Capítulo Único
Manhã de 30 de outubro de 1981. Em Godric’s Hollow, uma estranha figura aparece para tomar café-da-manhã com Lílian Potter.
O movimento na casa dos Potter começava cedo. Antes dos primeiros raios de sol aparecerem em Godric’s Hollow. A vida com um bebê eliminava a necessidade de despertador, era uma coisa que Lílian tinha aprendido desde o nascimento do filho há pouco mais de um ano. Em qualquer dia da semana, com sol ou chuva, seu pequeno Harry acordava antes do amanhecer pedindo o seu leitinho. É... Um filho era uma experiência maravilhosa, mas ninguém diria que fosse moleza... Ela reprimiu um bocejo, enquanto colocava o leite morno na mamadeira.
Tiago tinha ficado brincando um pouco com o filho, enquanto ela descia e preparava um café da manhã especial para os três. Eles mereciam, depois de tantos meses fugindo, comemorar o fato de estar há quase uma semana instalados em segurança na casa nova, protegidos pelo Feitiço Fidelius. Finalmente eles iam poder sossegar e fazer daquela casa um lar.
Depois do café, eles podiam sair para dar uma voltinha com Harry na vila...Comprar abóboras para a decoração de Halloween e um monte de doces. Mais tarde, preparar um almoço especial ... Depois, dar um trato nas flores do jardim... E quem sabe, plantar alguns vasinhos menores, para colocar umas flores na cozinha...
Distraída, ela comandava com a varinha o preparo do café, ovos, fritava o bacon e preparava panquecas. Do jeito que Tiago gosta... Ah, talvez devessem arranjar um cachorro para o Harry...
Então, de repente, quase caiu de susto. Ao olhar pela janela, perdeu o controle da varinha, quase derrubando toda a comida. Logo atrás da casa, no fundo do quintal, ela enxergou a figura meio dramática de Severo Snape, em pé. Magro e abatido, todo de preto, as vestes enfunando atrás de si com o vento, era quase um espectro, uma sombra materializada nos fundos da casa.
O susto só não era maior porque o mesmo Severo tinha aparecido na casa deles no dia anterior. Numa visita surpreendente, tinha se apresentado por ordem de Dumbledore e da Ordem da Fênix. Tinha ido avisar que eles estavam correndo perigo de novo, que teriam que fugir mais uma vez.
A história toda era muito estranha. Na véspera do Natal do ano anterior, ele mesmo, Severo Snape, tinha ido até a casa da irmã de Lílian, com um aviso muito semelhante: eles estavam sendo seguidos, vigiados, correndo perigo. Voldemort estava atrás deles e havia um traidor na Ordem da Fênix. E eles tinham ficado todos esses meses fugindo e se escondendo por causa disso. Agora, quando os três finalmente conseguiam se acomodar, lá vinha ele de novo!
A princípio, Lílian tinha ficado assustada. Ao contrário de Tiago, ela acreditava na sinceridade de Severo. E ele parecia tão preocupado... Parecia ansioso de verdade com a segurança dos três. Lílian achava que, se Dumbledore confiava em Severo Snape, eles deviam confiar também.
Mas agora eles tinham feito um Feitiço Fidelius para se proteger. E o fiel do segredo era Pedro Pettigrew, alguém da maior confiança, amigo de toda a vida dos dois. E o melhor de tudo: ninguém suspeitava que fosse ele.
Se Severo estava preocupado, era por algum tipo de excesso de zelo,que ela não conseguia entender muito bem. Ou talvez estivesse sendo manipulado pelo próprio Voldemort, querendo que ele pressionasse os Potter a abandonar a segurança de sua casa em Godric’s Hollow para se expor ao perigo de novo...
Mas o mais estranho tinha sido que, mesmo tendo mais uma daquelas discussões desagradáveis com Tiago, ele continuava insistindo. Tinha até mesmo voltado mais tarde, tentando dessa vez convencê-la sozinha, longe da presença do marido. E tinha deixado claro, numa espécie de confissão, que gostava muito dela!
