é tão dura. Já não existem tiras de couro amarando seu corpo.
Mas em pouco tempo você entende que as tiras não são necessárias, porque você está tão fraca que não consegue se mexer.

E logo aquele homem moreno aparece outra vez.

Ele trás um líquido violeta.

Você não quer beber, porque lembra que bebeu o amarelo e não gostou.

Mas ele não liga.

Ele força. Você bebe e dorme.


_-_



Dessa vez você já está mais forte. Por conta disso consegue apoio dos braços para erguer seu corpo.

Depois de tanto tempo na posição horizontal você sente um alívio, e uma leve vertigem, mas ignora isso.

Sente conforto ao perceber que esta sentada.

Olha seus pulsos. Estão roxos, são as marcas das tiras de couro.

Você olha para frente e vê um biombo branco, assim como de um lado, assim como do outro lado.

O branco já começa a te dar nojo.

Seus braços estão finos, parecem gravetos. Frágeis. E você decide que não vai mais forçá-los, porque tem medo que eles se quebrem.

Passa as mãos pelo rosto. Sente ele fundo.

Algo faz o seu estômago despencar. Você passa a mão pela cabeça e percebe que seu cabelo sumiu.

E você tem certeza que tinha cabelo.

E que era bonito, e preto, e comprido.

Lágrimas correm descontroladas pelo seu rosto. Mas o cabelo não está lá.

Sumiu.

Então você grita, grita como antes.

Grita um grito sem palavras. Mas que é visceral, você sente que seu corpo chora junto com você.

E grita outra vez.

E mais uma.

Quer gritar até ficar sem voz, até as pessoas de branco devolverem seus longos cabelos negros e bonitos.

O homem moreno tira o biombo com violência. Ele está com uma cara brava, mas ele não entende.

Ele força seus braços e tira o líquido violeta do bolso da calça.

E logo, tudo o que você vê não passa de um borrão sem formas. E já não consegue gritar.


_-_



Toda terça-feira uma mulher vem visitar você.

Você não tem certeza de que é terça-feira, porque não tem nada entre os biombos que conte a passagem do tempo.

E você acha que é terça-feira simplesmente porque acha.

E não sabe se é toda semana. Mas imagina que seja.

Ela vem toda terça-feira. Sempre vestida de preto. Toda de preto. Usa um vestido preto, sapatos pretos, chapéu preto e um delicado véu também preto.

Véu esse que ela só tira na sua frente.

E então você vê os resquícios do que um dia foi uma mulher linda, mas que envelhecera muito, não tanto na idade física. Mas por dentro.

Você tem pena dela, porque acha que apesar de ela ter cabelos, ela é triste.

Quando ela chega bem perto você consegue ver pequenas rugas ao redor dos olhos e da boca.

Ela gosta de você. Você também gosta dela.

Principalmente porque ela lhe traz framboesas.

E é por isso que você a espera todas as terças-feiras. Pelas framboesas, e pela mulher também, mas principalmente pelas framboesas.

Você gosta de framboesas. Muito.

Gosta porque quando você come, escorre um líquido vermelho pelos seus lábios e mancha sua roupa (que é branca) e os lençóis (que também são brancos).

Ela vê você comer, e depois que termina as framboesas ela quase chora.

Quase. Mas não chora.

É uma mulher triste, você vê pelos olhos.

Sempre vazios.

Sempre vazios.

Sempre vazios.

Ela põe o véu e vai embora, ela tenta dizer alguma coisa importante, mas
você não consegue entender.

Você escuta a voz dela retinindo dentro da sua cabeça, como se fosse um eco batendo em cristais.

Ela tem uma voz bonita, mas você não entende.

E isso é frustrante.

Angustiante.

E você sabe que ela sabe que você não entende.

E então ela fica frustrada também.

E você sabe que a voz dela sempre vai ser um eco dentro da sua cabeça.

Só um eco.


_-_



Um dia, um único dia outra mulher vem ver você.

