Sopa de letrinhas
– Nossa, estou exausta... Que tal irmos para a cama? – Andrômeda esfregou os olhos mais uma vez, bocejando devagar para que o sono não se apoderasse dela ali mesmo.
– Não me leve a mal, Sra Tonks, mas ainda não estou com sono – Harry respondeu sem abandonar a janela do loft, por onde espiava o céu estrelado.
A bruxa se levantou, colocando um vaso antigo que estivera limpando de lado. Então aproximou-se do garoto e passou a mão direita pelos cabelos arrepiados de Harry.
– Boa noite, querido! – e lhe deu um beijo na testa, como uma mãe teria feito.
Sete dias. Há pouco mais de uma semana, quando Andrômeda Tonks sugerira a mudança de Harry para o loft em que Sirius morava antes de ser mandado a Azkaban, o garoto pensava que um mundo de novidades lhe esperava. Certamente haveria recordações de seus pais e padrinho naquela casa. Fotos, diários, recortes de jornal... qualquer cosia que pudesse lhe dizer algo mais sobre as pessoas que tinham sido arrancadas de sua vida tão cedo. Entretanto, tudo o que realmente vira fora apenas um monte de móveis empoeirados e sem-graça.
Deixou de contemplar o céu para vistoriar milimetricamente a sala. Um loft não deveria ter paredes delimitando espaços, mas aquele tinha. Paredes cheias de teia de aranha que tornavam acinzentado o branco gelo da pintura. Com sorte Remo apareceria no dia seguinte para contar uma nova história sobre seus pais. Andrômeda parecia realmente concentrada na busca de fosse o que fosse que estivesse procurando e conversava pouco. Normalmente era Ninfadora que o distraía enquanto faziam a limpeza do apartamento, contando sobre o primeiro show das Esquisitonas em que fora quando tinha apenas 13 anos ou comentando as últimas medidas do Ministro da Magia na busca de Voldemort e seus comensais.
O terror recomeçara, mas os capangas de Voldemort ainda eram vistos em pontos isolados do Reino Unido. Notícias dos jornais trouxas relatavam desaparecimentos e demências repentinas de moradores de Nottingham, Liverpool e Newcastle. Harry ouvia cada palavra com atenção, esperando que Ninfadora comentasse algo sobre o paradeiro de Bellatrix. De todos os comensais de Voldemort, ela era a única que Harry fazia questão de enfrentar. Estava decidido a cobrar dela, com juros, tudo o que a devoção da bruxa à Voldemort ocasionara em sua vida.
Deixou o corpo escorregar pela parede e sentou-se no chão, amuado. Empurrou de qualquer jeito a mesinha baixa que lhe impedia de esticar a perna, mas ela não queria se mover. Sem grande curiosidade e levemente irritado de ser contrariado, pegou a varinha que Ninfadora havia esquecido no loft naquela tarde e jogou no móvel um feitiço de expulsão. Para sua surpresa, não conseguiu esticar a perna novamente: mais algum objeto coberto de poeira sumideira.
Com a intenção de evitar um novo acidente – já tinha hematomas suficientes pelo corpo -, puxou o pano preso a cintura e começou a limpar de má vontade. Vontade que foi surgindo à medida que o garoto percebeu se tratar de um pequeno baú de madeira escura.
Talvez fosse apenas um desejo enorme de encontrar tudo o que estava procurando ali dentro, mas Harry podia ouvir a voz de Sirius incentivando-o a continuar. Como se aquele caixote pesado estivesse há anos esperando que ele o abrisse. Não pensou duas vezes antes de usar a varinha de Ninfadora para arrombá-lo e se surpreendeu ao encontrar apenas uma caixinha de madeira talhada, muito parecida com uma caixinha de música trouxa. Não estava trancada.
Para a decepção do garoto, era apenas uma caixinha de música.
Harry não a fechou. Deixou a música tocar e se esparramou no chão da sala, de olhos fechados. Atento ao som que saía, percebeu ao longe uma voz fina de mulher. Uma voz que ele parecia conhecer. Tentou apurar os ouvidos, mas só o que sentiu foi uma zonzura e um torpor tomando conta de seu corpo. Em pouco estava dormindo.
– Sirius, faça o favor de desligar essa coisa...
– Qual é, Tiago? Minha idéia é genial! Você e Lílian, lado a lado, contando por que acreditam em milagres! Porque, convenhamos, vocês dois estarem juntos há tanto tempo é um milagre! – o rapaz deu uma piscadela para Tiago, que parecia levemente emburrado.
– Nós estamos juntos há dois meses, Sirius! Nem é tanto tempo assim – Lílian discordou, com ar de tédio.
– Ah, para o Tiago eu diria que já é metade da eternidade!!! – Pedrinho se meteu entre o casal de namorados, para roubar uma torrada de cima da mesa.
– Não existe metade de algo que não tem fim – Lílian murmurou irritada com as besteiras de Pedrinho.
– Quer fazer o favor de fechar essa caixa? – Tiago avançou sobre a mesa, tentando tomar o objeto das mãos de Sirius.
– Ei, ei, ei. Se acha que a minha pesquisa não tem valor científico...
– Pesquisa?! – Lílian ouvia inconformada.
– ...então pensem no pequeno Harry.
– Pequeno Harry? – Lílian e Tiago arregalaram os olhos diante do sorriso bobo de Sirius.
– Quem é Harry? – Pedrinho perguntou depois de uma mordida barulhenta na torrada melecada de geléia.
– Meu afilhado. Lógico!
– Não sabia que Andrômeda estava grávida... – Lílian comentou, sem entender porque o filho da prima de Sirius gostaria de abrir aquela caixinha. Tiago e Pedrinho pareciam tão confusos quanto a garota.
– Andie não está grávida! – Sirius retrucou aborrecido. – Estou falando do filho de vocês dois.
– Como é que é? – Lílian quase deu um berro.
– Lílian, você... você... Como é que o Sirius ficou sabendo antes de mim? – Tiago estava assustado.
– Tiago Potter! É claro que eu NÃO estou grávida!!!
Sirius apoiou o cotovelo sobre a mesa, a caixinha aberta junto ao corpo.
– Mas então... – Tiago olhou para o amigo.
– Eu não disse que Lílian estava grávida, Tiago – ele retrucou. – Aliás, isso seria meio difícil com o jogo duro que ela faz com você...
– Eu mandei você fechar essa caixa – o grifinório de óculos repetiu, assumindo subitamente um ar nervoso.
– Meu filho não vai se chamar Harry... – Lílian soltou com ar pensativo e Tiago se esqueceu da caixa para começar a rir, deixando-a irritada: – Não vejo graça nenhuma nisso. Meu filho não vai se chamar Harry e pronto!
– Eu gosto de Harry... – Tiago disse passando o braço pelos ombros da ruiva: – Lil, você reparou?
– Reparei no quê? – ela perguntou ressabiada, afastando o corpo ligeiramente do namorado.
– Que você está pensando em ter um filho comigo! – e o rapaz abriu um sorriso iluminado e confiante.
– Eu nunca disse isso.
– Mas eu disse... – Sirius se meteu na conversa novamente. – E você nem reagiu!!! Pior, até considerou a hipótese do nome! Eu definitivamente vou passar a acreditar em milagres...
– Eu... eu...
– Lil, – Tiago chegou perto da orelha de Lílian e beijou-a de leve.
A ruiva fechou os olhos, levemente arrepiada. Suas mãos procuraram as de Tiago e o mais novo casal da Grifinória esqueceu o café-da-manhã para se beijar apaixonadamente.
– Que lindo! – Sirius e Pedrinho debocharam. – Uma ótima lembrança para o pequeno Harry.
– Meu filho não vai se chamar Harry! – Lílian interrompeu o beijo na mesma hora pra protestar.
– Nossa, já escolhendo os nomes dos filhos, Lílian? – uma garota de cabelos louro escuro e um imenso moletom com uma águia desenhada sentou-se ao lado de Sirius. – Está levando o Potter a sério mesmo, hein?
– Eu não lembro de ter convidado você pra sentar – Sirius olhou para o lado irritado.
– A imensa delicadeza dos Black... Andrômeda não foi adotada, não?
– O que você quer? – Tiago parecia compartilhar da opinião de Sirius a respeito da menina.
Ela o ignorou completamente e perguntou para a ruiva:
– Estou procurando Alice. Sabe dela?
– Está na sala dos monitores, com o Remo. – num tom bem mais simpático do que o dos garotos. – Parece que o Snape mandou que refizessem todos os relatórios.
– Com o Remo, é? – a garota não prestou muita atenção às outras palavras de Lílian.
– É, com o Remo – Sirius retrucou: – Ela chega perto dele. Não acha que ele é um grifinório contagioso.
– Cala a boca, Black. – ela devolveu.
– Por que você não volta pra sua mesa idiota com suas amiguinhas idiotas?
– Sirius! – Lílian ralhou com ele, mas o rapaz não deu atenção.
– Você quer fazer o favor de sair da nossa mesa?
– O que foi, Black? Está baixando o sangue puro da família? Não pode ficar dois minutos com uma sangue-ruim do seu lado? – ela o encarou.
– Sua... Sua... – Sirius sacou a varinha, pronto para atacar a corvinal.
– Expeliarmus! – Tiago se antecipou. – Ficou louco, Sirius?
