Dança de estrelas

Dança de estrelas



Capítulo 3. Dança de estrelas

Sirius observava enquanto Marlene tentava manter a varinha firme entre os dedos da mão direita. Já conseguia movimentar os dedos um pouco mais. Há dias não precisava mais de ataduras. Havia apenas a cicatriz esbranquiçada cortando a palma, como uma linha adicional quase semelhante às que já existiam. A varinha balançou um poço, antes de parar, equilibrada na mão da garota. Ela tentou fazer um movimento circular, mas antes que o concluísse o ruído da madeira batendo no chão encheu o lugar.

- Por que continua fazendo isso? – indagou Sirius. Há horas estava sentado, examinando uma pilha de pergaminhos e, por todo esse tempo, Marlene permanecera diante dela repetindo aquelas tentativas inúteis.

- Porque Madame Pomfrey disse que preciso treinar para voltar a mexer os dedos – ela deu de ombros. Então, levantou-se da poltrona e apanhou a varinha.

Sirius abaixou os olhos, fixando-os no tinteiro de vidro sobre a mesa. Duas semanas já haviam se passado. E ela continuava fingindo. Talvez não apenas para ele, mas para si mesma também. Ela não poderia acreditar que ele não sabia. Todos sabiam. Era por isso que ela estava escondida. Estava vulnerável, sem poder se defender caso fosse atacada de surpresa. E ele não estava passando as noites ali por outro motivo senão para protegê-la.

- “Quero ver o céu” – ouviu-a dizer.

Ele ergueu o rosto. Marlene estava parada e, no chão sob seus pés, dezenas de fachos prateados incidiam, como pequenas estrelas, criando a ilusão de que ela estava de pé sobre o céu.

- Não era esse o nome daquela música? – ela perguntou. A luz vacilante da vela fazia com que as sombras se movimentassem sobre seu rosto.

- Que música?

- A que tocava no dia em que fizemos nosso casamento – ela sorriu. – Não se lembra mais?

Sirius se lembrava vagamente. Os dois tinham o hábito de subir ao sótão da casa dos Black e abrir baús de coisas antigas. Um dia ele encontrara um vestido branco. E os olhos de Marlene brilharam, fascinados com a beleza da roupa. Para ela, era um vestido de noiva. O lenço branco na cabeça fora o véu. E a velha vitrola que Sirius conseguira fazer funcionar fizera a música. Ele não se lembrava exatamente do que acontecera, mas tinha gravada na memória a exata imagem de Marlene com o lenço branco na cabeça, mostrando-lhe como deveria segurar sua cintura para dançarem.

- Tenho uma péssima memória – respondeu ele.

Mas Marlene não deixou de sorrir.

- Sempre foi um mentiroso – sentenciou ela, andando em sua direção. – Piorou depois que entrou em Hogwarts. Mas você não deveria, Sirius. Você não sabe mentir.

Marlene pousou a mão boa na mesa diante dele. As luzes dançavam em seu rosto, iluminando seus olhos. Como era mesmo que a mãe de Marlene os chamava? Olhos de miosótis...

- Você não pode falar sobre mentiras, Marlene – ele a encarou, e ela desviou os olhos. Sabia do que ele estava falando.

Ela puxou uma cadeira ao lado dele e se sentou. Sirius tentou não se recriminar pelo que dissera. Afinal, era ela que estava errada. Era ela que estava mentindo.

- Marlene, por que você não vai para casa? – perguntou, tentando mudar de assunto. – Você estaria entre pessoas que gosta e não ia correr tanto perigo.

Ela sorriu tristemente, com os olhos fixos na mão paralisada.

- Correr perigo? Qualquer um que estiver comigo de agora em diante vai estar correndo perigo – falou, sem emoção. Ela pegou a varinha com a mão esquerda. – Não posso fazer mais nada pela Ordem. Mas Dumbledore não vai dizer isso. Ele sabe que esse é o único lugar seguro para mim.

- Mar... – murmurou.

- Não – ela o interrompeu. – Não precisa dizer nada. Apenas faça seu trabalho.

Marlene falava com firmeza. E ela parecia tão frágil. Sirius fixou o olhar no chão. Vários objetos jaziam jogados no piso de madeira – penas, frascos de tinta vazios, uma capa rasgada, um caldeirão. As pessoas costumavam passar correndo por ali, apenas para pegar alguma coisa ou deixar um recado. Às vezes, usavam os quartos para passar a noite.

- Vou acender outra vela.

- Não – repetiu Marlene. – Eu não preciso de luz.

Sirius olhou para ela. Marlene sorria de uma forma sonhadora. E doentia. Sorrir assim naquela situação era doentio. Os olhos azuis dela brilhavam como pequenas pedras na penumbra.

- Black, pare de olhar desse jeito para mim – falou, olhando para o tampo da mesa como se não falasse com ninguém. – Eu não vou morrer, só estou machucada.

