A menina de olhos escuros

A menina de olhos escuros



Tudo aconteceu em menos de um minuto.

Pontualmente às cinco da tarde de 15 de novembro de 1977, o guarda atravessou o salão de audiências no subterrâneo do Ministério da Magia inglês. Era uma enorme sala circular com o teto muito alto. Só o centro estava iluminado, revelando uma cadeira de ferro com correntes para prender os prisioneiros pelos braços e pernas durante os interrogatórios.

Ao redor do círculo de luz se erguia uma pequena arquibancada em forma de arco. Na penumbra, era possível ver apenas vultos e pequenos pontos brilhantes em meio ao burburinho de sussurros e cochichos.

A pesada porta de ferro no fundo da sala foi aberta e por ela entrou outro guarda conduzindo, algemado, o professor Ernest Brown, 28 anos.

Não que ele fosse considerado um preso perigoso. O franzino e inexpressivo professor estava tão abatido que dificilmente representaria qualquer perigo para qualquer um. Mas as algemas incrementadas com feitiços defletores que impediam o algemado de executar qualquer tipo de magia se justificavam por ser ele um acusado de crime de "alta traição". Encarcerado havia dois meses, Brown falaria pela primeira vez em juízo para um tribunal formado por membros da Assembléia Internacional dos Bruxos.

O guarda caminhou com o preso em direção à cadeira, onde ele se sentou sem relutar, bem de frente para o Chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia, Bartolomeu Crouch, que deveria dirigir o interrogatório. Ao seu lado, o assistente Cornélio Fudge, agente júnior do ministério, preparava a pena de repetição sobre um pergaminho.

Acima dos dois, na arquibancada, estava um pequeno público de advogados bruxos e os honoráveis da Assembléia. Os lugares mais altos eram ocupados por pouco mais de meia dúzia de moças e rapazes usando vestes negras com o emblema da Universidade Bruxa de Direito de Edimburgo. Se qualquer um ali tivesse tido o cuidado de olhar mais atentamente para os universitários, perceberia que eles estavam um tanto quietos demais. Mas a essa altura as atenções estavam completamente voltadas para o preso. Fazia mais de vinte anos que não se levava a julgamento um caso como aquele.

Os guardas ataram as penas de Brown à cadeira e se posicionaram um de cada lado do preso, estufando os peitos diante das autoridades. O que trouxera Brown anunciou:

— Apresento o preso Ernest Brown.

Logo em seguida, ele viu seu colega cair no chão desfalecido e só teve o tempo de olhar ao redor antes de perceber algo pontudo sendo apertado contra suas costas. Sob a luz fraca da sala, ele pôde distinguir as feições do agressor: era uma jovem, de cabelos negros e lisos e olhos sombrios. Ela sorriu mostrando os dentes muito brancos e ordenou:

Solte o preso.

Nas arquibancadas, os supostos estudantes se dividiram em grupos, disparando feitiços em todas as direções. Fudge caiu desfalecido, mas Crouch ainda teve a chance de apertar o botão que disparava o alarme de quebra de segurança antes de ser atingido pelo punho de um garoto enorme, de barba escura e cabelos cortados rente.

A jovem que comandava o grupo mantinha a varinha contra as costas do guarda enquanto ele abria as algemas de Brown.

Ela puxou o preso da cadeira e caminhou de costas em direção à porta, protegendo-o com seu corpo e gritando para seus companheiros:

— Para fora! Para fora! E vocês não se atrevam a mexer um dedo!

Os bruxos que permaneciam acordados foram colocados de frente para a parede e desarmados. Com gestos rápidos, a moça mandou que seus companheiros se apressassem e saíssem.

Cada um dos invasores saiu levando consigo um refém - um dos honoráveis da Assembléia - com o qual conseguiram passar tranqüilamente pelos vários corredores do Ministério até atingirem o saguão de entrada, onde os guardas já tinham sido rendidos minutos antes por um grupo de apoio.

Dezenas de funcionários do Ministério estavam sentados no chão, junto à fonte dos Irmãos Mágicos, com as cabeças apoiadas nos joelhos e sem as varinhas. A eles se juntaram os reféns que tinham estado no salão de audiências.

O bando já disparava para as lareiras, desaparecendo em meio às chamas verdes, quando a jovem com o preso chegou. Ela ordenou que outra garota, uma loira de olhos azuis aquosos, o conduzisse ao local combinado, e ficou no saguão até que o último invasor tivesse fugido.

Antes de ela mesma tomar o caminho de uma lareira, seu último grito ecoou, magicamente ampliado, pelo prédio do Ministério:

— E vocês se gabam tanto de seus aurores... Não conseguem nem impedir um bando de Comensais amadores de invadir essa espelunca!

E sumiu nas chamas esverdeadas dizendo apenas:

— Plataforma 9 ½!