– Emengarda, você queria falar com a Alice, não é? – Lílian se dirigiu à garota. – Então, vá atrás dela, ela não está aqui.
Emengarda olhou uma vez mais para Sirius, que continuava enfurecido. Tiago empurrava-o para longe da menina que finamente resolveu seguir o conselho de Lílian e sair dali.
– Cuidado, Lílian! Você pode ser o próximo alvo do Black! – a loira gritou, quase fora do salão.
– Filha de uma... – e descarregou a frustração em Tiago, empurrando-o longe e voltando a sentar-se à mesa do Salão Principal.
– Vocês têm que parar com isso... – Lílian sentou-se ao lado do rapaz. Mordia os lábios de nervoso.
– Nós? – Tiago sentou-se do outro lado mesa, encarando a namorada. – Essa menina devia estar na Sonserina... Mas como lá eles não aceitam ninguém que não seja sangue-puro, tiveram que colocá-la na Corvinal.
– Não diga isso, Tiago. – Lílian voltou a defendê-la, ao mesmo tempo em que tentava consolar Sirius. – E, bem, vocês lembram o quanto ela sofreu na mão de Bellatrix.
– Minha prima Andie sofreu muito mais! E além do mais, pouco me importa se ela é filha de trouxas, filha de bruxos ou de duendes. Ela é uma falsa, hipócrita. Se faz de coitadinha, vítima de preconceito, mas ela é tão preconceituosa quanto era Bella!
– É, largar do Remo só porque ele é um lobisomem! – Rabicho deu sua opinião.
Os rostos de Tiago e Sirius de repente ficaram apreensivos. Lílian não sabia de nada:
– O que o Pedrinho quis dizer...
– É que o Remo... bem, o Remo adora noites de lua cheia, sabe? Nós até costumamos brincar que ele é um lobisomem de tão entusiasmado...
– Coisas de poeta, você sabe como é... Sentem-se inspirados nas noites de lua cheia e tal. Daí ele fica tagarelando sem parar e nós dizemos que são os uivos...
– Mas na verdade são os gemidos de amor...
– ...e de dor! Um poeta completo, que sente o que escreve. Quando não sente eu e Tiago damos uma ajudinha, chutando a canela dele para a emoção ficar mais real, entende?
– Por favor, não me chamem de burra. – Lílian finalmente falou, após um longo tempo em silêncio.
– Lílian... – Sirius baixou os olhos.
– Por favor, não conte a ninguém. – Tiago mordeu os lábios.
– Ao menos agora as coisas fazem sentido... – a garota pegou na mão do namorado. – E podem ficar tranqüilos. Se há um de vocês que vale alguma coisa esse alguém é o Remo. – e então olhando para os lados: – Será que mais alguém escutou?
– Acho que não... Estão todos a uma distância razoável... e o Pedrinho não falou tão alto assim – Tiago constatou.
– Rabicho estúpido! – Sirius descontou a raiva: – Não sabe ficar de boca calada, não?
– Foi... foi sem querer... – o rapazote baixo e gordinho.
– Foi sem querer... sempre é sem querer... – Sirius deu um murro na mesa.
– Quem mais sabe? – Lílian perguntou.
– Nós quatro, Emengarda e...
– Snape. – Sirius completou.
– Snape? – Lílian achou que tinha entendido mal.
– Essa é uma loooonga história. – Tiago coçou a cabeça, desanimado.
– Bem, está aí uma prova de que ela não é má pessoa.
– Ela largou do Remo por causa disso, Lílian! – Sirius retrucou de imediato.
– Mas não contou a ninguém o segredo dele!
Sirius, Tiago e Pedrinho se entreolharam. Aquilo bem era verdade. Mas eles continuavam achando Emengarda culpada:
– Remo ficou arrasado...
– Levamos quase dois anos para convencê-lo a contar a verdade a ela...
– Se ela gostasse mesmo dele...
– Mesmo que ela o amasse perdidamente isso não evitaria o medo – Lílian intercedeu. – E, não sei, essa não parece a Emengarda que eu conheço...
– Essa é a Emengarda que NÓS conhecemos! – nada que Lílian dissesse poderia convencer Sirius de outra coisa.
Mas Lílian não desistia facilmente:
– Você disse que eu e Tiago conseguimos um milagre por estarmos namorando. Pois agora vou conseguir outro: você vai se tornar amigo da Emengarda.
– Nossa, Lílian, onde foi que você aprendeu a contar piadas? – disse com cinismo. – Essa foi engraçadíssima.
Lílian retribuiu com um sorriso de sarcasmo:
– E para começar, eu e Tiago vamos contar como finalmente tiramos as vendas dos olhos e percebemos que gostávamos um do outro.
– Você quer dizer quando você tirou a venda, certo? Porque eu venho te chamando pra sair desde o 4ºano!
– Ora, Tiago, você chamou TODAS as garotas da escola pra sair desde o quarto ano – ela retrucou irritada.
– Todas não! Não chamei a Emengarda.
– Lógico! No quarto ano ela era namorada do Remo e depois vocês adquiriram ódio mortal dela!
– Mas não foram todas... – Tiago sempre queria estar com a razão.
Posso dizer que reparei no Tiago desde o primeiro dia de aula, ou talvez tenha sido na Cerimônia de Abertura... Não dê essa risadinha de "Eu sabia!", Sirius. Não reparei nele como um futuro namorado. Minha primeira observação ao vê-lo foi imaginar há quantos anos aqueles cabelos não viam um pente.
Essa cara de emburrado não vai mudar a verdade, Tiago. Era assim mesmo, o que eu posso fazer? Mas logo você começou a se destacar. Ou talvez fosse melhor dizer vocês, porque onde estava Tiago Potter lá estava Sirius Black. E onde estava Sirius Black estava Alice Dearborn arrastando sua amiga Lílian Evans para ver os dois demoninhos da Grifinória.
Fui quase indiferente a vocês por dois longos anos, mas podia esbanjar uma certa simpatia por Tiago quando o via jogar quadribol. Desde que sofri aquela queda provocada por Narcisa tenho um pouco de medo de voar, e tinha um pouco de inveja da sua desenvoltura com a vassoura. Além de que as vitórias da Grifinória sempre terminavam em ótimas festas no Salão Comunal.
Lá pelo 3º ano me apaixonei pelo Frank... O que vocês estão olhando? Frank Longbottom, sim. Ela era bonito, legal, inteligente... Alice sabe. Mas pelo visto ele preferia as loiras, porque nunca me deu bola... E então, no quarto ano, Tiago de repente começou a tomar conta da minha vida. E com certeza seus objetivos iniciais não eram nada românticos.
Era tudo o que eu precisava: além de um bando de sonserinos entediados eu teria que agüentar Tiago Potter.
Ham, ham. Sinto-me no dever de interromper essa belíssima narração, meu amor. Você literalmente pediu para ser azarada no dia em que tentou ser amiga do Seboso Snape. Ah, sim, Sirius, modifiquei o apelido. Seboso é mais sonoro, e mais parecido com Severo. E Ranhoso já tinha perdido a graça... Lógico que isso fica só entre nós, Lílian. Eu parei com essas brincadeiras de mau gosto. Minhas mãos? Por que você quer ver minhas mãos? Juro que não estou cruzando os dedos, Lil.
Mas, veja bem, você mesma estava dizendo que os sonserinos faziam da sua vida um tormento. Como foi que você teve a péssima idéia de tentar ajudar um deles? Não venha com essa de que o Seboso parecia diferente... Eu mesmo vi ele te humilhar muitas vezes. E sempre tentei te defender...
Pois esse era justamente o problema, Tiago. Quem disse que eu precisava que você me defendesse? Eu sei usar bem a minha varinha. E Severo só agia mal comigo quando estava na frente de todo mundo. Foi por isso que desisti de vez. Alguém que muda de amigos conforme a situação não tem mais que colegas. E, olhando daqui, penso que nem isso ele tem. Veja, sozinho e isolado num canto da mesa dos sonserinos. Se ele prefere aquele bando de urubus que o desprezam só porque meus pais são trouxas, que continue assim.
Mas definitivamente não quero que o pequeno Harry fique escutando sobre Severo Snape no futuro. É, Sirius, Harry até que é um nome bonitinho. Tem certeza que não quer guardar para o seu filho? Voltando ao meu capetinha aqui...
Bem, todos vocês se lembram daquele dia da cerveja amanteigada no Três Vassouras. Como assim vocês chamam aquele dia de Primeira Grande Briga? E tem Segunda? Terceira!? Ficaram loucos!? Depois daquele dia eu nem falava mais com o Tiago, como é que eu ia brigar. Ah, o dia do chiclete... Tá bom, Sirius, eu lembro do dia do chiclete. Mas eu não acho... Nem vem, Pedrinho, a aula de Adivinhação nunca poderia ser considerada uma briga!!! Foi uma discussão totalmente, absolutamente escolar, que acontece o tempo todo entre quaisquer estudantes, sem qualquer segunda intenção da minha parte... Affff, vocês são irritantes! Vão me deixar contar ou não? Acho muito bom que você fique calado, Sirius, ou vou ter que fazer você ficar amigo da Emengarda pelo método mais difícil.
