Um nome para esquecer
À beira do lago, as brumas haviam se acumulado num tapete denso e branco. Além, onde a neblina se expandia livremente podia-se entrever, quando muito, a silhueta difusa do campanário da pequena igreja na ilha. Era muito cedo e o sino fora deixado em paz até soar as matinas. Entre os juncos um homem media o que tinha pela frente. Seu rosto estava oculto pelas sombras da manhã que se insinuava e estava imóvel, confundindo-se com a vegetação. Ele não tinha pressa mas não se deteria agora. Sua oportunidade estava ao alcance da mão. Ou estaria, brevemente.
Um bando de pássaros crocitou ao longe e ele buscou em seu alforje o pequeno vidro lapidado que recebera do infame mestre e que guardara com extremo cuidado. Ao soar da primeira badalada iniciaria a aventura de sua vida. Suas mãos estavam úmidas mas não hesitou em puxar dentre as vestes a varinha e com ela tocar levemente a tampa que fechava a garrafa. Uma névoa esverdeada principiou a sair do recipiente, enovelando-se em torno da figura enquanto adquiria uma tonalidade prateada e enjoativa. Subitamente um tremor sacudiu os juncos e trepidou a superfície sonolenta do lago e o homem desapareceu.
Soaram as matinas e a Senhora acordou sobressaltada. Há muito tempo atrás havia se acostumado com as badaladas da igreja e abria os olhos antes da primeira soar, mas desde que a ilha fora se afastando do mundo, e de suas preces e cantilenas, já não lembrava da existência dessa outra casa de sacerdotes. A distância crescente apagara toda lembrança e o tempo de uma já não coincidia com o da outra. A sacerdotisa observara impotente a ilha deslizar lentamente para o esquecimento e, portanto, ter ouvido o soar do sino só poderia significar uma coisa. Ela pressentira o perigo e tomara providências e acreditara que teria mais tempo, suficiente para que a ajuda chegasse à Terra do Verão. Mas o tempo terminara e o usurpador estava às portas. Adentraria pelas brumas e dissolveria toda uma civilização como sal na água, destruiria a fonte da deusa, perturbaria o equilibrio e condenaria a Terra do Verão e tudo que ela significava e mantinha ao abismo da mudez permanente. Quando a ilha se fosse levaria toda a magia com ela.
Quem desejaria tal monstruoso destino, com tantos inocentes atingidos e uma vida de condenação pela frente e por toda a eternidade? Quem teria a perfidez e ganância de absorver todo o poder que residia nas relíquias por querê-lo só para si? Que criatura de alma corrompida, cujos frangalhos mal-cheirosos não podiam ser disfarçados nem pela mais poderosa poção, ousava invadir o último refúgio da deusa?
A sacerdotisa pulou da cama feita de peles de carneiro decidida a não esperar mais, resolvida a jogar sua própria vida contra aquele demônio destruidor. Precisaria de forças sobre-humanas para enfrentá-lo. Não pudera esperar aqueles que convocara, aqueles que seriam uma chance contra a destruição que se aproximava, mais perto agora. Muito perto.
A Senhora do Lago saiu da cabana e, enquanto descia pela encosta até o lago, viu o vulto em pé, logo à beira. A poucos passos dele, parou e o encarou. O homem deslizou o capuz que escondia sua tenebrosa face e os olhos verdes brilharam intensamente.
A mulher postou-se diante do invasor com a determinação da Deusa. A única alternativa que lhe restara era romper nesse momento a ligação da ilha com o mundo e ele estaria preso; entretanto, ninguém mais poderia entrar ou sair, nem mesmo ela. E as relíquias ainda estavam ali. Seriam um trunfo para ela ou armas para ele? Poderiam as relíquias dar ao arremedo humano que sorria ironicamente para ela a capacidade de voltar ao mundo dos mortais? E se a Terra do Verão desaparecesse para sempre nas brumas, poderiam garantir a permanência da magia no lado de lá? Ela não tinha essas respostas, não com certeza. Nada a havia preparado para aquele momento decisivo. Nem a vida nem a Deusa. A Senhora do Lago jamais imaginara ver-se diante de tal dilema e não tinha a quem recorrer exceto a Ela. Que Ela decidisse o fim do mundo, que Nela repousasse a destruição, Nela, A que era Criação e Mãe. Que Ela empunhasse a espada do destino e cortasse o que quisesse, pudesse, devia. Inclusive ela, a última Senhora do Lago.
Ergueu seus braços e as mangas de seu manto deslizaram até descansarem em seus flancos, expondo a pele nua e os dragões azuis tatuados em cada um. O crescente em sua testa ardeu em fogo e, por um instante, antes que a bruma e a escuridão os envolvesse, ela vislumbrou o rosto do homem crispar-se num ricto de terror.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!