Franziu a testa, prevendo problemas. Ao contrário do dia anterior, quando o rapaz tinha vindo para uma visita rápida, dessa vez ele não parecia estar de passagem. Parecia disposto a ficar. Com o corpo meio de lado, contemplando o horizonte, a claridade do amanhecer iluminando a cortina de cabelos pretos que voava sobre o seu rosto. A única coisa nele que se mexia era o seu cabelo, muito escuro e comprido. De braços cruzados sobre o peito, estático, ele parecia querer espreitar o perigo à distância, como um enorme cão de guarda, ou um gárgula nos fundos da casa.
Não ia demorar para que Thiago o visse, e os dois acabassem fazendo outra cena desagradável, como sempre. Sem pensar muito, Lílian resolveu colocar o café, pães, ovos, panquecas, suco... tudo numa bandeja e subiu. Ia mudar um pouco os planos para o café da manhã, servindo tudo no quarto. Depois, usaria seu jeitinho para convencer Thiago a sair e levar o bebê para passear. Saindo pelo jardim da frente da casa, de preferência. Não queria que aqueles dois homens se encontrassem e se ferissem mais uma vez.
Ela só desceu várias horas depois. Tinham comido uma boa refeição e brincado com o bebê. Ela dera banho em Harry, fazendo a maior farra junto com Thiago e, claro, tivera que tomar outro banho e trocar toda a roupa depois de toda aquela bagunça. Depois de acompanhar o marido e o filho até o portão de casa, voltou à cozinha. Da janela, ela pôde ver Severo de novo, exatamente na mesma posição. Saindo pela porta dos fundos, caminhou devagar até ele, com as mãos em concha protegendo os olhos do sol.
- Severo? Bom dia! O que está fazendo aqui fora?
- Observando. Vigiando... Esperando... – foi o máximo que ele conseguiu responder.
Ela deu uma boa olhada no rapaz abatido e de expressão impassível à sua frente. Em seguida, tocou de leve o ombro dele, convidando:
- Entre! Vamos, venha tomar um café...
Severo seguiu-a em silêncio e observou enquanto ela servia duas canecas de café e sentava à mesa, à frente dele.
- Então, Severo... Por que está aqui logo cedo de novo?
Ele não respondeu, franziu a testa, unindo as sobrancelhas e olhando fixo para o café em suas mãos.
- Você falou com o Potter? – Ele levantou o rosto e encarou-a, com um olhar ao mesmo tempo feroz e aflito.
- Sim, nós conversamos bastante sobre isso ontem...
Será que ele não percebia o quanto aquela insistência dele era estranha? Essa preocupação meio obsessiva, depois de tantos anos sem nenhum contato? Não eram mais amigos desde o quinto ano em Hogwarts. Perto da formatura, eles tinham voltado a conversar, mas muito longe da antiga camaradagem. Não dava para entender muito bem toda aquela ansiedade. Ainda mais quando ela se lembrava do Severo Snape orgulhoso dos tempos de escola, bem pouco afeito a demonstrações de heroísmo... E ele detestava Tiago!
Por que Dumbledore teria dado a ele esse encargo?
- Lílian! Tudo o que eu contei ontem foi muito sério! Você disse que acreditava... disse que tinha acreditado em mim! Vocês têm que fugir! Voldemort sabe onde vocês estão! Eu estava lá, ouvi quando ele disse isso para os Comensais mais íntimos!
Lílian empalideceu ao ouvir a última frase. A imagem dele como um Comensal da Morte, um agente duplo, era meio assustadora. Ela podia perceber o quanto a preocupação dele era real, mas tudo aquilo a intrigava cada vez mais. Por isso, acabou perguntando:
- Severo, me explica uma coisa... Como foi que você chegou nisso... Quero dizer, como é que você acabou nessa situação, um Comensal da Morte e Membro da Ordem da Fênix, uma espécie de agente duplo? O que aconteceu desde que a gente saiu de Hogwarts? Como foi que você acabou se tornando um espião de Dumbledore?
- Por que o interesse súbito por mim? – ele não conseguia controlar a exasperação.
- Qualquer homem que venha, como um cavaleiro medieval na sua armadura, tentar me proteger merece o meu interesse, não acha? Digamos que... eu quero conhecer um pouco mais sobre aquele que vem me trazer informações tão perturbadoras e me oferecer ajuda diante de um perigo iminente... – ela levantou a sobrancelha e usou um tom de voz tão firme que parecia uma pergunta absolutamente óbvia a se fazer.