Voltando ao assunto, houve essa briga, onde eu jurei que nunca mais queria ver as fuças de Tiago Potter na minha frente. Infelizmente, esse era um desejo além do meu alcance, pois todas as manhãs eu era obrigada a encontrá-lo na sala comunal, esperando certos dorminhocos acordarem e bolando formas e meios de infringir alguma regra.
Mas tenho que admitir que isso era algo que me alegrava... Não faça essa cara de "eu sabia!", Tiago, pois você não sabia de nada. Eu vou explicar... Discutir com você era... hum... divertido, sabe? De certa forma era uma rotina. Todas as manhãs eu acordava, descia ainda de roupão para procurar minha varinha ou minha mochila, ou qualquer outra coisa que eu tinha esquecido na sala comunal, você sempre mexia comigo, fazendo alguma brincadeira irritante, eu dava uma resposta à altura e subia novamente pro meu quarto esquecendo de levar o que tinha ido buscar, mas com uma sensação de obrigação cumprida. Mas na manhã seguinte àquele dia, você me ignorou. Totalmente! Não respondeu o meu bom dia automático... Lógico que eu também não pensava em te dar bom dia depois daquele banho, mas saiu, ué... Eu fazia aquilo todos os dias. E você... você me ignorou. Fiquei tão desconcertada que esqueci o que tinha vindo procurar. Você... Você se mexeu um pouco na poltrona, virou uma página do Profeta Diário e... bocejou. Depois olhou pra mim como se não visse nada além da parede, bocejou mais uma vez e voltou a ler aquele jornal estúpido.
Enquanto isso, eu fervia! Cheguei a pensar que minha cabeça fosse explodir: "Ele só está querendo me provocar!"; "É melhor assim mesmo, já estava cheia daquelas piadinhas todos os dias!; "Esse moleque me dá ânsia!"... Não me olhe assim! Sirius queria que eu fosse sincera! Estou sendo. Até porque, se você ainda não reparou, isso só mostra o quanto a sua indiferença me abalou. E o grande problema foi que eu percebi tudo naquele mesmo instante e... Por Merlim!!! Eu não podia estar sentindo falta da atenção de Tiago Potter!!!
Antes que meu cérebro processasse seu nome completo, eu subi as escadas correndo e voltei para o dormitório. Meus dedos batiam freneticamente nas minhas bochechas, tentando encontrar uma explicação. Consegui algumas, mas todas muito fraquinhas. Não acreditava nelas por completo, mas, bem, eu não conseguia imaginar um motivo realmente plausível para que eu sentisse sua falta. Absolutamente nenhum. Não, estar gostando de você não me passou pela cabeça, pois tudo o que eu mais queria naquele ano era que você parasse de me perseguir. Você consegue ser insuportável quando quer, Tiago. E você ri? Merlim, o pai do meu futuro filho é um poço de insensibilidade.
O grande problema de situações de nervosismo como essa é que normalmente nossas reações afetam as pessoas ao nosso redor e o estrondoso baque da porta do dormitório, logo após a minha entrada tresloucada acordara minhas colegas de quarto, deixando Sabrina num mau-humor terrível.
– Você tem a ligeira noção de que hoje é domingo, Lílian? – ela abriu a cortina da cama e despejou todos os xingamentos possíveis e imagináveis. Daí tornou a fechá-la e tentar dormir novamente.
Alice também tinha acordado, para minha sorte. Ao menos eu achei isso por um instante, antes de lembrar que ela estava de mal comigo. De mal, sim, por quê? Algum problema, Pedrinho? E daí que nós tínhamos 16 anos. Estávamos brigadas pela incompetência de vocês... Nem pense em me contradizer, Tiago Potter! Você pode dar sua versão... DEPOIS! Bem, vocês tinham estragado tudo com aquela mania imbecil de se divertir às custas da desgraça alheia. E eu tinha ficado sem minha melhor amiga. Que sequer olhava pra mim naquela manhã insuportável. Eu bem que tentei romper as barreiras...
– Alice, quantas vezes eu tenho que pedir desculpas?
Ela também não me deu bom-dia. Nem mesmo tentou fingir que não tinha me ouvido. Simplesmente me ignorou, enquanto quase afundava dentro do baú que tinha ao pé da cama. Tive que me resignar e ir até a janela. Podia ser que a lula gigante estivesse planejando uma de suas aparições surpresa para aquela manhã. Sem que eu percebesse comecei a praguejar contra Tiago baixinho, por aqueles dois dias horrorosos. Meu cabelo ainda cheirava a cerveja amanteigada, mesmo depois de três lavadas seguidas. Você só podia ser meu inferno astral... Era isso! Eu tinha que ir para a Sala de Astronomia!
– Você foi tentar ver estrelas durante o dia, Evans? – Pedrinho arregalava os olhos e Sirius parecia desconcertado por ver o colega pensar em algo sensato pela primeira vez na vida.
– E-ele ta.. certo?!
– Lógico que não – e a menina mostrou a língua para o aluno mais atrapalhado da Grifinória. – Justamente porque achei que ninguém ia estar lá é que Sala de Astronomia podia ser um bom lugar para ficar sozinha. Eu precisava por a cabeça em ordem.
– Ufa! Essa foi quase... – Sirius deu uma olhadela de canto de olho para Rabicho, que estava mais emburrado que de costume.
Lílian estava prestes a reiniciar o relato quando Tiago interrompeu:
– Isso não tá legal... – franziu a testa e olhou desgostoso para a caixinha.
– Como?
– Ah, Lílian, nosso filho vai achar um porre ficar ouvindo sobre cada dia depois do dia em que você se arrependeu de não ter saído comigo – e jogou o corpo para trás, entediado.
A menina ficou boquiaberta por alguns minutos, processando o que acabara de ouvir. Tiago Potter certamente tinha feito algum curso de como ser insensível.
– Ah, então você quer dizer que eu sou chata?
– Não, eu não...
– Eu sou mesmo uma idiota... Mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer. Eu sabia. Já enjoou, não é? Dois meses inteiros! Eu devo ter batido um recorde...
– É, isso você conseguiu mesmo – Sirius e Pedrinho disseram em uníssono.
– Lílian! – ele abandonou a posição de repouso e apertou a mão da namorada. – Não diga besteiras! Eu-eu te adoro – disse como que pedindo desculpas. – Eu só acho que, bem, um garoto não se importa muito com todas essas tempestades emocionais, entende? Nosso filho vai querer ação. Se você for contar todos os conflitos que passaram pela sua cabeça, e que, eu juro, eu adoraria ouvir, ele vai fechar essa caixinha e criar uma história mais curta e objetiva de como tudo aconteceu.
A menina fez beicinho, mas não discordava do namorado. Tiago tinha esse defeito-qualidade que ela adorava: era objetivo em tudo, embora isso muitas vezes prejudicasse o lado romântico daquele namoro.
– Mas... pode ser uma menina... – Lílian não se dava por vencida.
– Vai ser menino – Sirius retrucou convicto.
– Isso não importa – Tiago deu de ombros. – Mas se for uma menina, faço questão que tenha nome de flor... – e sorriu pra namorada enquanto a abraçava -... como a mãe.
– Não conheço nenhuma flor chamada Lílian – Rabicho objetou.
– Lílian quer dizer lírio, Pedrinho – Lílian explicou enquanto as faces ruboresciam levemente: – Como você sabia disso, Tiago?
Ele sorriu de viés e passou a língua nos lábios:
– Pode-se dizer que foram três anos de muita pesquisa e planejamento para alcançar meu objetivo.
– Eu que o diga – Sirius deu um suspiro de alívio.
– Se tivermos uma filha podemos dar o nome de Rosa, Margarida, Amapoula, Amor-perfeito...
– Amor-prefeito é muuuuito brega, Tiago! – Lílian rejeitou de imediato. – Mas a gente tá desviando do assunto. Voltando à história...
– Como se Amapoula não fosse... – Pedrinho murmurou, sem que a menina ouvisse.
Bem, a pedidos vou pular o que se passou na Sala de Astronomia... Como assim não posso pular? Como assim a história não vai fazer sentido? Pelo amor de Deus, decidam de uma vez o que vocês querem! Tiago acabou de dizer que eu sou chata! Ok, eu não SOU chata, eu ESTOU chata. Ta bom, ta bom, entediante, não chata. Você quer deixar eu continuar ou vai ficar brigando comigo? Vou pular a Sala de Astronomia sim, porque não aconteceu na... Peraí, houve uma coisa de interessante, sim.
Qual a janela que vocês mais gostam naquela torre? Eu particularmente gosto da que dá para a Floresta Proibida. E durante o dia, o verde da mata fechada me chamou mais a atenção. Já ouvi falar de feitiços que nos permitem enxergar através das coisas. Naquele dia eu quis saber executar um desses, ver as criaturas que se escondem naquele lugar. Isso me fez esquecer Tiago por alguns minutos e então girei a luneta para outro lado.
Sendo uma primavera, o lago estava mais bonito que de costume. Certamente naquela tarde o gramado ia se encher de gente, disputando espaço e vivacidade com as flores que cresciam por todos os lados. Àquela hora da manhã de um domingo, apenas poucos casais já estavam ali. Casais...
Dezesseis anos.
