Capítulo único



Capítulo único


Podia inalar o cheiro adocidado de seu corpo presente no
lençol branco, ao mesmo tempo em que as baforadas do seu cigarro espiralavam
lentamente pelo ar. Hermione esticou-se na cama, tentando sentir os músculos, e
apenas fez com que o estrado sob si rangesse; soltou mais uma baforada cinzenta
do cigarro e, então, resolveu levantar. Estava tão cansada. Seu reflexo no
espelho revelou uma mulher magra e com uma aparência um tanto quanto doentia; os
olhos castanhos estavam envoltos em uma cor avermelhada. Talvez do álcool em
excesso. Talvez dos três maços de cigarro que ela conseguira fumar. Não sabia ao
certo. Os cabelos estavam emaranhados em desgrenhados cachos, emoldurando seu
rosto pálido e magro. Mas nada disso importava realmente; ela só prestara
atenção a uma coisa. As lágrimas que haviam secado em sua pele; o olhar perdido
e desiludido. É. Ela estava cansada.


Mas não cansada fisicamente; seu cansaço perpassava o
sentido real e verdadeiro da palavra. Ela estava psicológica, emocional e
espiritualmente cansada. Tinha uma extrema sensação de vazio dentro de si. Um
vazio que parecia não ter fim. Era aquele futuro que Hermione desejara para si?
Não... pensando agora, nada do que ela planejara, nada do que ela sonhara, de
fato acontecera. Ela apenas fora afundando lenta e pesadamente, até se encontrar
no fundo do poço, morando em um apartamento minúsculo, com ratos rastejando pela
tubulação, o telefone com a conta vencida, lâmpadas queimadas iluminando o
cômodo fracamente e lixo se amontoando a um canto da parede.


Não era aquela vida que ela queria. Mas era a que
pertencia a ela. Infelizmente, o futuro promissor de uma jovem e brilhante
estudante havia se perdido em um mundo de inseguranças e desilusões.


Hermione se encarou novamente no reflexo do espelho - a
superfície lisa um tanto quanto empoeirada - e uma lágrima brilhou em sua
pálpebra maquilada. Meu Deus, como ela conseguira chegar àquele ponto? Como ela
conseguira chegar a um ponto, em que ela não se reconhecia mais no espelho?


Ali estava apenas um corpo. Um corpo oco, vazio, sem
nada, nem ninguém dentro. Ali estava ela. Ela era aquilo. Ela era nada... nada.
Uma segunda lágrima reluziu pela pele alva de Hermione e desceu os dedos nodosos
à procura do copo que deixara no chão; o álcool chegou aos seus lábios seguido
de mais um trago de nicotina e ela aspirou ar de um modo quase desesperado,
suspirando pesadamente e deixando seu corpo cair na cama.


Malfoy... Draco Malfoy. É... ela estava com saudades,
mesmo tendo o visto no dia anterior. Mesmo sabendo que tudo entre eles acabara.
Ela estava com saudades. Como ela o amava. Deus, como se deixara envolver por
aqueles olhos prateados e sedutores.


As pálpebras pesaram e ela deixou que se fechassem, as
lembranças voltando à sua memória. O toque cálido sobre sua pele; lábios quentes
sobre os seus; os pêlos roçando em suas pernas enquanto os dois oscilavam um
ritmo único e repetido; ofegantes, uniam suas respirações em um único orgasmo. O
amor estava selado. Será mesmo? Ela o amava. Muito. Absurdamente. E era isso - e
somente isso - que a mantinha viva. Mas por quanto tempo mais ela agüentaria?


Por quanto tempo mais seus pulmões aspirariam oxigênio
dolorosamente sem reclamar? Por quanto tempo mais seu corpo resistiria a fome
sem perecer?



