Único
Eu nunca quis ser bruxo. Na verdade, abomino qualquer tipo de feitiço idiota e inútil que só estimula a preguiça das pessoas. Talvez, por esse motivo, eu tenha me apaixonado pela arte de preparar poções. Tudo é muito mais real, físico, químico, reacional, intuitivo. Não é necessário balbuciar baboseiras quaisquer para ter um resultado mortal ou curativo. É o que é, sem luzes, raios, magia, como a vida.
Faz muito tempo que saí de Hogwarts e hoje me parece que tudo aconteceu em outra vida. Ocasionalmente me lembro da voz de Dumbledore, quando entrava em sua sala e via aquele maldito quadro. Deveria tê-lo aceitado como presente quando me aposentei, afinal, mas preferi deixá-lo com a profa. McGonagall. Creio que deveria nutrir uma espécie de amor platônico pelo professor. Eu não duvidaria.
E então me perguntam porque estou escrevendo este diário. Por mais absurda que possa parecer a idéia, estar sozinho neste castelo me fez ter vontade de escrever. De nada interessam todas as anotações que faço em meus pergaminhos a respeito das novas ervas que estou cultivando no jardim, pois não há alunos que possam ler. E sei que, mesmo quando havia, nenhum tinha interesse. Bando de idiotas, não sabiam o tempo que estavam perdendo.
Quando eu entrei em Hogwarts, o primeiro lugar que fiz questão de conhecer foi a biblioteca. Nunca tinha visto nada sequer parecido. Ela era enorme, cheia dos mais famosos exemplares de livros de magia que eu até então só tinha ouvido falar ou visto nas vitrines do Beco Diagonal, quando passava por lá com a minha mãe. Jamais tive condições de comprá-los. O único livro que tinha – e que obviamente tornou-se meu preferido – foi o “Estudo Avançado no Preparo de Poções”, que era da minha mãe. Gostaria de saber qual seu fim.
Logo na primeira semana na escola, recebi uma carta bastante decepcionada de minha mãe, quando soube que eu havia entrado para a Sonserina. Certamente ela esperava que eu fosse da Corvinal, sua casa, e a fama de Salazar nunca fora boa, obviamente. Pensando, hoje, nisso tudo, vejo como eu era jovem e ingênuo, até mesmo displicente. Se eu soubesse o que aconteceria alguns anos depois, com ela – e comigo, eu jamais teria saído de casa. Jamais teria ido a Hogwarts, onde meu destino foi traçado. Mas eu fui, e é sobre isso que eu gostaria de falar através destas palavras. Tenho total consciência de que uma penseira serviria, mas eu gosto de escrever. É como se as palavras percorressem todo o meu corpo, do cérebro até a ponta da mão, o que me envolve completamente na atividade. E é o que tentarei fazer aqui.
Meus pais estavam prestes a se separar quando minha mãe descobriu que estava grávida. Pelo que a ouvi contando a outras pessoas, fora uma gravidez problemática. Meu pai, com raiva, muitas vezes a trancava no quarto escuro, quando não queria ver seu rosto. E ela chorava, passava mal, desmaiava.
Eu nunca tive uma relação muito boa com o meu pai. Ele me tratava como se eu fosse um incômodo, um animal doente não desejado com o qual ele era obrigado a conviver. Poucas vezes me olhou nos olhos, mas foram nesses momentos que eu via dentro dele a mesma raiva que tive durante muitos anos, antes de vir para cá.
Pouco me lembro de meu pai na infância, porém, pois ele costumava ficar muito tempo fora de casa. Trabalhava em um navio, não sabia o que fazia. Talvez fosse marinheiro, carregador, enfim, profissões trouxas normais na Inglaterra. Só sei que ele chegava a passar meses fora, o que de certa forma fez com que minha mãe e eu ficássemos realmente próximos. Ela não tinha parentes por perto e eu jamais cheguei a conhecer meus avós, que morreram pouco antes de eu entrar em Hogwarts.
Nossa casa era simples, com poucos recursos. Minha mãe arranjava trabalhos ocasionais para poder me sustentar, e freqüentemente eu a via chorando sentada à mesa da cozinha, com a luz apagada. Uma vez, quando pequeno, perguntei porque ela estava daquele jeito, mas ela não me respondeu. Parou de chorar, limpou o rosto e me colocou para dormir. Nunca mais perguntei nada.
Os piores dias eram quando meu pai vinha para casa. Eu sinceramente não sei o que ele fazia lá, já que odiava minha mãe e eu. Eram dias horríveis. Ele bebia e batia muito nela. Eu tinha medo, quando criança, e ficava sentado no mesmo quarto escuro que minha mãe, quando estava grávida, ficava, e chorava. Eu não suportava aquilo, mas não fazia nada. Uma palavra me vem em mente: covarde. Mas eu não sabia. Eu cresci daquele jeito.