Acho que garotos não têm desses problemas, assim, se eu tiver um filho, ele talvez não entenda tudo o que eu pensei naquele fiapo de vida desperdiçado cobiçando a felicidade dos outros. Dezesseis anos e nenhum namorado. Não, Daniel Stuart não chegou a ser um namorado. Saímos algumas vezes, mas, não sei, ele não era "o cara". É, Tiago, você era "o cara", mas eu ainda não sabia disso. Tive alguns encontros, a maioria deles péssimos. A culpa de certa forma era minha: eu queria alguém inteligente, mas que não passasse o dia estudando pra tirar as melhores notas da sala; queria alguém engraçado, mas que não se preocupasse em divertir os outros o tempo todo; queria alguém especial, mas não me considerava especial o suficiente para ninguém. Foi quando eu tive a idéia mais absurda da minha vida. Uma idéia que juntava tudo o que eu sentia naquele momento: a vontade de namorar, a raiva que eu sentia de Tiago, a esperança de finalmente dar uma guinada na vida insípida que eu vinha levando... eu ia pedir alguém em namoro.
Eu sabia! Eu sabia que isso não ia dar em boa coisa. Eu vou fechar essa caixinha, Sirius! Como assim de jeito nenhum? Ela vai contar uma história de terror para o meu filho... Ou filha... Eles vão ficar traumatizados pelo resto da vida independente do sexo. Como assim eu estou exagerando, Lílian? Você não está contando como a gente finalmente ficou junto! Você está contando para seus filhos que um dia na vida você foi completamente insana! Você realmente devia deixar uma lembrança como essa numa penseira e ter o cuidado de deixar tudo ir ralo a baixo numa das pias do banheiro da Murta-Que-Geme. Você está dizendo isso porque não sabe o que a Lílian está prestes a contar, Pedrinho! Se algum dia eu pensei que você era louca, definitivamente foi nesse dia e eu não quero que meus filhos pensem que a mãe deles era uma louca.
Você não vai contar a história de como você pediu ELE em namoro, Lílian. Por favor!
Como diria um jornalista, devo contar a verdade nua e crua dos fatos... Argh! Detesto jornalistas, são tão petulantes, mas Sirius disse que eu tenho que ser honesta, e, bem, o que eu posso fazer? Eu fiz aquilo! E se quer saber, eu não me arrependo. Foi dos desdobramentos dessa atitude irracional que eu finalmente admiti que você valia algum esforço, ainda que até hoje eu não consiga entender completamente como cogitei a idéia de beijar Severo Snape...
Mas, bem, foi nesse dia que a idéia nasceu, não que eu a coloquei em prática. Lidar com Severo é ainda mais difícil que com Sirius... Por que esse ar espantado? Você é esquisito mesmo. Uma hora me odeia porque eu sou uma "sangue-ruim", na outra tenta me convencer de todas as maneiras a namorar seu melhor amigo; quando Tiago não está por perto, me ignora completamente; se eu fico no sufoco por causa de um queda da vassoura, é você que me salva... Você é muuuuito esquisito, Sirius! Mas devo admitir que é legal. Pelo menos um pouco. E quem pediu pra eu ser absolutamente franca foi você...
Onde ele ta indo, Tiago? Não, não vamos parar por aqui. Harry vai ficar frustrado se ouvir a história pela metade. E vamos parar de enrolar, ou ele vai ficar aborrecido. Como eu ia dizendo, lidar com Snape é difícil, mas, bem, eu não tinha muitas opções. Fora Remo, ele era o único garoto com quem eu mantinha uma relação próxima da amizade, ainda que fosse uma amizade um tanto estranha.
Não sei se vocês sabem, mas Severo não é um sangue-puro. É por isso que não gostam dele na Sonserina. Eu não contaria essa história pra você um ano atrás, Tiago, pois você tentaria usá-la contra o coitado, mas bem... eu acho que é uma história triste. A mãe dele fugiu com um trouxa, que quando soube que ela era uma bruxa, largou dela. Desiludida com a vida, a infeliz se matou e deixou o neto para os avós cuidarem. Mas, bem, mestiços não são muito bem-vindos a Mansão Snape, pelo pouco que consegui fazer com que Snape falasse...
Não faça essa cara de emburrado, Tiago. Não estou defendendo ninguém. Eu só queria que... ah, deixa pra lá! Acho que tenho que me contentar com o fato de que você já não o azara. Pedir que seja simpático e que o compreenda é um esforço além do imaginável. E eu posso dizer isso por experiência própria. Voltando à história...
Não, eu definitivamente não pretendo ouvir essa história da sua boca. Se Harry tem que ouvir essa sandice, é melhor que eu conte. Rabicho, vá procurar o Sirius! Como assim pra quê? Anda logo, caramba! Bom, agora que estamos a sós... Bem, ainda tem essa caixinha, mas, dane-se. Eu tenho que dizer... Tudo. Com todos os pontos, vírgulas e travessões. VOCÊ É LOUCA. Nanananinanão. EU vou falar agora. Você fica quieta! Cansei de ser o namorado bonzinho por hoje.
Naquele dia da cerveja amanteigada, bem, eu... eu... Sabe, eu cheguei a achar que realmente havia alguma coisa de errado comigo. Não era possível que você tivesse assim tanta raiva, tanta antipatia, assim, gratuitamente. Porque por mais que eu explorasse cada cantinho empoeirado do meu cérebro eu não via motivo algum pra que você não gostasse de mim. Você comentou sobre as brincadeiras no 3º ano. Oras, eu queria que você me notasse, que conversasse comigo. Se havia uma garota na sala que não parecia fresca ou chata, essa garota era você, e você... você mal me dizia oi. Aposto que eu era “o amigo do Remo”, não era? É, eu sei que eu era.
Você não tem idéia de como foi difícil me segurar na manhã seguinte àquele dia. Porque o que eu queria fazer era te encher de porquês. Por que você me destestava tanto? Por que tanta implicância? Por que você não via em mim o que as outras meninas viam? Por que, por que, por que. Você foi cruel naquela tarde, Lílian, mas, no final das contas, valeu a pena. Nem por um segundo eu pensei em desistir. Eu não desisto de nada e essa é a minha melhor qualidade. Mesmo que você fosse uma louca... E eu ainda não achava você tão louca. Minha primeira tática – fazer de tudo pra chamar sua atenção – não tinha funcionado. Então, o que eu tinha a fazer era botar em prática o plano B. Mas eu não fazia nem idéia de que plano seria esse.
Passei a manhã toda trocando aviões de papel com Sirius pra tentar bolar alguma coisa e, bem, ele achou que eu devia tentar o contrário: ignorar você. Só para ver se você não sentia minha falta pelo menos um pouquinho. No início achei aquilo uma besteira enorme, mas depois lembrei que ele e a... Hum, os rolos em que o Sirius se mete não tem nada a ver com a nossa história, mas é fato que ele já tinha tentado isso uma vez e deu resultado. Por que não tentar? Mais uma vez os porquês me perseguiam.
A idéia era bastante simples e eu já havia começado o processo sem perceber, quando evitei o bom-dia. Só fui perceber que estava fazendo efeito porque o Remo veio me perguntar se eu tinha ficado muito chateado com você, vindo com mil desculpas para o seu comportamento e finalmente confessando que você tinha perguntado de mim para ele. Não precisa matar o Remo por isso, Lil, pois foi assim que eu finalmente abri os olhos e percebi que tinha pedido ajuda para a pessoa errada. Quem podia me ajudar a chegar até você estava tão perto, tão ao meu alcance, que eu nunca pensei na simples possibilidade de pedir algum conselho a Remo Lupin. O difícil foi ouvir dele que você simplesmente abominava as minhas... hum... desavenças com o Snape. Como eu demorei tanto pra perceber isso? Lílian! O cara me detesta. Por que raios eu deveria ser legal com ele? Nem vem, o sentimento é mútuo. A única coisa que acontecia era que ele não me provocava na sua frente, provavelmente pra se fazer de santinho, ou qualquer coisa do gênero. Santinho... do pau oco, isso sim. Um... dois... três... quatro... não me atrapalhe Lílian, to contando até dez pra não explodir. Cinco... seis... sete... oito... nove... dez. Pronto! Mais calmo. Filho, não se assuste. Isso é só pra bruxos hum... incompreensíveis, como o – eu posso chamar ele de seu amigo, Lílian?-, como o colega da sua mãe.
A verdade é que Remo foi me dando as dicas do que você gostava ou não gostava e a Alice, depois de passada a raiva, veio até me elogiar, dizendo que nunca me vira tão sensato. Disse até que eu estava meio chato de tanto que andava me segurando. Pra você ver... A monitora sentindo falta das minhas azarações. Sirius não gostou muito da minha mudança, mas tinha outros problemas na cabeça, como arranjar um jeito de fugir de casa, afinal, as férias estavam chegando... Você... Bem, você, eu sabia, você me olhava de longe, incomodada. Como eu tinha vontade de dizer alguma gracinha só pra te ver apertar os olhos até só restar um risco negro no seu rosto, o nariz e as bochechas vermelhos como tomates e a boca tremendo, procurando uma resposta à altura. Como era difícil me controlar nesses momentos.
Minha glória foi aquele dia, na biblioteca, em que você, trazida apenas pela sua vontade, veio me pedir que pegasse um livro numa estante alta. Não venha com essa de que eu era o único conhecido ali naquela hora. Frank Longbottom estava a duas mesas de distância e o namorado da sua melhor amiga seria a pessoa perfeita para lhe fazer um favor como aquele.
