A Felicidade não cai do céu

A Felicidade não cai do céu



O pequeno monomotor Piper Seneca fazia um vôo tranqüilo e seu piloto já começava o procedimento de aproximação para aterrissar no aeroporto O'Hare, em Chicago. O céu azul de um meio-dia ensolarado, sem rajadas de vento vindas do lago - normais nesta época do ano - antecipava um fim de férias sem maiores contratempos.
No comando ia James Brady, trinta e dois anos, engenheiro da NASA. A seu lado, sua jovem mulher Anne, no banco de trás suas duas filhas, Tammy e Carolyn, com doze e dez anos, respectivamente.
As duas meninas, com suas vozes estridentes tentavam sobrepujar o barulho do motor cantando Frère Jacques, enquanto Anne tentava dar um jeito nas quinquilharias que trazia em sua bolsa, lembranças das férias nos Grandes Lagos, quando de repente algo enorme e preto adentrou a cabina, arrebentando o plexiglass que os separava do frio vazio de fora.
O ruído que se fez de fundo musical à tragédia era ensurdecedor.
Ao inclinar o avião e fazer uma curva em direção ao funil de aproximação, para a tomada da cabeceira da pista em um procedimento de rotina havia se chocado quase de frente com um urubu, vindo de qualquer lugar debaixo deles.
Por causa desse "quase", ainda teria a seu favor a integridade das pás da hélice.
A vítima emplumada entrou em pedaços mal-cheirosos cabina adentro, um deles grande o suficiente para colocar James a nocaute.
O avião despencou como uma pedra por dois mil metros. Quando apenas uns quinhentos os separavam do solo e da morte certa, ele acordou em meio aos gritos de sua mulher e das meninas.
O vento arrancava lágrimas dos olhos que, à custa de muito esforço, conseguia manter semi-abertos. Lágrimas misturadas com sangue escorriam para trás por suas têmporas, dando a seu rosto a aparência de uma máscara de Kabuki.
Para aumentar ainda mais o desconforto, as pontas dos fios de cabelo, que haviam ficado sem corte durante todas as férias, açoitadas pelo vento da hélice, somadas à velocidade da queda, chicoteavam furiosamente seu rosto, fazendo com que sentisse como se uma infinidade de alfinetes lhe picasse a pele.
Sem mesmo ter certeza do que estava fazendo, guiado apenas por um reflexo condicionado, puxou o manche com toda força para junto de si.
Durante o que pareceram ser intermináveis segundos, este não se moveu. Sentia em seus dedos crispados a força do vento que parecia querer arrancar os flaps de seu mecanismo na asa e destroçar o que restava do pequeno avião.
O sangue que lhe escorria pela testa ardia em seus olhos e começava a cegá-lo. Tudo parecia ocorrer em câmera lenta.
De repente, o manche começou a ceder e ele conseguiu trazê-lo aos poucos até perto de seu peito. O movimento veio acompanhado de uma sensação de esmagamento. Sentiu seu corpo achatar-se contra o fundo do assento e uma forte náusea. Seu cérebro conhecia esta sensação.
Ele estava conseguindo tirar o avião de seu mergulho mortal. Tirou uma mão do manche para limpar o sangue dos olhos e tudo escureceu.
Os gritos agoniados de sua família começaram a distanciar-se, dando lugar ao nada, silencioso e perene. Pelo menos, no que dizia respeito ao que, a partir deste momento de sua vida, poderia ser explicado sem discussão.
Houve uma explosão que pareceu muito distante.
Haviam morrido todos os ocupantes do pequeno avião. Ou pelo menos assim pensaram os paramédicos que primeiro chegaram ao local do acidente.
James, na verdade, não conseguira tirar o aparelho de seu mergulho a tempo, já estava baixo demais e terminou espatifando-se em uma caixa d'água de uma pequena granja, apenas a uns poucos quilômetros do aeroporto.
Todos os corpos foram deslocados para o Hospital Central de Chicago e de lá para a morgue, aguardando identificação. Foi aí que um enfermeiro residente, não sem antes levar um tremendo susto, percebeu que uma das vítimas ainda respirava.

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