Por que você fez isso comigo? Por que você me abandonou
assim? Ou a culpa foi minha... não... a culpa não foi inteiramente minha. Nós
dois erramos. Nós dois nos deixamos levar por nosso erro; nós dois fraquejamos
juntos. Nós dois acabamos nos sufocando; assassinando nossa relação. Mas mesmo
assim... mesmo assim, se eu pudesse escolher. Eu com certeza estaria nos seus
braços agora... é... eu estaria com os dedos cerrados sobre a sua camisa, a
cabeça recostada em seu ombro, sentindo a segurança reconfortante que você me
passa.



Hermione levou mais uma vez o copo aos lábios e o gosto
amargo do álcool deslizou por sua garganta, corroendo-a suavemente. Ela tossiu,
amassando o cigarro no piso de madeira e decidiu tomar um banho. O banheiro era
a única porta sobrassalente no minúsculo cômodo, composto por um quarto, uma
cozinha ao lado e duas poltronas em volta de uma mesinha raquítica; sem paredes.
Mobília gasta e acabada amontoando-se no minúsculo espaço que não fora ocupado
por lixo ou comida estragada.


O banheiro não estava literalmente limpo; as gotículas
de água quente deslizavam pela parede, deixando um rastro incrivelmente mais
branco do que o azulejo acinzentado.


A água escaldante acariciou sua pele branca e ela fechou
os olhos, sentindo que seus lábios se uniam a outros. As lembranças estavam tão
presentes dentro dela... ela podia até sentir o cheiro do corpo dele...



- Eu te amo - ele sussurrou em seu ouvido, suavemente. -
muito...


- Mesmo?


- É...


- Por momentos, eu achei que só eu te amasse - disse
Hermione, a voz hesitante. -, quando você não demonstrava por gestos, ações e
nem palavras...


- Eu não queria que as palavras se tornassem banais -
murmurou ele. -, não queria que se tornassem coisas simples demais. Porque não
são. Eu te amo... três palavras que não expressam nem de longe o que eu sinto
por você... - Ele afastou os cachos desgrenhados do rosto dela, segurando-o
entre os dedos e beijou-a com paixão. - Me desculpe... - disse. - se eu não
demonstrei de alguma forma o meu amor por você... acho que esse sempre foi o meu
grande erro, não é? A minha frieza... a minha distância. Mas eu sou assim...
você sempre soube.


- Não vamos mais pensar nisso - disse Hermione,
encostando os seios nus sobre o peitoral dele e beijando-o mais uma vez. -, não
vamos deixar que isso abale nosso amor de novo. Por favor? Eu

respiro você.


Ele sorriu com suavidade, a pele alva retesando-se com
uma expressão de satisfação e alegria; seus dedos deslizaram pelos seios dela,
sua barriga, até encontrarem seu sexo. Assim, ele masturbou-a lentamente,
fazendo com que os sussurros e o intervalo de sua respiração ficassem cada vez
mais lentos, até que ela fechou os olhos abruptamente e estremeceu sob seu
toque.


Ergueu, então, os olhos para ele.


- Às vezes, eu queria que nossos momentos juntos fossem
eternos - ela disse. -, que jamais terminassem... que eu sempre pudesse encarar
os seus olhos e sentir que terei você... sempre...


- Eu queria que isso fosse possível... eu queria poder
estar sempre do seu lado. Mas... - Malfoy hesitou. - eu tenho uma família...
filhos...


- É.


Hermione desvencilhou-se e afastou-se alguns centímetros
dele, embora suas respirações próximas deixassem-na com uma enorme vontade de
deslizar os braços pelo pescoço dele e unir-se a ele. Mas era impossível.


- Você jamais poderá ser só meu, não é?


- Eu...


- Acho - começou ela, lágrimas brilhantes enchendo seus
olhos. -, que o melhor é você sair daqui... por favor, Draco. Por... favor...


Ele saiu do boxe do banheiro, o rumorejar das águas
ricocheteando contra o azulejo ecoando pelo banheiro e desapareceu pelo outro
cômodo. Hermione permaneceu ali, parada, ofegando com exaustão.


O último barulho que ouviu foi o bater da porta e,
então, uma luz muito forte cegou-a, seguida de uma escuridão. E ela sentiu que
seu corpo caía lentamente...