Severo suspirou, demonstrando não entender muito bem aonde ela queria chegar. Mas pareceu conformado com a idéia de que teria que falar mais de si mesmo.
Começou contando, sem emoção e com a sua ironia costumeira, uma espécie de resumo da sua vida depois de Hogwarts: como as suas amizades o tinham levado a conhecer o Lorde das Trevas, o convite para que se tornasse um Comensal. Mas, conforme ele ia contando sua história, alguma coisa nele parecia mudar. Ele parecia reagir à atenção dela, perdendo um pouco daquela frieza que era o seu verniz costumeiro. Começava a demonstrar o desconforto, até um pouco de vergonha, ao contar algumas coisas. E ela reconheceu nele o mesmo menino perdido, inquieto e nervoso dos tempos de escola. Talentoso, sofrido, inteligente, angustiado. Alguém com quem ela se importava.
A história de Severo mostrava que, apesar dos erros que ele admitia ter cometido no passado, de todo o horror de que tinha participado, ele era um bruxo de valor. Severo tinha escolhido se tornar um membro da Ordem da Fênix. Ele tinha escolhido procurar Dumbledore, aceitado seu ajuda. Tinha escolhido arriscar sua vida ao aceitar o difícil papel de espionar Voldemort para a Ordem. Como Dumbledore sempre dizia, “São as nossas escolhas que revelam o que realmente somos”. As novas escolhas de Severo mostravam que ela estava certa quando enxergara algo mais naquele jovem bruxo que um dia fora seu amigo.
- E então? Satisfeita? - respirou fundo, para recuperar o controle. - Nunca dei tanta satisfação assim... – encerrou deixando a frase incompleta, tentando parecer irônico. A ironia era sempre um terreno seguro para ele.
Lílian era esperta o bastante para perceber que ele odiaria que ela demonstrasse pena.
- Você sofreu muito, Severo... Fez algumas escolhas bem erradas, mas é um homem bom... Como eu sempre achei... Fico contente que está agora na segurança do castelo em Hogwarts.
- Eu já lhe disse uma vez, Lílian... Não estou atrás da sua absolvição. Fiz minhas escolhas. Algumas foram certas, outras nem tanto. Não sou ingênuo, nem sou um homem bom como você diz... – ele agora se mostrava de novo desconfortável por ser o centro da atenção. Talvez por ter se mostrado mais do que pretendia. – O que eu quis ao vir até aqui foi avisar vocês do perigo...
Mas o pensamento dela estava vagando, longe, nostálgica. Aquele ali na sua frente, preocupado com ela, era o seu antigo amigo! Era o colega de escola, parceiro de estudos e das aulas de Poções. O garoto CDF, dono de respostas rápidas e humor sarcástico. Era o antigo Severo Snape, que ela agora reconhecia, e que tinha julgado perdido... Estava de volta, e agora era professor em Hogwarts...
- Você já pensou que daqui a 10 anos provavelmente você vai dar aulas pro Harry?
Ele respondeu com uma careta de desagrado. Continuava o mesmo... Detestaria qualquer manifestação de carinho ou de apreço. A sua maneira de demonstrar afeição era a angústia, a preocupação.
- Lílian! Por favor, fale sério comigo! Preste atenção no que eu estou dizendo! Por seu filho, então! Pela segurança dele, então! Eu estou falando sério! – sentiu o tom autoritário na voz, e então completou, em voz mais baixa: - Por favor...
- Severo... eu estava pensando, enquanto você falava... – respirou fundo e mordeu de leve o lábio inferior, parecendo receosa, antes de completar. - ... pensando em te fazer um pedido...
Ele, a essa altura, tinha se levantado, incapaz de controlar a ansiedade e a irritação, e andava de um lado para o outro na pequena cozinha. Enquanto andava, ele vigiava discretamente as reações dela, tentava decifrar a sua expressão.
- Vamos, Lílian, fale! O que você está pensando? – ele conseguiu perguntar, com uma voz que lhe pareceu firme e profunda. - Em quê?