“Aqui está. Mil Contos de Magia Romântica, Evans.” Lembro de você mordendo o lábio e apertando o livro com força. Deve ter olhado para os lados umas duas ou três vezes antes de sussurrar: “Obrigado.” “De nada”. E você não saiu dali. Não ousava me encarar, é verdade, mas também não se movia. Podem ter sido segundos, minutos, horas... O tempo parou pra mim naquele momento, Lílian. Na minha cabeça eu só conseguia ouvir minha própria voz dizendo: “Ela não quer ir embora! Ela não quer ir embora!”
Não tenho idéia de como consegui manter o sangue frio por tanto tempo... Certamente foram pequenos indícios como este que me diziam que a batalha não estava perdida. Bem, esse negócio de contar até dez que o Rabicho me ensinou também ajudou um pouco, principalmente depois de perceber que você andava passando menos tempo com o Remo, e mais tempo com um certo sonserino desagradável. Assim, eu conseguia desistir de tirar a varinha do bolso quando o impulso de azará-lo era muito forte. Posso até dizer que me acostumei e que hoje sou indiferente à presença dele... Mas nem que eu tivesse contado até mil eu conseguiria evitar o choque da noite do Baile de Encerramento do Ano Letivo. Lembro de cada detalhe, das horas insuportáveis que nunca passavam, lembro até do... argh... eu... nem gosto de pensar que você quase...
Remo, Sirius e Pedrinho passaram uma semana me convencendo que eu não devia convidar você para o baile. Uma semana de amolação contínua e mesmo assim eu deixei tudo desandar. Faltava meia hora para o baile e eu simplesmente não tinha par. Eu não conseguia imaginar uma garota sequer que não me torraria a paciência em pouco mais de uma hora. Nenhuma, a não ser você. É, porque certamente eu faria isso antes, hehe. Como assim não é engraçado, Lil? Você fica linda quando está brava! E foi assim que eu dei um jeito de despistar todos eles e saí pela janela na minha vassoura, disposto a encontrar a janela do dormitório feminino. As vidraças da sacada estavam abertas e eu pousei a vassoura sem fazer barulho. Dar uma espiadinha e garantir uma visão do paraíso... ai, Lílian, seus tapas são doloridos! Quer que nosso filho pense que você me espancava, quer? Lógico que ele não vai achar que eu era tarado!!! Ora, Lílian, quem é que não aproveitaria pra ver garotas se trocando!?! Ainda mais se você estivesse entre elas! Ei, isso foi um elogio, não um pedido de novos tapas. Infelizmente todas já estavam vestidas. Realmente uma pena! AU!! E depois dizem que tapa de amor não dói. Será que você me deixar continuar? Acho bom.
Além de não ver um pedacinho de pele além do permitido, eu tive que ouvir... eu tive que ouvir que você já tinha companhia para aquela noite. Apenas o otário aqui é que ia ficar sozinho, num canto do salão, vendo você pra lá e pra cá com um fulano qualquer. Eu fiquei um tanto... hum... desconsolado? Acho que frustrado é a melhor palavra. Em algum lugar da minha cabeça doente, você tinha ficado esperando que eu a convidasse. Que ridículo! Mas eu não ouvi o nome dele. Ou não quis ouvir. Acho que deixei de raciocinar ao saber que você já tinha par. Tive o desprazer de descobrir em plena festa.
E o idiota aqui foi mais uma vez convencido pelos amigos. “O que você vai ficar fazendo nesse quarto?” “Esse não é o Tiago que eu conheço...” “Ah, por Merlim, há pelo menos uma dúzia de coisas mais interessantes que garotas pra se fazer lá... Comer, por exemplo.” E o idiota foi. E o idiota não queria ver com quem você estava... Esse negócio de sexto sentido definitivamente não é coisa só de mulher. Eu sabia que não ia dar boa coisa, mas... Sabe, eu sei que já sou o melhor apanhador da escola, mas... Como assim deixar de ser convencido? Isso não é convencimento, amor, é realidade! Como eu ia dizendo, eu queria que meus olhos conseguissem acompanhar um pomo como te acompanharam naquela noite. Via você até quando eu estava de costas, pelo reflexo nas imensas janelas do salão ou numa colher de prata. Você estava em todos os lugares, mas, estranhamente, você estava sozinha. Estava na cara que o tal fulano tinha lhe dado um bolo. Merlim, você estava sozinha, devia estar chateada... Não, eu não podia... eu não podia me aproveitar disso. Eu ia fazer uma besteira. Eu ia... “Por Merlim, Tiago, o que é que você ta esperando?” As palavras que eu precisava ouvir vieram da boca da Alice. Ora, se até sua melhor amiga achava que era hora certa... Levantei, respirei fundo. “Não seja o babaca que você costumar ser, ok?”, eu ouvi a vozinha estridente dela se confundir com a música alta.
Você estava recostada num pilar, num vestido esplendidamente estranho. Roupas trouxas do século passado? Que fossem, você podia estar até sem nada... Aiiii, quer deixar a minha imaginação atuar livremente? O que eu quis dizer foi que não era a roupa, o cabelo preso, nem a correntinha fina com um pingente de esmeralda que me chamaram a atenção. E como é que eu lembro de tudo assim, nos mínimos detalhes? Oras, porque tudo isso estava em você, Lílian, e você, você era única pessoa que eu conseguia enxergar naquele salão lotado. “Não está gostando da música, Evans? Porque essa é a única desculpa pra você estar aqui parada, sozinha, enquanto seu par deve estar no meio dessa bagunça.” Juro que a última coisa que eu pensei foi em te provocar. Eu só queria puxar assunto, falar mal da banda, o que fosse, mas você... “Eu devia imaginar que meus dias de paz estavam pra terminar! Resolveu quebrar o silêncio pra me espezinhar, não é, Potter? Vamos, continue, diga que devo estar arrependida de ter te dado um fora aquele dia no Três Vassouras. Vamos, aproveite!” “Um, dois, três, quatro...” “Que droga é essa, Potter? Vai contar quantas garotas foram te convidar pra acompanhá-las? Era só o que me faltava.” “Se você não reparou, sua louca, eu vim sozinho!! SO-ZI-NHO!” E você perdeu a fala por alguns instantes. Achei que era a minha deixa, mas você se recuperou rapidamente: “O que foi? Nenhuma delas era boa o bastante pra você?” “Eu desisto. Você é louca! Pirada!!! Doida de pedra!!! E quer saber? Bem feito. Esse cara que te deu o bolo é meu ídolo!”
Parecia que estávamos num mundo à parte, porque o barulho todo provocado por música, vozes e risadas não foi suficiente para cobrir a risadinha sarcástica de Severo Snape, logo às minhas costas. “Alguém furou o compromisso que tinha com você, Lílian? Estranho eu não saber disso já que sou seu par essa noite!”
Ok. Ok. Pára. Você... você vai me fazer chorar desse jeito, Tiago. Deus, eu estava me sentindo tão mal, tão mal. Você não faz idéia... O Snape tinha me deixado plantada, esperando por quase duas horas. Eu só conseguia remoer meus próprios sentimentos, tentando achar alguém pra por a culpa de eu ser tão burra. E você veio com essa cara boba e adorável, depois de quase dois meses sem falar comigo. Os meses mais desastrosos da minha existência em Hogwarts, porque, Deus, como eu sentia falta de brigar com você. Naquele dia na biblioteca, que você comentou há pouco, eu não queria sair dali antes de pensar em algo bom para iniciar uma briga. Eu achei que você ia fazer isso, me dando uma resposta atravessada quando eu pedisse o livro. Mas não. Contrariando todas as expectativas e revolucionando o mundo das probabilidades, você se levantou, subiu a escada, sem uma única brincadeira, uma única menção ao meu pavor de altura e me entregou o livro. Não me mandou procurar outra pessoa. Não ignorou o pedido. Foi tão... indiferente! E naquela noite Alice veio me contar que o Frank a tinha chamado pro baile, absolutamente eufórica. Foi quando eu me toquei que, pela primeira vez em três anos, você não viria me convidar. Eu sei que eu nunca aceitei, e que também, provavelmente, viria a recusar mais uma vez, mas...
Foi por isso que criei coragem de convidar o Severo. Até porque eu tinha certeza de que ele não aceitaria. É, ele não reagiu muito bem da primeira vez em que sugeri que nós dois... Ok, ok, eu não vou mais tocar nesse assunto. O que ele não queria de jeito nenhum, eu sabia, era ser visto com uma sangue-ruim... Perdi as contas de quantas vezes Alice me falou: “Ele vai furar e você vai ficar com cara de tonta, Lílian! Ele nunca sairia com você em público. E, convenhamos, não tinha ninguém mais bonitinho pra você chamar, não? O Remo, por exemplo.” Como se o Remo fosse ‘trair’ você indo comigo ao baile. Eu só conseguia ouvir a Alice ecoando na minha cabeça: “Eu te avisei! Eu te avisei!” Quando vi você, tive certeza. Você ia debochar. Você ia debochar e podia fazer isso! Nem sei por que eu fiquei lá até aquele momento. Provavelmente foi o papo da Alice de que tudo era coisa do destino e de que certamente as estrelas estavam me reservando uma surpresa naquela noite. E que surpresa... Severo surgir do nada, naquele instante, não foi nada perto da outra.
