Uma ousadia imprudente




Julia abriu os olhos e observou ao seu redor. Estava presa naquela casa há uma semana e todas as manhãs, quando acordava, tinha a esperança de despertar de um pesadelo, mas isso insistia em não acontecer.

Era entediante ficar naquele lugar. Não tinha nada para fazer, nem sequer a liberdade para caminhar no jardim, já que as portas permaneciam todas trancadas. Isso sem falar na constante sensação de ser vigiada. Seus melhores momentos eram aqueles em que estava com Snape. Apesar das palavras irônicas e ríspidas que ele costumava usar, gostava de sua companhia.

Snape lhe contava coisas muito interessantes sobre o mundo que Júlia foi privada de conhecer. Ela gostava de ouvir sobre Harry Potter, o “Eleito”, mas sempre que falavam sobre esse garoto ela percebia uma amargura em Snape, traduzida pelo tom de voz e as feições contraídas do rosto. Porém, o assunto que mais interessava à Julia era Dumbledore. E era justamente este assunto que Snape sempre evitava, frustrando os desejos da garota de saber mais sobre seu velho amigo. Além da imensa saudade que sentia, tinha o desejo de vingar sua morte. Mas sempre que ela mencionava o nome do Diretor, Snape vinha com a resposta pronta: “Você tem que se preocupar primeiro com sua segurança!”

Aquele foi um dia monótono, exatamente como os outros. Quando anoiteceu, Júlia foi ao encontro de Snape. Encontrou a porta aberta, como de costume, mas desta vez o quarto parecia estar deserto.

- Severo – chamou a garota sem obter resposta.

Ele realmente não estava lá. Ela não sabia se voltava para seu quarto ou se esperava. Resolveu seguir a segunda opção. Sentou-se na cadeira de frente para aquela que Snape costumava se sentar, mas estava inquieta e preocupada com sua demora.

– Onde será que ele está?

Aquela espera estava angustiante.Júlia começou a caminhar pelo aposento, aproximando-se de uma porta que havia próxima à lareira. Sempre que esteve lá aquela porta permaneceu fechada, mas hoje estava entreaberta, uma luz difusa saindo pela fresta.

Uma ousadia imprudente tomou conta da garota e ela entrou. Era o quarto particular dele, um lugar simples com uma cama, uma mesinha de cabeceira, um pequeno armário e uma poltrona. Nesta havia um livro que, pela posição em que se encontrava, devia ter sido atirado ali de qualquer jeito. Ela se aproximou da poltrona e pegou o livro. Invadir o quarto daquela maneira estava despertando em Julia sensações até então desconhecidas. Um arrepio percorria seu corpo, mas não era de medo, nem de maus presságios como os que havia sentido desde que entrara naquela casa. O aroma de ervas que ele exalava estava impregnado no quarto, era como se ele estivesse ali.

Ela folheou o livro distraidamente, tão absorta no cheiro de ervas que nem percebeu do que se tratava a publicação, até que um papel caiu a seus pés e despertou-a do transe em que se encontrava. Júlia abaixou para pegá-lo e viu que se tratava de um antigo recorte de jornal, que trazia a foto de uma mulher ruiva, com cabelos espessos e olhos amendoados muito verdes, vestida de noiva. Ela parecia muito feliz. Mas antes que o Júlia pudesse imaginar de quem se tratava, a voz fria de Snape soou no aposento, quase matando a garota de susto.

- O que você faz aqui? - disse o homem, olhando da garota para o livro, furioso.

- Desculpa...sei que não devia ter entrado aqui, mas estava te procurando e...

Snape se aproximou dela e retirou o livro de suas mãos com violência. Ela corou, sabia que estava errada e não devia ter invadido a privacidade dele daquela maneira. Ele tinha o direito de se irritar. Quando ia tentar se justificar mais uma vez, notou nas linhas duras do rosto de Snape algo novo: dor, angústia, sofrimento. Isso a preocupou e ela não pôde deixar de perguntar, de maneira hesitante:

- Hum... você está bem?

Ele não respondeu, apenas caminhou até a porta e fez sinal para ela sair. Estavam novamente na sala dele, ambos em absoluto silêncio.

- É melhor você ir embora, não temos nada de novo para falar hoje – disse ele evitando olhar para a garota.

- Você está bem? – insistiu ela.

- Vá, Júlia! – respondeu ele rispidamente.

- Ótimo – ela retrucou, de maneira calma. – Se quiser conversar sabe onde me encontrar.