Um dia, quando eu era mais velho, apontei a varinha para o meu pai. Eu estava pouco me importando se seria expulso da escola por fazer magia em casa, mas aquilo tinha que acabar. Eu o odiava, poderia matá-lo. Lembro do horror no rosto da minha mãe quando surgi na cozinha, enquanto ela estava esparramada no chão, depois de ser agredida. No entanto, quando nossos olhos nos cruzaram, senti que ela esperava aquilo há muito tempo, que ansiava por aquele momento em que eu a salvaria. Um misto de decepção e impotência se passou pela minha mente. Não consegui fazer nada. Meu pai me agrediu e eu desmaiei. Tudo o que ouvi foi minha mãe gritar meu nome antes de receber um chute no estômago, e acordei dias depois.
Eu estava esquisito quando despertei, então. Algo havia mudado. Eu sentia raiva, muita raiva, da minha mãe, por ela nunca ter feito nada. Ela era uma bruxa, formada em Hogwarts, e se deixava agredir por aquele trouxa estúpido. Eu não conseguia entender.
Durante dias, ela tentou me fazer comer ou conversar, mas eu sentia nojo. Não queria vê-la nunca mais. Lembro-me do dia em que Dumbledore foi até a minha casa, conversar comigo. Fui um idiota, um perfeito adolescente metido a rebelde, fazendo piadinhas com o que ele me dizia. Eu só queria que alguém, no fundo, me entendesse. Mas como poderia dar amor, se amor era algo que eu pensava jamais ter tido? E Dumbledore foi embora, com aquele olhar decepcionado que somente os que já o receberam podem saber como é.
Fiquei sem conversar com a minha mãe até as aulas recomeçarem, apesar de ela me trazer comida todos os dias na cama, com um olhar de súplica. Pobre mulher. Eu estava me tornando um homem igual ao meu pai, e não via isso. Ela deve ter percebido.
Meu quinto ano em Hogwarts fora, como sempre, um desastre. Não com relação às aulas, obviamente, mas com todo o resto. Nas férias, fiz questão de permanecer na escola e estudar. Minha mãe me mandava corujas quase que diariamente, mas eu jamais a respondi. Se querem saber, cheguei sequer a abrir as cartas. Preferi me fechar e ignorar tudo, estudar. Naquelas férias, o prof. Slughorn me passara preparos avançados de poções e era tudo o que eu fazia, durante o dia inteiro. Quando outubro terminou, porém, recebi um bilhete de Dumbledore para que fosse conversar com ele em sua sala. Foi a primeira vez que entrei na sala do diretor, em seis anos que estava em Hogwarts. E foi ali, naquela noite, que ele me contou que minha mãe havia morrido. Assassinada. Por Voldemort.
Aparentemente, fora encontrada discutindo com o meu pai na porta de um bar trouxa, onde ambos foram mortos. Não senti pena do meu pai, nem remorso. Era como se qualquer pessoa comum tivesse morrido. Lembro-me da cara de Dumbledore, esperando alguma reação de minha parte, quando soube da notícia. Mas eu não sabia o que pensar. Não senti tristeza, nem vontade de chorar. Fiz com a cabeça um sinal de agradecimento e saí da sala, deixando o velho parado como estátua, com uma interrogação na cabeça.
Fui para o meu dormitório e dormi, dormi e dormi. Não fui para a aula no dia seguinte e ninguém veio me atormentar por causa disso. Provavelmente, por influência de Dumbledore. E não que eu tivesse amigos para conversar comigo. Foi bom, enfim, ficar o dia inteiro sozinho, sem ter que olhar para a cara de certos idiotas que jamais se importaram com alguém. Tal qual minha surpresa, por fim, foi receber uma coruja no final do dia, de Lily Evans.
Severo Snape faltando à aula de Poções? Aconteceu alguma coisa muito errada.
Por favor, dê notícias.
L.E.
Senti um calafrio por todo o corpo. Alguém, afinal, se preocupava comigo. Me deu até vontade de levantar da cama e ir passear no Salão Principal com um sorriso no rosto, mas em seguida me senti um monstro, por tudo o que havia acontecido. Eu me sentia mal por estar sem sentimentos. Estava tudo confuso – eu não sabia o que pensar, com relação à morte da minha mãe. Sentia, se querem saber, uma certa sensação de alívio... Por tudo ter acabado e ela finalmente estar livre, e eu também. A tristeza, como eu bem aprendi com a vida, é cumulativa. Naquele momento, eu estava ok. No ano seguinte, um pouco pior. E assim por diante.
A cada dia que se passava, eu tinha certeza de que nada mais me restava neste mundo a não ser a morte. Mas tinha medo de morrer. Eu fui, então, para onde o destino me levou: o Lorde das Trevas. E só eu posso saber o que me levou a fazer aquilo, mesmo depois da morte de minha mãe pelas suas próprias mãos. Isso eu ainda não estou preparado para escrever, porque até hoje não entendo como estive preparado para vivenciar.
E foi nessa hora, de verdade, que terminou a minha vida. Se eu pudesse descrever a morte, teria feito com as palavras escritas acima. Não temo a morte hoje, porque sei que não se pode morrer se já está morto. E a minha morte, lenta e dolorosa como as piores, começou, ironicamente, no dia em que me tornei seu Comensal.
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