Eu não consigo lembrar da sua reação ao ver Severo, simplesmente, porque eu estava muito mais perplexa. Sei que discutiram, soltaram ‘elogios’, mas que, por fim, Sirius e Remo tiraram você dali antes que a balbúrdia fosse geral. E eu sobrei, olhando atônita pro meu acompanhante, que aparatara de lugar nenhum para me salvar de Tiago Potter. Foi a primeira vez em que percebi como Severo se sentia bem triunfando sobre Tiago Potter, e mais uma vez senti raiva de você. Ele não aceitara o convite por minha causa; aceitara unicamente pra te fazer um desaforo. E você me conhece, Tiago, sabe que eu não engulo sapo, sabe que eu posso fulminar alguém só de olhar e, na falta de um Potter, eu tinha um Snape pedindo que eu mostrasse o quão orgulhosa eu era de mim mesma. “Muito bem. Você tem cinco segundo pra começar a se explicar ou...” “Ou o que, Evans? Vai me azarar? Está ficando cada vez mais parecida com o seu amiguinho, não acha?” Droga, por que ele tinha que falar de você? Pior, me comparar a você! E se eu fizesse o que ele estava falando, eu realmente seria como você. Assim, a única coisa que meu cérebro conseguiu ordenar a meu corpo foi acompanhar Snape com os olhos, me largando sozinha mais uma vez. Sozinha, desapontada e indefesa. Prontinha para Narcisa dar o bote.
A priminha do Sirius chegou de mansinho. O cabelo perfeito, a maquiagem perfeita, o vestido mais que perfeito. Rosa. A Barbie perderia pra ela. Como assim quem é Barbie? Bah, deixa pra lá, Harry definitivamente não vai querer saber o que é uma Barbie. Eu não tinha realmente percebido ela do meu lado até ver uma meia dúzia de garotos do sétimo ano olhando pro meu lado. Com certeza eu nunca fui a rainha da popularidade nessa escola. Não estou dizendo que não tenho amigos, Tiago. Estou dizendo que não sou como Narcisa... ou como você. Eu não atraio olhares por onde passo. Não, eu não acho que isso é um defeito, só não sou eu... Essa é Narcisa. O estranho é que, assim como eu, ela também estava sozinha. Sozinha e... triste? Ora, porque ela estava tão triste? A qualquer momento ela seria coroada pela terceira vez consecutiva Miss Encanto & Simpatia, o que eu nunca engoli realmente. Existe alguém que ache Narcisa simpática?
Cruzei os braços e voltei a averiguar o salão. Assim que encontrasse Alice, eu iria subir para a Torre da Grifinória. Só queria deixá-la avisada, bem, você sabe, pro caso de eu não conseguir completar o percurso. É, os malditos sonserinos. Não que eu ainda não soubesse me defender, mas, sabe como é, precaução não é demais. Então ouvi um soluço. E outro. E mais um. Olhei de esguelha pra confirmar e... Tinha praticamente um rio descendo pelo rosto dela e manchando as bochechas com o preto do rímel. Meu Deus, ela tinha manchado a maquiagem e ainda não tinha corrido para o banheiro!!! Minha curiosidade – e não a minha piedade -, foi maior que meu bom senso. “Narcisa, você está bem?” Um soluço maior ainda, a boca tremendo. Tinha sido algo grave: ela estava com um dente manchado de batom!!! “Lucius, Lucius terminou comigo... Lílian!” Lílian? Burra!! Burra, burra e burra!!! Como foi que eu não desconfiei? Narcisa não me chama de Lílian... Ela sequer me chama de Evans. É sempre sangue-ruim pra cá, trouxa imunda pra lá. Ao menos ela parou com aquele negócio de pica-pau. NÃO. TEM. GRAÇA. TI. A. GO! Acho que o batom realmente tinha me deixado impressionada e ela ter levado um fora, bem, essa era uma explicação razoável. Eu tentei consolar... Estúpida... Devia era ter rido da cara dela. Se ao menos fosse verdade. “Eu, eu não posso subir lá”, e apontou o palco onde a Profª Sprout estava prestes a anunciar o resultado da votação do garoto e garota mais popular da escola. Sabe, eu não sei por que você não ganhou. O Sirius é estourado demais pra ganhar um prêmio de simpatia. Como se ele ligasse pra isso. Bem, não estamos falando do Sirius, que, aliás, ignorou todas as chamadas pra subir ao palco. É, eu sei que ele tava com você lá fora. E eu também sei que ele não iria mesmo que estive no salão. Sei que Narcisa, que sempre adorou esnobar todas as garotas do colégio por causa daquela droga de faixa de miss, não ia desistir de sua subida triunfal assim, sem mais nem menos.
“Não diga besteiras! Você já fez isso antes, lembra?”. Droga, o que eu estava fazendo? “Você foi a segunda colocada”, ela parecia ressentida ao dizer isso. Não, você jamais vai conseguir imaginar a cara que eu fiz porque, sinceramente, acho que nunca, nunca na vida eu vou passar por um choque tão grande novamente. Eu? Segundo lugar? Que piada! Mas ela me olhava com tanta raiva, com tanto ressentimento que, eu cheguei a achar, por um instante, mínimo, que ela estava falando sério. E foi durante este instante que outras duas alunas da Sonserina que pegaram pelos braços e praticamente me arrastaram até o palco. Narcisa logo atrás, corrigindo os defeitos da maquiagem com um espelhinho de bolsa e a varinha, sem que eu pudesse vê-la.
Mal o nome de Narcisa tinha sido chamado, e as duas cobrinhas brutamontes me jogaram no palco. Que entrada magnífica... De quatro, com o salão inteiro olhando pra minha cara. Eu nem quis olhar pra cara da Prof. Sprout, só ouvi ela dizendo: “ Srta. Evans, eu acho que houve alguma confusão”. Então, me levantei, já roxa de tanta vergonha... Pra piorar, meu salto quebrou e eu quase perdi o equilíbrio outra vez. Tentei explicar:
– Er... hum... bem, Narcisa Black teve um... hã... problema e, como eu sou a... segunda colocada...
Nem preciso dizer que me arrependi de dizer isso imediatamente. Algumas risadinhas soltas no salão.
– Narcisa não pôde vir? – a professora me olhava estranhamente e as palavras começavam a sumir da minha boca.
– Estou aqui professora. – E lá ela estava. Linda, deslumbrante e cínica. Como sempre. – Por favor releve a atitude da Srta. Evans...
Eu só consegui escancarar minha boca, atônita com o que ouvia.
– Sei como muitas meninas sonham em um dia poder estar aqui em cima, ainda que, é claro, eles não deixem que eu largue meu posto – e ela jogou aquele olhar de ‘eu amo todos vocês’ pra multidão. E aí ela se virou pra mim: – Você não precisava ter feito isso, Lílian. Tentar me azarar pra ficar com a coroa? Ela iria para a Sarah Stone, que ficou em segundo lugar. Você não ficou nem entre as dez mais votadas, querida. Teria que sabotar muita gente pra poder colocar essa tiara nos cabelos.
– Eu... eu... – eu não sabia se me explicava pra a multidão, se para a Sprout, se azarava aquela bruxa metida ali mesmo. Mais uma vez, não consegui fazer nada além de sentir o sangue queimar as veias finas do meu rosto. Mas ela não tinha acabado.
– Colegas, professora, eu gostaria de fazer um pedido. Uma vez que a faixa é minha mais uma vez, peço a permissão de todos para colocá-la na Lílian, como prova da união e da amizade entre as casas de Hogwarts.
Aplausos ensurdecedores e assobios seguiram-se ao discurso fingido. A professora Sprout não gostou muito da idéia, mas, como ela poderia se opor com meia escola incentivando? A própria Narcisa colocou a faixa e a tiara em mim, que achava que já tinha passado pela humilhação máxima. Num tom muito mais comedido do que ela se dirigira a seu público, ela se aproximou do meu ouvido e sussurrou: “Sabe, sangue-ruim, você definitivamente não sabe se maquiar. Deixe-me ajudá-la”. Antes que eu pudesse dizer não, ela balançou a varinha contra mim.
A primeira mudança instantânea que eu reparei em mim, até porque atrapalhava a minha visão, foi meu nariz crescendo e se transformando numa grande bola redonda e vermelha. Mas eu ainda precisei deslizar as mãos pelo rosto pra perceber a linda maquiagem com que aquela BISCATE tinha me presenteado. Naquele dia, mais do que em todos, eu estava fazendo papel de palhaça. Literalmente. Com tinta colorida no rosto
As gargalhadas vieram em peso, e eu não consegui conter o choro, o que só aumentava a minha raiva. Não fiquei sabendo se algum professor repreendeu a Narcisa, se ela pegou detenção, nada. Eu queria sumir dali. O mais rápido possível. Mas a pior parte é que em cada rosto que eu olhava eu via o seu. E via você rindo e dizendo: “Bem-feito”. E ouvia minha própria voz dizendo ‘bem-feito’. O mundo era um coro em uníssono espalhando aos quatro ventos que eu era uma palhaça. E isso estava estampado no meu rosto.
