SANGUE CHUVA E MORTE
Prólogo: Sangue, Chuva e Morte
Erick McDermontt era um homem velho. Seus cabelos já estavam brancos e seu rosto deixava visível as marcas da idade - as rugas, as linhas de expressão. Seus olhos já não enxergavam como antes, mas ele teimosamente resistia a ir ao médico. Não queria usar óculos. Estava velho e achava que era tarde demais para mudar qualquer coisa em sua vida.
Naquele dia, ele havia saído para ir à cidade. Precisava pegar a encomenda da ração para as ovelhas. Fazia isso toda sexta-feira, duas vezes por mês, há mais de dez anos. Morava em uma cidade pequena, praticamente um vilarejo, onde mudanças não eram comuns nem desejadas. Seus pais haviam morado na mesma casa em que ele morava hoje - não era muito grande nem muito confortável, mas servia. Foram eles que ensinaram Erick a cuidar das ovelhas. Sua família possuía aquela pequena fazenda de criação ovina há séculos. Literalmente, há séculos. Houve um tempo em que ele pensou em sair dali, em se mudar, em tentar a vida em outro lugar, mas isso era passado. Não, no fim, Erick acabou fazendo exatamente o que todos esperavam. Seus dias de rebeldia não duraram muito.
Agora, ele morava sozinho. Nunca se casara. Não tinha filhos, nem irmãos, nem sobrinhos. Finalmente, após a sua morte, a fazenda poderia passar para as mãos de outra família. Enquanto isso não acontecia, contudo, ele ia cuidando das coisas. Tinha a ajuda de um dos garotos da cidade que, sabe Deus por que, gostava de ouvir as histórias do velho homem e costumava trabalhar na fazenda. Na época da tosquia, claro, ele tinha que contratar mais pessoas, mas, fora isso, nunca havia muito trabalho. Era uma vida tranqüila, parada, onde cada dia parecia demorar uma eternidade para passar.
Naquele final de tarde, enquanto dirigia sua velha caminhonete vermelha pela estrada deserta, Erick olhou para o céu e as viu de novo: as nuvens que ele temia desde que colocara a ração no carro e saíra da cidade. Era uma tempestade que se aproximava e ele tentava chegar em casa antes dela. Precisava verificar se todos os animais estavam seguros e depois, verificar as janelas e tirar da tomada todos os aparelhos elétricos que possuía. Seus muitos anos de experiência com tempestades como aquela, contudo, lhe diziam que não haveria tempo suficiente para isso.
Antes que ele pudesse entrar com o carro na fazenda, a chuva desabou. Naquelas planícies descampadas, as tempestades possuíam a tendência de serem arrasadoras. A água caía com tanta força que era difícil para Erick enxergar o caminho. Ele estava dirigindo meio que às cegas, o céu estava escuro como se já fosse noite e o mundo era iluminado de quando em quando somente por um relâmpago que caía. Talvez se fosse um homem mais jovem e nunca tivesse visto o fenômeno antes, ele estivesse assustado, mas, velho como era, Erick já presenciara tamanha demonstração de força da natureza muitas outras vezes.
Ele estava sem sua capa de chuva, então não pôde evitar de ficar encharcado assim que saiu do carro, após estacioná-lo na porta de casa. Deu uma olhada rápida na direção do abrigo das ovelhas e, depois, arriscou fitar brevemente o carvalho - o temido carvalho. Fora aquela maldita árvore que lhe dera uma reputação ruim na cidade. Ela erguia-se imponente, bem no meio de sua propriedade e ainda assim Erick não tinha idéia de como isso acontecera. Num dia pela manhã, há praticamente onze anos atrás, ele acordara e a árvore simplesmente estava lá. Da noite para o dia.
Em uma cidade onde as mudanças são lentas e graduais, possuir uma árvore que cresce em menos de doze horas o que deveria levar anos para crescer não poderia ser bom sinal. E, ainda assim, lá estava o carvalho. Contra todas as possibilidades e explicações. Erick fizera de tudo. Um botânico viera estudar o fenômeno, dezenas de pessoas foram só observar, a árvore foi examinada de todas as formas possíveis e ninguém descobriu nada de errado. Pelo menos não até que tentassem derrubá-la: as serras manuais, o machado, qualquer ferramenta cortante que eles usassem quebrava assim que entrava em contato com a madeira. A serra elétrica simplesmente explodiu, ferindo três pessoas que estavam perto e, quando eles finalmente decidiram usar um trato, ele se descontrolou, bateu na árvore de lado ao invés de derrubá-la e o motorista morreu, atirado para fora do assento. Depois disso, eles desistiram. E Erick se conformou com os olhares estranhos que ainda recebia na cidade, mesmo tantos anos depois.
Ele tentava se convencer de que, para todas as coisas estranhas que aconteciam ao redor do carvalho, havia uma explicação racional, mas, no fundo, não acreditava nisso. Havia algo de muito estranho e muito errado naquela história toda. E os arrepios que ele sentia sempre que olhava para a árvore não ajudavam. Ele evitava encará-la, então, especialmente em dias assim, de tempestade, quando o diabo parecia soltar seus demônios no mundo, mas, naquela fim de tarde, sua curiosidade venceu o medo e Erick lançou um olhar na direção do carvalho.
Foi no momento exato. Com uma sincronia sinistra, um relâmpago caiu do céu precisamente sobre a árvore. Foi uma visão estarrecedora: céu e terra conectados durante uma fração de segundo por um fio retorcido brilhante. O tempo pareceu congelar e Erick recuou assustado. Tudo não durara mais que uma batida de coração, mas ele ainda ficou alguns segundos parado na chuva, todas as suas tarefas esquecidas enquanto ele esperava pela reação da árvore.