E você não estava esperando ninguém, porque não é terça-feira.

E ela entra acompanhada pelo homem moreno que diz alguma coisa pra ela, e ela faz que não com a cabeça.

Então o homem moreno sai.

E ela olha pra você.

Ela tem olhos castanhos assim como os cabelos. E é bonita, muito bonita.

Não é como a moça as framboesas que era bonita.

Ela fica sem jeito, e você não sabe de onde, mas conhece ela.

Você senta na cama, porque é só isso que eles deixam você fazer.

Sentar.

Olha pra ela como quem pergunta, ela entende e morde os lábios. E você
acha estranho como é familiar o jeito com que ela faz isso.

Então ela entrega um pote. E você tem a esperança de que sejam framboesas, mas não são.

Tem cheiro de baunilha.

São biscoitos de baunilha.

São bons, mas você prefere framboesas.

Você come tudo sozinha, porque imagina que se ela trouxe pra você, é porque tem mais pra ela.

E quando você olha, ela está chorando.

Chorando muito. E você quer entender o que ela diz enquanto chora, mas não consegue.

Ela coloca as mãos sobre o rosto, desesperada.

E você sente vontade de chorar também, mas não sabe por quê.

Você quase chora. Quase.

E então ela passa as mãos no seu rosto.

E você tem certeza de que conhece aquelas mãos.

Ela fala, fala, fala, com os olhos escorrendo, logo inchados e vermelhos, mas ela não para de falar.

E então ela olha para os lados, como quem espreita.

Ela pega a sua mão e coloca alguma coisa nela, e fecha logo depois.

Ela sorri. Um sorriso bonito.

Abraça você, e você não sabe o que fazer porque nunca ninguém abraça você.

Então ela vira de costas como quem vai embora, mas não sem antes parar e olhar pra trás.


_-_



Depois de algum tempo o homem moreno finalmente abre o biombo que está na sua frente. E é como se ele abrisse as cortinas e você visse um mundo completamente novo.

Pessoas de branco, pra lá e pra cá, sempre ocupada.

Mas tem outras pessoas também. E elas usam branco, mas são como você.

Tem um homem loiro e desagradável que fica sorrindo o tempo todo. Você não gosta dele.

E tem um casal, eles sim são fascinantes. Você não sabe se gosta deles, mas um sorriso de uma lembrança distante se forma quase inconscientemente nos seus lábios.

E você ri.

Alto.

E mais alto.

Até que o homem moreno chega e fecha o biombo.

E você percebe que ele também não gosta de você.


_-_



Demora algum tempo, mas você vê que as pessoas não te olham nos olhos.

E isso é frustrante.

Você busca alguém, mas nunca tem ninguém.

“Você está sozinha” – troveja uma voz na sua cabeça. E você vê que olhos verdes dizem isso.

Você decide que odeia verde.

E é estranho, porque nunca escuta a voz de ninguém, só a dos olhos verdes dentro da sua cabeça.

Depois você entende por que as pessoas não te olham nos olhos.

Medo

Elas têm medo de você por algum motivo.

E você sorri por isso.

Sente o cheiro de medo no ar, é repugnante.


Tem só um rapaz. Um rapaz que você não gosta.

Você odeia ele.

Não gosta porque ele te olha nos olhos. Bem fundo. Parece querer te dizer alguma coisa.

Mas nunca diz, porque você desvia os olhos, desvia porque ele não precisa dizer.

Porque ele te olha como quem ri.

O menino de cara redonda e dentes tortos ri de você.


E é com os olhos dele que você vai dormir todas as noites. E você fica tão
aflita que passa as mãos por um cordão de prata com um único pingente. A única coisa que você tem que sabe que é sua. Só sua. A única coisa que deixam você ficar.

Trazido pela mulher dos biscoitos, que nunca mais voltou.

É um pingente que tem duas letras gravadas.

B. B.

Aquilo te conforta absurdamente.

Mas é frustrante.

Frustrante porque você não tem idéia do que significa.

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