--------------------------------------------------------------------------------


A jovem de cabelos negros saiu da lareira num canto da plataforma espalhando cinzas. O lugar estava lotado de bruxos que esperavam pelo próximo trem para Hogsmeade.

Ela tirou a capa preta e a atirou no fogo que ainda ardia, revelando um vestido azul muito elegante. Escondeu a varinha na bolsa branca de couro e correu para a passagem mágica que dava acesso ao mundo trouxa.

Procurando não andar rápido demais, para não atrair atenção, ela atravessou a estação King’s Cross e saiu numa Londres ensolarada de outono. Atravessou a rua e continuou andando pela calçada cheia de folhas avermelhadas, rua acima, até chegar a uma livraria.

Entrou com cautela, se preocupando em não tocar em nada e seguiu para os fundos, onde encontrou Ernest Brown, guardado por uma pequena escolta de cinco bruxos usando máscaras brancas. O preso estava tão atordoado que, mesmo completamente consciente, não ofereceria a menor resistência.

Sem dizer uma palavra, ela segurou o braço de Brown com firmeza e o conduziu para uma parede. Tirou a varinha da bolsa e, tocando lugares escolhidos do papel de parede gasto com a ponta, abriu uma passagem para um túnel escuro que descia numa escada em caracol.

Ela o puxou para baixo, girando um sem-número de vezes na escada, até atingirem uma porta de carvalho, que um dos bruxos mascarados abriu sem muito esforço.

Saíram novamente numa rua trouxa, à luz do sol de fim de tarde. Um táxi os aguardava com o motor ligado e as portas abertas.

A jovem atirou Brown, encolhido e assustado, no banco traseiro e entrou em seguida. Fez um sinal com as mãos e o motorista, um ruivo de cabelos crescidos até os ombros que tinha os olhos verdes perceptivelmente desfocados, arrancou pelas ruas do centro de Londres. Evitando trechos movimentados, o carro rumou em direção ao subúrbio.

Quando entraram na pequena e insignificante Sloane Street, a garota saltou, trazendo Brown seguro pelo braço esquerdo. O professor parecia enfim respirar aliviado.

Mas isso só durou até ele ver aonde a jovem o conduzia. Ele não pôde acreditar, tentou soltar-se, tentou gritar, mas foi em vão.

Seu corpo não estava mais obedecendo. Agia automaticamente, guiado por aquela adolescente de olhos negros e frios. Sem controle, seus pés pararam subitamente, no meio de um amplo terreno baldio cheio de mato e lixo.

As últimas coisas que Ernest Brown viu foram o sorriso da garota, os dentes brancos brilhando na luz tênue do pôr do sol, e o facho esverdeado que saltou da varinha dela.

Já tinha morrido quando seu corpo tombou no chão.


--------------------------------------------------------------------------------


Na manhã seguinte, o Profeta Diário noticiava em letras garrafais bem no alto da primeira página o ocorrido na tarde anterior no Ministério da Magia. A isso se seguiam três páginas inteiras narrando em detalhes a empreitada e anunciando o nome da jovem que comandara tudo: Bellatrix Black.


--------------------------------------------------------------------------------


Indiferente ao cerco que agora se armava em todo o país para prendê-la, Bellatrix tomava seu café com torradas, ainda de camisola, em sua pequena casa no subúrbio de Hogsmeade.

Em minutos estaria voltando a Londres, pegando uma carona no Expresso Hogwarts que levaria os alunos da mais conceituada escola de magia do Reino Unido.

Seus cabelos escuros já estavam caprichosamente transfigurados em fios castanhos, cortados na altura do queixo. Pendurado num cabide na porta da pequena área de serviço, um conjunto de vestes de Hogwarts muito bem passado o elfo doméstico deixara. A gaiola de sua coruja, Eckos, estava pronta ao lado do malão, arrumado para se parecer exatamente com o de uma aluna que voltava para casa após um longo período letivo.

Esperava conseguir alguma atenção dos alunos, especialmente dos sonserinos, para a causa da purificação da raça bruxa. Só para aproveitar a viagem, claro, a idéia de viajar entre os estudantes era um artifício para facilitar sua passagem pelas barreiras armadas por aurores na tentativa de capturar os Comensais responsáveis pelo incidente do dia anterior.

Observando a fotografia tirada do tribunal onde tudo ocorrera, Bellatrix pensou que pelo menos numa coisa o Profeta Diário estava certo: fora mesmo uma enorme ousadia dela liderar uma invasão ao prédio do Ministério da Magia. Mas ações ousadas não eram algo novo para aquela jovem de dezoito anos.


--------------------------------------------------------------------------------

N.A.:
Essa Bella foi inspirada numa personagem histórica real: Olga Benário, esposa de Luís Carlos Prestes.

Deixe um comentario n.n

Bel.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.