Nada aconteceu.
Aos poucos, a respiração dele foi voltando ao normal. O relâmpago passara e tudo estava bem no mundo. Exceto, talvez, pela árvore no meio da campina. Ela estava partida.
“Finalmente”, pensou Erick. Algo fora capaz de destruir o maldito carvalho. Seu corpo tremeu com um arrepio ao ouvir o barulho de outro trovão caindo ainda perto. Ele sabia que era loucura. Sabia que devia entrar para checar as janelas e as tomadas e as ovelhas, mas não conseguiu. Havia algo mais poderoso atuando ali. Atuando através dele. Erick se sentia compelido a ir até a árvore. Ele precisava ver o estrago. Precisava saber o que tinha acontecido.
Foi nesse momento que ele a viu. A planície acabara de ser iluminada mais uma vez por um raio. Erick ainda tinha os olhos grudados no carvalho. Num momento, não havia nada e, no seguinte, lá estava ela. Delineada contra a noite, a silhueta de uma mulher. Ela parecia branca, quase translúcida e estava nua, de pé, parada, reta, com as mãos unidas na frente do corpo, emanando uma onda de tristeza quase palpável. Parecia um fantasma.
Erick sabia que deveria dar meia volta e fugir. Cada músculo do seu corpo ansiava por estar dentro de casa, longe dos mistérios daquela árvore. Mas ele não conseguiu. Contra sua vontade, contra seus melhores instintos, ele se percebeu avançando. Avançando na direção da mulher. Tentou repetir para si mesmo que era loucura, que o carvalho já matara um homem antes, mas estava surdo aos apelos da sua própria consciência. Precisava ver. Precisava sentir.
A chuva caía do céu pesadamente. O chão já se transformara em lama. Era difícil andar. Era difícil enxergar. Ele não parou, contudo. Pouco depois, o mundo tremeu novamente com o som de um trovão. A campina foi iluminada pelo raio, mas dessa vez, não havia nada além de uma árvore partida plantada na terra. A mulher sumira. Ele estremeceu.
Desacelerou um pouco o passo, mas ainda assim não parou. Precisava desvendar aquele mistério de uma vez por todas. Precisava saber que tipo de aparição fora aquela, que tipo de fantasma assustava suas ovelhas à noite. Abaixou a cabeça, então, para proteger os olhos cansados dos jatos de água cada vez mais fortes e seguiu em frente. Quase escorregou várias vezes, mas continuou andando.
Passou pela cerca e subiu uma suave inclinação da planície. A árvore erguia-se no alto, imponente. Ao lado dela, estava o lugar onde a mulher aparecera. Agora, contudo, não havia nada.
O raio atingira o carvalho em cheio, praticamente partindo-o em dois. Erick deu mais alguns passos na direção da árvore e tropeçou em algo no chão. Intrigado, pegou com mãos trêmulas o objeto. Era um pedaço não muito grande de vidro que definitivamente não deveria estar ali e ele cortou o seu dedo em uma das arestas afiadas do vidro, deixando-o tombar de novo na terra. Seu sangue escorreu, caindo em gotas no chão, misturando-se com a chuva e com a lama. Erick ainda assim não parou. “Apenas mais alguns passos”, ele repetiu mentalmente. Suas pernas obedeceram de má vontade.
Mais alguns passos inocentes. Fora isso que ele pensara. Logo, então, estava diante da árvore. E tudo se tornou claro. Seu grito se ergueu através da noite, por entre a chuva e os trovões, acima de todos os barulhos da tempestade. Um grito horrorizado.
Erick deixou-se escorregar para o chão e ajoelhou-se no meio da areia. A areia que saía de dentro da árvore partida, do interior do seu tronco. Areia. Não era uma areia clara. Era cinza, escura, e misturava-se com a água da chuva e a lama e o sangue. Areia. Erick estendeu a mão para tocá-la, mas não conseguiu. Sentia o estômago embrulhado. Nunca em toda a sua vida imaginara tal cena. Levantou-se rapidamente e se afastou apenas o suficiente para cair no chão de novo e vomitar. Era um homem velho, mas aquilo não era algo que ele precisasse ver antes de morrer. Depois, ergueu-se mais uma vez e correu. Correu de volta para a casa. Escorregou e tropeçou pelo caminho, mas continuou correndo e correndo até chegar à porta e entrar. Do lado de dentro, fechou os olhos tentando deixar aquela imagem terrível do lado de fora. Era impossível. Ele seria perseguido por ela em sonhos até o dia de sua morte.
Trêmulo, cansado, encharcado e assustado, ele estendeu a mão até o telefone e discou o número. Precisava de ajuda. Precisava da polícia. Porque, na sua propriedade, no interior daquela árvore maldita, ele encontrara um corpo: o corpo de uma mulher. Nua, ressecada, morta há muito tempo. Uma mulher, por Deus, uma mulher! Mergulhada na areia, dentro do carvalho. Uma imagem saída dos seus piores pesadelos, mandada pelo demônio em pessoa.
Erick tremia. Não conseguiu falar no telefone. Como contar aquela história? Como contar que ele finalmente descobrira o segredo do carvalho misterioso? E que ele era pior do que qualquer pessoa poderia ser capaz de imaginar? Assustado, ele apoiou-se na parede e escorregou até o chão, o telefone preso firmemente junto ao seu peito. Fechou os olhos e lá estava ela: morta. Perdido, sem saber o que fazer ou mesmo se seria capaz de fazer algo, Erick fitou o teto branco de sua casa e rezou para todos os santos que conhecia, tentando ignorar os rugidos da tempestade do lado de fora e o cheiro de morte que pairava no ar. Não conseguiu. Naquela noite, nem todas as preces do mundo teriam sido suficientes.
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