O corretivo
Pouquíssimas vezes Severus se permitia ficar nos lugares quando ela estava por perto, fazendo questão explícita de demonstrar seu repúdio e aversão. Mas ela era fiel a si mesma. Não tinha domínio sobre o que ele sentia ou sobre quem quer que fosse, mas era leal e honrava seu próprio coração. O dia que bastasse, bastaria. Foi assim que sua mãe lhe ensinou. Honrar sua própria alma, honrar seu dom. E nem o medo e a ignorância seriam suficientes para tirá-la do caminho de luz que sua mãe lhe deixara. Sabia que muitas vezes parecia fazer papel de boba, muitas vezes achava-se boba; mas a fé em si mesma, a confiança na clareza do que “sentia” emanando das pessoas, a fazia entender que havia muito mais além do que aparentavam todos. Também ali era um mundo de aparências.
As férias se aproximavam.
Heloísa não conversara ainda com Dumbledore a respeito de sua situação. A possibilidade de passar o verão inteiro no castelo, sozinha, deixava-a deprimida.
Estava sentada à beira do lago, desenhando absorta, quando notou a aproximação de Lupin e de Lilly Evans, uma grifinória ruiva muito bonita de olhos verdes cintilantes. Conversavam animados, distraidamente. Quando a viram sentada perto da árvore, vieram ao seu encontro, e Lupin as apresentou.
- Lilly Evans, Heloísa Varth.
- Seu bobo – disse a ruiva. – Nossas Casas estudam juntas há quatro anos! Claro que eu conheço a Heloísa!
- Oi, Lilly! Oi, Remus! - sorriu a menina.
Os dois sentaram-se junto a ela na grama, observando seu desenho.
- Está muito bom, Heloísa! – disse Lupin, chegando bem perto dela, admirando a habilidade da amiga.
Falaram das férias que se aproximavam, dos resultados das notas, o que fariam no verão, aonde iriam. Riam, divertindo-se, e Heloísa tentava acompanhar a despreocupada felicidade que os dois demonstravam.
Conversavam animados, quando três outros jovens se aproximaram. Chegaram ruidosos, jogando-se na grama em volta deles, rindo de alguma brincadeira anterior. Heloísa sentiu uma leve onda de tensão no ar, a despeito dos risos. Um dos rapazes, Potter, um grifinório de óculos e revoltos cabelos escuros, olhava insistentemente para Lilly, sorrindo e tentando parecer sedutor. Heloísa sabia, todos na escola sabiam, que ele estava interessado nela há algum tempo. Lilly Evans conversava com todos, ria, brincava, mas não dava atenção especial a ele. O rapaz mais baixinho, Pettigrew, observava o grupo, atento e embevecido com cada palavra que os colegas davam e, vez por outra, soltava um comentário engraçado ou dava um palpite qualquer. O mais alto dos três, um garoto muito bonito de cabelos negros caídos sobre os olhos, estava estirado na grama, apoiado no cotovelo, displicentemente deitado, e olhava Heloísa com um sorriso de lado, meio sarcástico. Ele parecia querer dizer algo, mas olhava para Lupin de relance e então se calava, com um sorrisinho nos lábios. Heloísa percebeu a troca de olhares entre eles, e Remus parecia levemente constrangido, apesar de tentar manter a conversa animada e alegre.
Alguma coisa nos olhos de Sirius Black, o grifinório mais alto, atraiu a atenção de Heloísa, e ela o encarou, lentamente perdendo o sorriso. Ele percebeu e tentou disfarçar, olhando para outro lado. Mas já era tarde. Ela “viu”. Ela “sentiu”. Podia “ouvir” um grito abafado, transbordante de ódio e revolta, dentro da sua cabeça, no seu peito, como uma energia muito ruim e dolorosa transpassando seu corpo todo. Sentiu-se arrepiar da cabeça aos pés.
- Severus... – a garota falou baixinho, num sussurro. Olhou para Sirius e para os outros dois que chagaram junto. – O que vocês fizeram com ele? - estava pálida e assustada.
Os garotos não responderam e se entreolharam, tentando disfarçar um sorriso. Lupin se sentiu golpeado com o olhar de desapontamento que ela lhe dirigiu, antes de se levantar e sair correndo em direção ao castelo.
Lilly Evans também se levantou, mas Potter foi mais rápido e se colocou em pé à frente dela.
- O que foi? Espera! – pediu ele, sem graça.
- Eu nunca vi gente mais cretina que vocês! – disse a ruiva grifinória, desvencilhando-se do garoto e partindo chateada em direção à escola.
Remus não poderia parecer mais irado. Os outros argumentaram que até lhe fizeram um favor, tirando o “ranhoso” do seu caminho. “Eles pegaram Snape observando o grupo que se divertia sob a árvore na beira do lago e resolveram lhe dar um corretivo, só isso. Pego de surpresa, ele não teve como escapar. Foi simples.”
- Também avisamos pra ele se manter longe da lufa-lufa e que ela já era sua, mesmo porque ela não iria querer nada sério com um veado seboso e horroroso como ele.
- O que vocês fizeram com ele? – Remus estava branco de raiva, mas ligeiramente sem graça com a constatação dos amigos sobre ele e Heloísa.
- Ah... não foi nada! – disse Sírius, displicente. – Uns feitiços aqui, umas azaraçõezinhas ali... bobagens... Ele vai ficar bom!
Pettigrew ria convulsivamente agora. Aquela risadinha miúda e retorcida, feito um guincho.
Heloísa procurou por ele pelo castelo todo, em todo lugar que conhecia.
Soube mais tarde que estava na enfermaria, mas não conseguiu vê-lo. Ele não queria que Madame Pomfrey permitisse a entrada de ninguém.
- Mas seus amigos vão querer saber de você, menino! – tentou argumentar.
- EU NÃO TENHO AMIGOS!!!! – gritou ele, enlouquecido de ódio. – NÃO QUERO VER NINGUÉM!!! NÃO QUERO QUE NINGUÉM ME VEJA AQUI!!!!
Papoula Pomfrey entendeu o recado. Imaginou o constrangimento que ele deveria estar sentindo e concordou.
- Não se preocupe, criança! Acalme-se! Não deixo ninguém entrar.
Dias depois, Dumbledore o chamou para uma conversa em seu gabinete.
- Eu sei, Severus, que você está muito ofendido com tudo que aconteceu, mas eu preciso saber quem fez isso. Por que não me deixa ajudá-lo?
- Não aconteceu nada, senhor. Eu sou um homem, eu resolvo meus problemas.
Dumbledore estava admirado com a altivez e senso de orgulho daquele menino. Mas estava preocupado. Esse atrito já estava assumindo uma dimensão acima das picuinhas estudantis.
- Infelizmente, eu não posso lhe obrigar a me contar quem lhe fez isso, mas eu posso alertá-lo, Severus Snape, que vingança não é honra e a raiva é má conselheira.
O garoto manteve-se impassível. Os olhos adquiriram uma frieza escura, preocupando o velho diretor.
- Pense sobre isso. Vá, criança, vá...
Severus se despediu e saiu, deixando um pensativo Dumbledore olhando para a porta que ele fechou atrás de si.
Pouquíssimos alunos ficaram sabendo de uma conversa que Dumbledore tivera com um determinado quarteto grifinório em seu gabinete, naquele mesmo dia. Mas a maioria dos estudantes estranhou os trezentos pontos a menos na ampulheta de rubis da casa de Grifindor. Esse ano com certeza, a Taça das Casas não seria de lá.
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