- Eu... eu só estou preocupado.

Marlene parou de sorrir. Inclinou a cabeça para ele. Tinha os olhos voltados para o teto agora.

- Você se preocupa demais.

Sirius molhou a ponta da pena no tinteiro. Não sabia se o que mais o incomodava era o fato de Marlene estar com a mão paralisada ou o fato de ela fingir não aceitar isso. Riscou o pergaminho com raiva. Raiva de não poder fazer nada, absolutamente nada, diante daquela guerra. Quanta gente mais ele teria que ver morrer? Morrer de verdade, ou morrer da maneira como Marlene estava morrendo. Ou como ele estava morrendo. De culpa.

Marlene começou a cantarolar uma melodia. Mal movia os lábios. A melodia era lenta, mas não triste. E, no entanto, ecoando naquele sótão quase vazio e na penumbra, parecia insuportavelmente melancólica. Ou talvez o motivo fosse apenas a tristeza contida, que aproveitava a música para se expressada.

- Desculpe – ela parou e olhou para Sirius, que a mirava perturbado. – Estou te atrapalhando.

Marlene se levantou, mas ele foi mais rápido e tocou seu ombro para detê-la.

- Eu me lembro.

- Pensei que tivesse uma péssima memória – ela franziu a testa.

- Tenho – respondeu ele, com simplicidade. Marlene não sorriu. – Mas me lembro da música.

Ele pegou a mão inerte da garota e envolveu sua cintura, trazendo-a para perto dele. Ouviu a respiração dela junto ao seu ouvido.

- Quantos anos você tem, onze? – ela riu.

- Só estou provando que me lembro – falou ele.

Sirius começou a guiá-la. Não era propriamente uma dança, mas um movimento lento de deslizar sobre as estrelas pontilhadas no piso. Marlene cantarolava a melodia. Deveria ser um momento engraçado, divertido, ou pelo menos essa tinha sido a intenção de Sirius. Mas não era. A nostalgia não era feliz para ele. E, percebeu naquele momento, nem para ela.

Marlene deixou a cabeça cair em seu ombro. Ela não cantava mais. Dançavam silenciosamente sobre as estrelas do chão. Era o vazio agora que cantava. E Sirius se sentiu só, ainda que ela estivesse tão próxima dele. Era sua fraqueza novamente. Porque nunca conseguira ser forte como Marlene e ignorar os problemas. Porque se apegava tão facilmente a tudo – as coisas, as pessoas, o mundo – e isso o fazia sentir-se um idiota.

- Você ama alguém? – ela perguntou. Tinha fechado os olhos e Sirius ficou feliz por isso.

- Muitas pessoas – falou.

- Eu não acredito no amor – ela disse.

Marlene ergueu o rosto. Seu braços deslizaram pelos ombros de Sirius e se afastaram dele. Ela deu dois passos para trás, ainda com os olhos fixos na expressão confusa dele. Então se virou e seguiu na direção do corredor que levava para os quartos, os pontos luminosos passando rapidamente sobre ela.

--------------------------------------------------------------------------------

Sirius fechava os botões de madrepérola um a um, descendo do colo para a cintura da garota. Não conseguia deixar de sorrir com a situação. Marlene tinha o rosto voltado para a esquerda, o olhar perdido no vazio, enquanto os dedos dele deslizavam ao longo da blusa branca.

- Sirius, pare de sorrir! – ela resmungou, talvez pela décima vez desde que Sirius tinha começado.

- Não posso ficar feliz? – ele riu.

- Não quando está me ajudando a vestir as roupas – Marlene revirou os olhos.

- Pronto, pode parar de reclamar, já terminei – ele descansou as mãos nos ombros dela. Marlene voltou o rosto para frente. E Sirius teve a impressão de que ela tinha evitado que seus olhos se cruzassem.

- Você fica se aproveitando – ela resmungou, enquanto se virava para pegar o chapéu que estava sobre a cama.

Sua mão direita jazia imóvel ao lado do corpo, enquanto ela tentava equilibrar o chapéu pontudo na cabeça usando a mão esquerda.

- Vou ter que rever meu guarda-roupa, tirar as roupas que não consigo vestir sozinha – ela se lamentou, mirando a própria imagem no espelho de parede.

- Eu não me importaria de ser chamado na sua casa para te vestir todo dia – falou Sirius, ao que Marlene respondeu com uma careta.

A imagem era descontínua, mudando de plano a cada rachadura sobre a superfície prateada do espelho. O reflexo parecia ser constituído de peças de um estranho quebra-cabeça jogadas a esmo. Um facho de luz incidia sobre o rosto de Marlene, fazendo com que Sirius conseguisse distinguir os contornos de suas feições no escuro.