Júlia saiu com o coração partido. Não estava chateada com o fato dele ter sido grosseiro, afinal isso era típico dele, mas preocupada com o que viu em seu olhar. Era angústia. Parte daquela angústia parecia ter sido transferida para ela, pois sentia o peito apertado numa constante falta de ar.

Snape ficou por um bom tempo olhando as chamas da lareira, segurando o livro com força em suas mãos. Pensou que podia ter sido mais educado com Júlia, dividido com ela um pouco de seus sentimentos, que tanto o perturbavam. Mas ele estava tão habituado a sua amarga solidão que a possibilidade de se abrir com alguém parecia absurda. A cabeça dele doía como nunca, parecia que ia explodir, e quanto mais pensava, mais dor sentia. Desejava tanto sair daquele lugar, esquecer tudo aquilo que viveu. Mas era impossível esquecer a culpa que carregava pelas dores que ele mesmo causara. Talvez uma maneira de amenizar isso seria cumprir a promessa que fez a Dumbledore.

Deixou o livro de lado e passou a caminhar pelo aposento, ficando cada vez mais aflito ao invés de aliviado. A dor o perturbava cada vez mais, quase como se fosse algo físico. Resolveu dar uma volta para espairecer, mas ao passar pelo quarto de Júlia não resistiu. Sentia que precisava dela. Bateu na porta com medo de estar cometendo uma loucura. Os olhos de Júlia despontaram, brilhantes, talvez molhados.

- Severo!

- Posso entrar ou estou atrapalhando? - perguntou, notando que a garota segurava um pedaço de pergaminho e uma pena nas mãos.

- Não, fique a vontade – disse ela, dando passagem para ele entrar e enxugando disfarçadamente os olhos.

Era a primeira vez em que Snape estava no quarto dela. O aposento era bem menor que o dele, mas muito mais bonito e organizado, além do magnífico perfume de flores... o perfume de Júlia. Sentou-se no sofá e ela sentou ao seu lado.

- Estava escrevendo para quem? – perguntou ele, retomando a frieza na voz.

- Para minha irmã, por quê?

Ele franziu o cenho e fitou-a seriamente.

- Já lhe alertei sobre as cartas. Seu pai usa as pessoas chegadas aos seus inimigos para intimidá-los. Ele seria capaz de usar as pessoas que você gosta, e seria apenas uma questão de tempo para chegar até eles.

- Eu sei disso, acha que sou tão imprudente a ponto de colocar minha família em risco, Snape?

O semblante de Júlia se fechou enquanto ela olhava para ele de maneira desafiadora. Aquilo mexia com os instintos de Snape. Por um minuto, os olhos negros se fixaram, mas Júlia não conseguiu sustentar seu olhar por muito tempo.

Snape fechou os olhos tentando se controlar. Sua cabeça ainda doía muito, e ela pôde notar a expressão angustiada em seus traços. Involuntariamente, deslizou sua mão pela rosto dele de maneira delicada. Por um instante breve ele pensou em impedir, mas então se rendeu àquele toque suave, que aos poucos foi dissipando todos os sentimentos ruins que se passavam em seu coração.

Snape abriu os olhos e passou a contemplá-la. Ela sorria para ele, parecia um lindo anjo, com o sorriso mais encantador que Snape conheceu na vida. Notou que ela tinha os lábios avermelhados entreabertos, extremamente convidativos, seria humanamente impossível resistir.

Em questão de segundos seus lábios estavam colados carinhosamente nos dela. Ambos foram tomados por um desejo explosivo e incontrolável. Snape aprofundava cada vez mais o beijo e ela deixava que ele fizesse isso. Saboreavam aquele momento como se suas vidas dependessem unicamente dele.

Com grande esforço eles se afastaram, e Snape prontamente levantou-se do sofá antes de se dirigir a ela:

-Desculpe-me. Eu jamais deveria ter deixado isso acontecer.
Ele se levantou, afastando-se ainda mais dela. Se ficasse mais um segundo perto, temia que fosse beijá-la outra vez, e isso era totalmente inapropriado, inadmissível.

- Severo, não precisa se desculpar, você não fez nada de errado e...

Mas antes que ela completasse a frase, Snape virou bruscamente as costas e saiu apressado do quarto, com suas vestes negras enfunando como uma cauda.

Júlia permaneceu ali, olhando para o corredor vazio por onde Snape passara, tentando em vão compreender sua atitude.



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