Sair do salão sob o calor de todas aquelas risadas foi a segunda tarefa mais difícil da minha vida. A primeira você sabe qual é. Quando cheguei ao jardim, com a Alice e o Frank colados em mim, tudo o que eu queria era apagar aquela noite da minha vida. No estado irracional em que eu estava, não consigo lembrar de muito coisa. Mas sei que pus toda a culpa em você. Você era culpado de tudo. Pronto e acabou. Ainda que você não tivesse nenhuma influência sobre a mente doente da Narcisa, ou da covardia do Severo, ainda assim você era o culpado de tudo, porque se não tivesse vindo falar comigo, eu não teria ficado tão frágil diante de todos. E, hum, bem, acho que foi por isso que eu expulsei você e Sirius de lá quando vi os dois... Nem imaginava que você ia...
Sabe, é estranho como eu consigo me lembrar de cada palavra dita naquela noite, Lílian, especialmente, porque no dia seguinte não conseguia sequer lembrar que tinha discursado para meia escola. Acho que foi de tanto ouvir o Sirius, o Remo e o Pedrinho repetirem tudo durante as férias. Culpa do firewhisky de péssima qualidade que eu e Sirius arranjamos na última hora – é, ele previu que eu não ter convidado ninguém me deixaria deprimido. Tudo o que eu lembrava era que, logo após você me expulsar do jardim, onde, aliás, EU tinha chegado primeiro, me subiu uma raiva louca, desvairada, e eu puxei o Sirius sem saber realmente o que iria fazer. Mas sabia que alguma coisa ia acontecer, ah, isso eu sabia. Por uma casualidade, logo que entramos, demos de cara com o McKeller usando uma das vidraças feito espelho para arrumar a faixa amarela de orador da turma. Não precisei dizer a Sirius o que passou na minha cabeça, ele se encarregou de dar um sumiço no formando da lufa-lufa em questão de segundos. O palco era meu.
“Hem-hem... Alô! Som... Testando. Um, dois, três. Testando. Som! Esse troço ta ligado?” A microfonia que se seguiu quando eu balancei o microfone mostrou a todo o salão que sim. Remo disse que viu a MacGonnagal e o Flitwick se levantando para me tirarem do palco, mas parece que Dumbledore os impediu. Isso me lembra que devo um obrigado ao diretor.
“Hum... bem... Vocês devem estar se perguntando onde é que tá o McKeller, certo? Pois é, ele não vem. Acabei de encontrá-lo agorinha mesmo no banheiro. Sabem o tipo de coisa que nervosismo provoca, não é? Então, ele resolveu me passar o bastão. Suas palavras exatas foram: ‘Vai lá, Potter! Tô com uma desinteria pra lá de brava...’ Isso, muito bem, risos, eu gosto disso! Mas ele não disse só isso. Disse: ‘E, além do mais, você é um grifinório, não é? Não vai ficar com medo de uma multidãozinha.’ Não sei se isso tem realmente alguma coisa a ver com a famosa coragem dos grifinórios, mas a verdade é que gente nunca me intimidou. Ao contrário, acho que sempre gostei de ser centro das atenções e certamente Hogwarts contribuiu, e muito, pra agravar o meu... hum... egocentrismo? Eu decididamente não me acho egocêntrico. Mesmo! Mas quando você começa a ouvir isso diariamente, passa a ficar habituado ao termo. É que tem essa garota. Pois é, sempre tem uma garota. E o que essa garota tem de diferente das outras? Eu diria que nada e tudo ao mesmo tempo. Nada porque, bem, ela tem dois olhos, um nariz, uma boca, uma varinha. É verdade que ela vive perdendo a varinha, mas ela sempre acha. Assim como ela sempre acha que eu sou egocêntrico. Nisso, com certeza, ela é diferente das outras. Acho que posso contar nos dedos as vezes em que a vi rindo de mim. Culpa do tal egocentrismo...
Egocêntrico, eu? Bah, eu não sou egocêntrico. Sou engraçado. É, engraçado... Ao menos essa era a minha defesa habitual, porque todos sempre riram das minhas brincadeiras. Ou pelo menos quase todos. E quem não ria não me importava. Se o mundo podia se acabar numa gargalhada coletiva, quem precisava se importar?”
Até esse ponto, acho que ainda era possível sentir uma ponta de sarcasmo no que eu dizia. Era um pouco de raiva misturado com álcool. Mas, de repente, não sei bem porquê eu só conseguia lembrar do seu rosto vermelhando, seus soluços, seu choro. Aquela aguaceira toda atrapalhando seus olhos brilharem como de costume. E a bebida suplantou a raiva.
“Mas hoje... Hoje eu me importei. Finalmente entendi porque raios aquela menina me detestava tanto, entendi porque ela não ria. Ela não ria porque... Quem se importa? Ninguém. Quem de vocês se importou antes de soltar o riso diante da rainha transformada em palhaça? Qual de vocês teve a sensibilidade de se colocar no lugar dela? Ok, ok, e agora vem essas caras mal-humoradas de ‘quem é ele pra dizer tudo isso’? Eu sei que mereço. E eu não vou ser hipócrita de dizer que tenho remorso. Não tenho. Definitivamente. Até porque eu poderia dar mil razões interessantes pra azarar este ou aquele aluno, porque eu simplesmente não me importo com eles. Mas eu me importo com ela e o que vocês fizeram esta noite... eu queria que fosse culpa minha. Hehe. Não levem a mal esse riso idiota, é que eu não posso deixar de imaginá-la respondendo: ‘Lá vem o egocentrismo outra vez. Será que você acha que todas as coisas do mundo acontecem por sua causa?’ Se quisesse ser irônico e irritá-la um pouco mais, eu diria que o universo não poderia ter objetivo melhor, mas aqui, agora, eu gostaria de dizer que eu realmente queria que fosse culpa minha. Porque se fosse minha culpa, eu teria tido como evitar tudo isso. Eu teria podido evitar que aqueles olhos se apagassem e eu poderia...”
E nessa hora eu caí do palco. É isso o que dá deixar bêbados perambulando para lá e para cá sem uma faixa de segurança ou grades. Lembro de ter acordado no dia seguinte, com a voz irritada do Sirius reclamando de ser expulso mais uma vez da enfermaria. Tínhamos perdido o trem de volta para casa. Na verdade, com bebedeira ou não, não voltaríamos com o Expresso, Isso implicaria na volta de Sirius ao Largo Grimmauld e ele definitivamente não tinha mais nada pra fazer naquela casa.
Seguiram-se três meses de férias... Acho que se Sirius não tivesse se mudado para minha casa, teriam sido as piores férias da minha vida. Uma coisa era certa: bastavam meus pensamentos vagar um pouco e eu me lembrava de você chorando, da frustração de só ter piorado as coisas com um discurso pra lá de estúpido e... egocêntrico? Acho que nem quando é pra falar de você eu consigo deixar de falar de mim mesmo. Você não achava isso adorável antes. Eu sei que antes era antes, amor, e ainda bem que acabou. Voltando... Esses períodos vinham e passavam rápido, especialmente porque eu e Sirius dedicamos estas férias a desbravar o mundo trouxa. Aliás, demos com cada coisa estranha... Mas isso não vem ao caso.
Às vésperas de retornar para a escola, comecei a me sentir estranho. Segundo Remo, eu estava com... hum... vergonha. Eu ainda acho que ele está enganado. Eu? Com vergonha? Ah, tenha paciência. Eu nunca tive vergonha de nada e de ninguém. Prefiro pensar que foi só um mal-estar passageiro, ainda que ele tenha durado um pouquinho além da conta. Lílian, não tem como eu admitir algo que não aconteceu. Eu não estava com vergonha de você. Lógico que não estava. Bah, quer deixar eu continuar?
Sei que por conta deste mal-estar, preferi ficar dentro da cabine durante a viagem no Expresso. Estava até mesmo pensando em ir direto para o quarto e não assistir a Cerimônia de Seleção este ano, mas meu estômago vetou minha idéia por completo. Eu estava varado de fome.
Não, eu não vi você me olhando de cinco em cinco segundos. Estava concentrado em xingar educadamente o Chapéu Seletor. Tenho certeza que a música deste ano foi a maior desde a inauguração da escola. Eterna!!! E meu estômago continuava reclamando. Foi a primeira vez na vida em que pude dizer que compreendia o Pedrinho por completo, e até que partilhávamos dos mesmos interesses. Sirius estava com um mau-humor de cão por ter encontrado o irmão dele ao descer do trem, e o Remo... é, a viagem também não foi boa pro Remo, já que a Emengarda terminou com ele ainda no Expresso.
Finalmente chamaram o último calouro e eu, que já tinha decorado todas as linhas que formavam o emblema de Hogwarts no meu prato, o vi encher-se de... sopa? Ah, era muito desaforo! Sopa de letrinhas? Onde estavam os famosos banquetes pós-seleção? Assim, levantei o rosto pra ver se encontrava alguma explicação no rosto do Dumbledore, mas só encontrei... você. Diga a verdade! Você tinha usado um desses cosméticos trouxas, não tinha? Porque... hum... bem... seus olhos estavam mais verdes que o normal. Sério! Eles estavam muito verdes. Tão verdes que eu não consegui te encarar... Era verdade demais pra uma pessoa só agüentar.