 



*-*


De tarde eu quero descansar, chegar até a
praia e ver


Se o vento ainda está forte


E vai ser bom subir nas pedras


Sei que faço isso pra esquecer


Eu deixo a onda me acertar


E o vento vai levando tudo embora



 


Agora está tão longe


Vê, a linha do horizonte me distrai:


Dos nossos planos é que tenho mais
saudade,


Quando olhávamos juntos na mesma direção


 


Aonde está você agora


Além de aqui dentro de mim?


 


Agimos certo sem querer


Foi só o tempo que errou


Vai ser difícil sem você


Porque você está comigo o tempo todo


 


Quando vejo o mar


Existe algo que diz:


- A vida continua e se entregar é uma
bobagem


 


Já que você não está aqui,


O que posso fazer é cuidar de mim


Quero ser feliz ao menos


Lembra que o plano era ficarmos bem?


 


- Ei, olha só o que eu achei:
cavalos-marinhos


Sei que faço isso pra esquecer


Eu deixo a onda me acertar


E o vento vai levando tudo embora


*-*



Abriu os olhos. A água já se acumulava no boxe,
enchendo-o. Ela desligou o chuveiro. Puxou a toalha ao lado e se enxugou da
maneira mais lenta possível; suspirou. O reflexo do espelho estava mais
apresentável. Os cabelos molhados haviam dado uma trégua, cascateando sobre os
ombros; os olhos castanhos reluziam sob a luz solar que irrompia pela janela,
iluminando fracamente o banheiro. Os lábios rosados demonstravam o mínimo de
vida que ainda restava naquele corpo. Mais ainda assim, era uma mulher sem
aspirações, sem esperanças. Sem nada que tivesse verdadeiro motivo para que
continuasse a viver.

A vida podia ser engraçada às vezes - ou quase sempre? -, pregando suas peças,
aprofundando em suas contradições. Questionando suas incógnitas que por vezes,
jamais teriam respostas claras; verdadeiras. Ainda assim, a vida conseguia ser
engraçada; quando o futuro mesclava-se em um passado aterrador... quando nada
parecia ter um sentido; quando tudo tendia ao tédio - ou à incompreensão? Ou à
solidão? Possivelmente. Ou nós que a complicamos? Talvez. Tudo é possível.
Inclusive voar. Sim; sonhos e ilusões, nem sempre são irreais. Sonhos e ilusões
podem, de alguma forma, reconfortar, quando só há a escuridão aterrorizante à
frente. Medo; medo da possibilidade. Medo do possível - e do impossível. Medo do
que viria a acontecer. Medo do futuro. Um futuro incerto. Um futuro talvez
idêntico, talvez diferente; entrelaçado a novas descobertas, novas conquistas?
Ou à mesma e repetida melancolia. Tudo é possível...

Hermione deslizou o pente pelos cabelos castanhos e, então, respirou mais uma
vez. O ar era sua esperança; aspirando-o, ela aspirava para si, esperança de
continuar. Vestiu uma roupa comum e sapatos e voltou para o quarto. Ainda havia
um maço de cigarro a ser fumado e uma garrafa aberta pela metade de uísque a ser
bebida.

Aquele cômodo estava impregnado de sua decadência; tudo era um grande amontoado;
tudo exalava a sua destruição.

Hermione ergueu a garrafa de uísque, colocando-a contra a luz para vez o líquido
âmbar reluzir. Deu três goles, sentindo o álcool descer queimando. E então
desistiu. Aquela não era a vida que decidira viver. Não queria - e não teria -
aquilo. Buscou algo sob a cama, tateando os dedos no piso empoeirado. Achou, e
buscou para cima, sentando-se na cama.

Era uma bolsa; abrindo-a, deixou com que vários frascos de remédios se
espalhassem pela cama. Abriu cada um, entornando as pílulas pela garganta,
seguidas de goles de uísque. A visão turva avisou-a que estava acabando...

Adeus, Malfoy...



FIM



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