- Como vai ser agora? – o rapaz perguntou, deixando o corpo cair na cama. Apoiou os cotovelos nos joelhos.

Marlene correu a mão pelos cabelos antes de responder.

- Como era antes – falou. – Só um pouco diferente.

Sirius esboçou um sorriso. Um quebra-cabeças. Marlene McKinnon era seu quebra-cabeças. Sempre com meias respostas, sorrisos enigmáticos, perguntas suspensas no ar, como a poeira espiralando na luz.

- Para onde vai agora?

- Já disse que você se preocupa demais – Marlene virou-se para ele.

- Não posso evitar – ele sorriu. Mas sabia que falava sério. Não podia evitar. Pensava em si próprio, em como não conseguiria ficar em paz enquanto não soubesse que ela estava bem. E isso poderia fazer alguém pensar que era uma boa pessoa. Sirius não pensava assim. Na verdade, sentia-se muito mal por seu bem-estar depender tão definitivamente das pessoas a sua volta. E era a guerra. Ele não deveria estar pensando nisso.

- É porque você ama demais – ela falou, antes de se sentar ao lado de Sirius.

Marlene se debruçou sobre os joelhos, tentando alcançar a bota. Sirius se adiantou e pegou os sapatos, passando-os à garota.

- Por que você vê tanto problema nisso? – perguntou, observando enquanto ela calçava os sapatos.

- Em quê? – murmurou ela, concentrada na tarefa de arrumar o fecho da bota.

- No amor – ele tentou parecer simplório ao responder.

Marlene ergueu os olhos para Sirius por um momento. De todas as coisas no quarto, aqueles olhos eram os únicos que pareciam ter cor, como reluzentes cristais azulados, que concentravam em si a pouca luz do lugar. Os lábios dela estavam separados, revelando o branco dos dentes.

- Já disse, não acredito no amor – ela respondeu, com simplicidade. Mechas escuras caíam sobre seu rosto claro.

- Mas você dançou nossa música de casamento – retrucou Sirius. Claro, aquilo fora uma incrível demonstração de sentimentalismo. Como ela poderia ser nostálgica àquele ponto e não acreditar no amor?

Sirius achava que era sua mania de amar demais que fazia dele aquele estúpido sonhador. E ele sempre acreditara que eram iguais. Ele e Marlene. Eles entendiam os pensamentos um do outro. Mas isso era quando eram crianças, estava se esquecendo. Agora tudo estava diferente. Agora eles mentiam sobre o que sentiam.

- Isso não quer dizer nada – Marlene deu de ombros.

- Claro que quer dizer alguma coisa! – insistiu Sirius. Inconscientemente, estendeu a mão para ela. Seus dedos se fecharam sobre a mão inerte da garota.

Marlene olhava para ele confusa, incapaz de entender por que ele estava tão inconformado com o que ela dissera. No silêncio, ouvia o som da respiração dele. E não sentia a mão dele na sua.

- Sirius...

- Responda.

Marlene esboçou um sorriso. Então inclinou o tronco. Seu nariz tocou o de Sirius.

- Quando tínhamos onze anos e você me pedia em casamento queria dizer alguma coisa? – sussurrou ela.

Sirius ergueu uma sobrancelha, imaginando aonde ela queria chegar com aquela pergunta. E ele nem tinha certeza de qual era a resposta. A verdade é que nunca pensara em se casar com ninguém além dela, ainda que aquilo não passasse de uma brincadeira de criança, de beijos roubados sob os ramos de uma cerca viva, de olhares demorados que o mergulhavam no mar de pétalas azuis.

- Viu o que eu disse? – resmungou Marlene, interpretando por conta própria o silêncio de Sirius. – Não significa nada.

Ela se ergueu da cama. Estava calçada e pronta para partir. E Sirius não tinha idéia de para onde ela ia. Marlene pegou a capa de viagem e jogou-a sobre os ombros. Então tentou amarrar a fita para prendê-la no pescoço, sem muito sucesso.

Sirius se levantou para ajudá-la.

- Se você precisar de alguma coisa, qualquer coisa...

- Eu sei – suspirou a garota.

- Eu vou, não importa o que estiver fazendo – falou, seus dedos entrelaçados na fita preta, parados a meio caminho de formarem um laço. – Inclusive se precisar de ajuda para se vestir – acrescentou.

- Claro, você não quer nenhum pouco que eu ande pelada por aí – Marlene revirou os olhos.

- Se resolver fazer isso pode me chamar também – ele disse, sorrindo, enquanto puxava a fita, formando as alças do laço.

- Certo, não vou me esquecer.

--------------------------------------------------------------------------------

N.A.:
Realizei um sonho escrevendo essa cena da dança, eu imaginava ela desde que ouvi a música “Chão de Estrelas” (que não tem nada a ver com dança, apenas a impressão da luz que entra pelo telhado formar estrelas no chão...).

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.