- Em... várias coisas... – disse em voz baixa, e deu um suspiro. Levantando o rosto, encarou-o e sorriu de leve. – Em primeiro lugar, que eu fico zonza com você andando de um lado para o outro desse jeito. Sente-se.
Ele obedeceu sem contestar. Assim que ele se sentou, ela segurou a mão dele entre as dela, num gesto firme e carinhoso. Tinha acabado de ter uma idéia que lhe pareceu fantástica.
– E então, Lílian? O que você quer fazer? Diga. – ele perguntou num sussurro. - Diga, Lílian! Peça o que quiser... Não vou pensar mal de você por nada que me diga, prometo. E não vou recusar. Nada existe que você possa me pedir que eu não aceite fazer com absoluto prazer.
Aquela resposta era perfeita, na avaliação de Lílian.
- Eu pensei muito, Severo... E quero pedir a você uma coisa muito importante. Agora eu sei que você pode ser a pessoa certa...
- Sim?
- Eu quero que você me faça uma promessa, Severo... Quero que você me prometa que... Aconteça o que acontecer, Severo, eu gostaria que... eu gostaria que você me prometesse proteger o Harry.
Ele ficou pálido.
- Como é?
- Ajude a proteger o Harry, Severo! Eu sei que você pode fazer isso, ainda mais agora, estando em Hogwarts... Eu confio em você. A minha maior prova de confiança é lhe pedir isso, confiar a segurança do meu filho a você.
- Não é só porque ele é o meu filho e eu o amo mais do que tudo, entenda... Ele não é apenas o meu filho! Ele pode ser o único bruxo capaz de derrotar Voldemort de uma vez por todas, acabar com a guerra e o sofrimento! Ele não é importante só pra mim... Ele é importante para o mundo todo! Ele precisa crescer em segurança para conseguir ser essa pessoa especial... E eu e o Thiago não vamos poder fazer isso sempre... Podemos cuidar disso agora, que ele é um bebê... Mas no futuro, ele vai para a escola, e... Ele precisa ser protegido... mas precisa também aprender sobre o mundo, as ameaças e perigos que vão estar à espreita dele... coisas que você sabe quais são, porque já viu de perto.... ou já enfrentou tudo isso... Você conhece o perigo, Severo. É inteligente, talentoso... Em nome do amor que você disse que sente por mim, eu quero que você me prometa...
- Mas... mas... como assim? Você quer fazer um Voto Perpétuo?
- Não, Severo. Não gosto desse feitiço. É poderoso, com certeza, mas é determinista. Eu acredito no poder da escolha, no poder do compromisso. E nada é mais poderoso do que uma escolha, um compromisso, assumido por amor.
Ele a encarava em silêncio parecendo meio atordoado. Talvez estivesse surpreso pela súbita mudança no rumo da conversa, ou pela demonstração de confiança sem reservas dela. Provavelmente estava acostumado a ser sempre questionado, posto sob suspeita...Pensando nisso, ela ficou ainda mais animada com a idéia e com a explicação dos seus argumentos e continuou:
- Eu trabalhava no Ministério, você se lembra? Antes de tudo isso acontecer... de nós termos que fugir. Eu era uma Inominável. Trabalhava no Departamento de Mistérios. Por isso, eu sei um pouco sobre as pesquisas sobre o amor. O suficiente para ter certeza de que uma promessa baseada nessa força tem muito poder... Eu sei que você tem essa força dentro de você, Severo... É em nome desse amor que eu quero que você me prometa. Prometa que vai protegê-lo, como se fosse a mim. Por mim. Prometa que fará todo o possível para protegê-lo do mal... E se, ou quando, for necessário... você o ajudará na missão que ele vai ter que realizar... Você pode me prometer isso?
Por um momento, nenhum dos dois disse nada. O olhar de Lílian estava fixo nele, ansioso.
- Eu prometo. – foi tudo o que ele conseguiu responder, quase num sussurro.
Severo Snape pediu licença logo em seguida e saiu. Lílian ficou ainda algum tempo parada, observando-o se afastar, através da janela da cozinha, enquanto terminava de tomar seu café. Aquele tinha sido um café da manhã muito estranho. Mas há muito tempo ela não se sentia tão segura como agora.
Comentários (1)
Amei *-*
2011-03-28