Que bobagem, Tiago! Eu não estava usando nada. Talvez... talvez o caso fosse que aquela era a primeira vez que eu não estava te encarando com a raiva borbulhando dentro de mim, e por isso, em vez de dois riscos enfurecidos, você conseguiu finalmente ver meus olhos. Se bem que eu ainda acho que isso é uma desculpa pra você não admitir que você estava era com vergonha! Eu admito que estava sem-graça. Certamente estava nervosa, mas era um nervosismo incomum no que se tratava de você. Porque, normalmente, as palavras saíam da minha boca como enxurrada, mas naquele momento... Eu tinha todos os meus pensamentos acumulados nas férias engasgados na minha garganta. Nem é preciso dizer que na viagem de ida eu ouvi de todo mundo e mais alguns o que você tinha feito e, estranhamente, aquilo não despertou minha ira, comod e costume. Talvez porque eu já tivesse sido magoada o suficiente por todas aquelas pessoas na noite anterior. Mas, acho que, principalmente, porque pela primeira vez eu gostei de saber que alguém tinha me defendido, que... que eu podia contar com alguém incondicionalmente. Alice quase teve um ataque do coração de tanta euforia ao me ouvir dizer que precisava te encontrar. De qualquer jeito. Reviramos o trem todinho, e tenho que admitir, não foi nada bom. Por dois motivos: primeiro, ninguém conseguia esconder o sorrisinho de escárnio nos lábios – ou ao menos minha mente doentia via um no rosto de todos – por conta do mico que eu tinha pagado no baile, e segundo, eu não conseguia encontrá-lo.
O que eu ia te dizer? Não sei. Não faço idéia. Naquele momento eu ainda não tinha aceitado bem a suposição de que eu podia nutrir algum sentimento por você. Eu só me sentia esquisita... eu precisava te agradecer. Só agradecer. Perdi as contas de quantas cartas lhe escrevi durante as férias, mas não consegui enviar nenhuma. Minha coruja chegou a me bicar a mão por uma vez que, prestes a amarrar o pergaminho na pata dela, eu comecei a rasgá-lo repentinamente.
Mas o verão chegou ao fim, graças a Deus. E novamente eu passei a viagem vasculhando o trem. É, eu te encontrei sim, mas quando ia falar com, eu travei. Da mesma forma que travei depois, na mesa da Grifinória. Acho que eu nunca tinha te visto tão alheio às coisas que aconteciam ao redor. Eu cheguei a expulsar o Pedrinho a altos berros da sua frente e você sequer virou o rosto pra olhar. Achei que você estivesse me ignorando novamente. E com razão. Depois daquela noite... Quando você levantou o rosto, achei que era a minha deixa, mas... a minha voz não saía. Eu sabia o que eu tinha que falar. Eu sabia o que eu QUERIA falar. Mas, sabe-se lá porque, eu não conseguia. E você abaixou a cabeça outra vez, fingindo que não tinha em visto. Eu precisava falar, mas você só olhava para aquele raio daquele prato, não olhava pra mim.
Eu tinha que tomar alguma providência...
“Obrigado”. Hein? Como? Meu prato de sopa estava falando comigo? Prato desaforado!!! Por um acaso uma sopa ficava agradecida ao ser comida? Engoli meia dúzia de letras, razoavelmente irritado pela brincadeira de mau gosto que alguém estava fazendo. Mas levantar o rosto pra procurar o infeliz significava encarar você novamente e eu estava começando a me convencer de que o Remo estava certo. Eu devia estar com vergonha. Eu ACHEI isso naquela hora, agora não acho mais. E pronto! Bem, mas eu continuei comendo, mas a sopa queria continuar tirando com a minha cara. “Tiago, olha pra mim!” Eu só consegui rir, ué! O que um prato de sopa quer dizer com “olhe para mim” quando a sua única ação na última meia hora é ficar olhando fixamente para ele? Então você se tocou: “Pra mim, Lílian!” Como eu disse, não era vergonha, porque meus olhos mudaram de foco imediatamente. Você estava com uma expressão engraçada, de quem tinha se arrependido profundamente do que pedira. Acho que tentou dizer alguma coisa umas três vezes, mas, ou você falou muito baixo ou você realmente não falou nada. Eu tenho certeza que não ouvi um único sonzinho. E após alguns segundos mexendo a boca inutilmente, você apontou para o prato de sopa novamente.
As letras iam se agrupando rápido, conforme – eu via de rabo de olho – você mexia a varinha. “Agora está melhor. Eu queria dizer obrigado. E desculpas. Tenho sido muito” – e você mexeu umas dez letras antes de se decidir pelo G – “grossa com você ultimamente.”
Como? Eu devia ter lido algo errado... Desculpas por quê? Ora, Lílian, se alguém tinha que pedir desculpas por alguma coisa, esse alguém era eu, que estava sempre te provocando. Pensei em responder alguma coisa, mas antes disso você prosseguiu: “Eu estive pensando se você não podia me ensinar a – e demorou um tempinho para completar a frase – a gostar que os outros riam da minha cara.” Surpreso como eu estava, só consegui olhar pra você e vi um sorriso acanhado surgir. Seus olhos se desviaram rápidos do meu, direto para a sua sopa. “Será um prazer”, eu não demorei em ordenar as letras do seu prato.
E finalmente sua voz surgiu. “Estive pensando que o Três Vassouras seria perfeito pra isso. Que tal no próximo final de semana aberto para visitas a Hogsmead?” Muito tempo, Lílian! E nós já tínhamos perdido tempo demais. “Quer saber, eu já estou cheio, acho que vou pro dormitório. E você parece tão cansada, Lílian. Por que não sobe e tira um cochilo? Aposto que vai lhe fazer bem.” Você piscou os olhos rapidamente algumas vezes, meio confusa. Deve ter ficado ainda mais confusa quando eu realmente subi para o meu dormitório logo que chegamos na Torre da Grifinória...
– É, eu estava um pouco confusa mesmo. Mas eu tinha anos de experiência em perceber que tudo que Tiago Potter dizia sempre tinha algum significado oculto. De modo que não me assustei quando ouvi as batidas na janela do meu quarto. Eu me assustei foi com o fato de você imaginar que eu poderia ficar àquela distância da terra firme sem maiores problemas. Admita, você ficou frustrado quando me recusei a subir na vassoura... – a garota se inclinou para a frente, olhando através das lentes dos óculos do namorado.
– Mas é lógico, Lílian. Eu tinha planejado o programa perfeito! E eu sou ótimo piloto... – ele ergueu uma sobrancelha e fez beicinho.
– Eu sei que você é ótimo piloto, Tiago, eu não confio é em mim! Vai que eu inclino demais e escorrego pro lado... Mas as horas no dormitório feminino não foram assim tão longas...
– Na verdade, elas foram curtas demais. – Tiago sorriu.
– É, eu também achei. – ela riu descontraída. – Mas o mais cômico foi ver você se estatelar numa vidraça fechada tentando sair antes que as meninas entrassem.
– Isso não teve graça nenhuma... – ele fez muxoxo.
– Não teve graça?? Foi muito engraçado, Tiago!!! Bah, não é você que adora ver os outros rindo?
– Eu adoro ver VOCÊ rir, Lílian, mas ainda prefiro você me beijando...
– Nossa, vocês ainda não terminaram isso? – Pedrinho se enfiou entre o casal, antes que Tiago arrancasse um beijo estalado da namorada.
– Você já voltou? – o amigo retrucou incrédulo.
– Queria que eu achasse o Sirius, não queria? Ele tá ali, brigando com o Regulus. Eu é que não vou me meter entre eles... – e o garoto puxou a manteigueira para perto de si.
Tiago e Lílian olharam por alguns instantes para a entrada do Salão onde os dois Blacks tinham esquecido da magia para se digladiarem à moda trouxa, com socos e pontapés.
– O que você acha de chamarmos o Sirius para padrinho, Lil?
– Padrinho de quê?
– Do Harry, ué?
Ela soltou uma risada gostosa:
– É... Acho que é o mínimo que a gente pode fazer. Afinal, ele escolheu até o nome do bebê!
– Harry! Harry, querido! Não acredito que você dormiu no chão... E no meio de toda essa poeira!!
A luz feriu os olhos do garoto quando ele tentou despertar. Já era manhã. Uma linda e quente manhã de maio.
– Quem lhe deu isso? – a voz da bruxa já não era de apreensão, mas de surpresa.
Entretanto, Harry não conseguia prestar atenção a Andrômeda. Tudo tinha sido um sonho?
– Harry, quem lhe deu isso? – Andrômeda insistiu e os olhos de Harry finalmente focaram a caixinha de madeira escura, cuja música lhe adormecera.
– Eu tropecei nela ontem... É só uma caixinha de música.
A bruxa abriu um sorriso enorme:
– Não, Harry, isso aqui é uma caixinha de memórias. Me conte, sonhou com Sirius?
– Sonhei, sonhei com Sirius também. Mas sonhei mais com meus pais... Como você sabe que eu sonhei? – ele finalmente despertara por completo.
– Porque é assim que caixas de memórias funcionam Harry. Nós sonhamos as lembranças dos outros.
Harry não conseguiu dizer mais nada. Um sorriso enorme teimava em deixar sua boca ocupada. Tudo aquilo tinha mesmo acontecido.
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